Os primeiros dias do mês de Novembro de 1992 foram negros. Luanda tinha-se transformado num inferno para os homens, mulheres e crianças da UNITA. As armas do regime viraram-se contra os homens da paz e democracia. Muitas famílias foram desfeitas nesse período, por morte ou desaparecimento de seus entes queridos. Convido-vos a ler o testemunho da Dra. Fátima Roque in “ANGOLA: EM NOME DA ESPERANÇA” (II)
«A RESISTÊNCIA DA UNITA EM LUANDA
O assalto ao Turismo seguiu-se imediatamente depois da troca de disparos entre a polícia do Comando Provincial e os militares das FALA que estavam a proteger o hotel. Estes tinham como objectivo evitar que a polícia levasse preso o general da UNITA que tinha escapado do carro que o «transportava» desde as proximidades do Quartel Comandante Economia até ao Comando Provincial da Polícia.
No princípio pensou-se que seria um incidente localizado, e em breve a calma seria restaurada. Mas estávamos enganados. Através dos nossos meios de comunicação via radio, fomos tendo conhecimento dos ataques e bombardeamentos contínuos, com intervalos de aproximadamente 20 minutos cada, aos principais locais onde dirigentes, quadros e outros militantes estavam instalados. Assim, às 14H00 foi o Turismo, a Delegação Provincial às 14:20, o Motel às 14H40, o Quartel Comandante Economia às 15H00, o Secretariado Geral às 15H20 e a partir das 16H00 o «assalto à UNITA» e aos Ovimbundos generalizou-se a todo o lado: bairros, musseques, comités, residências, restaurantes, apartamentos…
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Os disparos e bombardeamentos eram tão intensos que o barulho era insuportável; eu não sei que armas foram usadas, mas posso afirmar que vi tanques, helicópteros e aviões. Havias «ninjas» e «fitinhas» em todo o lado, não sei como em tão pouco tempo eles apareceram em todas as esquinas, varandas, apartamentos, atrás de colunas, dentro de carros, à prota dos hotéis ….
Às 15H50 apareceu no hotel Tivoli o meu motorista e o segurança (desarmado) que me acompanhavam no carro que me estava destinado. Vieram do Miramar, já debaixo de fogo intenso, mas o «mais velho Salupeto que r falar com a doritora», disseram eles.
Falamos durante alguns minutos e nunca esquecerei as recomendações que ele me fez…«por faor, não saia do hotel: não vá à reunião às 16H00, na CCPM; eles querem acabar connosco; não tenha medo, a mana à está protegida, mas se as coisas piorarem mandá-la-ei buscar» e vieram por volta das 19H00 e por isso nunca mais voltaram com vida. Ainda falei com ele mais uma vez, antes de sucumbir perante a morte horrível que o esperava.
A insistência doentia como alguns dos Observadores e vários elementos do Governo, tentaram denegrir a imagem de Salupeto Pena – ilustravam bem o valor que este homem tinha. Dois dirigentes angolanos – um dissidente da UNITA e um do MPLA e membro do governo – tentaram, semanas mais tarde, convencer-me que Salupeto Pena era um racista e que mandaria fuzilar os brancos da UNITA depois das eleições. Claro que o meu era o primeiro da lista – lista essa de que nunca conseguiram mostrar-me uma cópia. Com o dissidente da UNITA nunca mais falei, o argumento foi desmontado tão facilmente que ele sentiu o ridículo em que tinha caído e nunca mais apareceu. Com o do MPLA, como infelizmente não estava em posição de poder recusar tão ilustre «visita», ainda ouvi muitas outras histórias que provavelmente faziam parte da campanha para a minha «moralização».
Também através da radio (durante os três primeiros dias) ouvi ordens dadas pela polícia, por pessoas muito importantes do regime, pelos militares … que nunca apagarei da minha memoria. Ainda hoje dói muito só de recordar. Como puderam ser tão frios e cruéis?
A partir de domingo à noite comecei a convencer-me que estava tudo perdido. Segundo a TPA (Televisão Popular de Angola), os dirigentes estavam mortos ou presos, os militares mortos ou rendidos, e o povo afecto à UNITA «protegido» em quarteis, prisões ou valas comuns. O meu mundo começava e acabava no 3º andar do Tivoli, e nas raras vezes que ia à janela ainda conseguia ver o Trópico inteiro. Aqui viviam várias dezenas de quadros, civis e militares, da UNITA.
Todavia, noutros locais resistiu-se heroicamente, em condições muito difíceis. O relator pormenorizado dessa resistência ainda não é possível fazer-se sem pôr em risco a vida das pessoas envolvidas. Hoje, o objectivo é desabafar – se possível em nome de muitos – para que a cicatrização das feridas se faça mais segura e com menos dor.
(i) O MOTEL
O Motel foi a primeira posição da UNITA a ser destruída. Os tanques vindos do Futungo de Belas arrasaram completamente estas instalações, junto do aeroporto, no sábado ao fim da tarde. Aqui viviam aproximadamente 400 pessoas: eram quadros civis com as suas famílias e alguns seguranças.
A resistência no Motel foi praticamente feita por civis e o coordenador foi um jovem estudante que tinha estado a estudar em Portugal. Ele organizou as colunas de civis que saíram do Motel em direcção ao Rocha Pinto. Resistiram algumas horas mas o poderio dos tanques era imparável. A história desta resistência e subsequente fuga é digna de ser conhecida. E sê-lo-á um dia.
Espalharam-se pelo Rocha Pinto, que era favorável à UNITA. Daqui muitos continuaram até ao Cassenda. Era mais longe, e a ideia era fugir o mais possível àqueles «carros lagartas que vomitavam fogo». No Cassenda aconteceu uma das maiores chacinas destes dias sangrentos de Novembro de 1992. Na tarde de domingo os helicópteros bombardearam a nossa gente durante três horas. Foi uma grande mortandade. As pessoas que me contaram o que aconteceu, nunca mais serão pessoas normais: «Cassenda foi uma grande chacina, a terra ficou coberta de sangue»… Aqui morreram parte dos 400 que estavam no Motel e muitos outros populares que viviam no bairro e não tiveram para onde fugir.
(ii) O SEGUNDO ATAQUE AO HOTEL TURISMO
O hotel Turismo esteve debaixo de tiroteio intenso durante dois dias. Além da polícia do Comando Provincial, foram destacados para o local tanques e um contingente militar, que com a ajuda dos que atacavam a partir da Fortaleza, destruíram praticamente o hotel. A determinada altura foram também usados helicópteros. Aqui viviam negociadores da UNITA, quadros civis e militares, pertencentes à CCPM, CMVF (Comissão Mista de Verificação e Fiscalização) e outras comissões conjuntas instituídas ao abrigo dos Acordos de Paz. Estes e as suas famílias perfaziam mais ou menos 300 pessoas. No domingo dia 1 de Novembro, por volta das 19H00 o general Ndalu do governo tentou negociar um cessar-fogo com o general Wambo da UNITA que estava no hotel Turismo e falava em nome do grupo. Segundo me contaram mais tarde, quando fui ao Ministério da Defesa, Ndalu tentou um cessar-fogo específico para o Turismo, o que o nosso general recusou, por isso significar uma rendição. O general da UNITA contactou o Secretário Geral Mango que estava no Secretariado Provincial, com outros dirigentes e militantes, quando o ataque traiçoeiro à UNITA começou. Este sugeriu um cessar-fogo global, o que foi aceite pelo general Ndalu.
O contacto entre os dois homens da UNITA, Mango e Wambo, foi telefónico, pois desde domingo de manhã que as forças especiais do governo tinham neutralizado o nosso sistema de comunicações. As forças governamentais sabiam exactamente onde estávamos, quantos eramos, quais os nossos hábitos, …., até mesmo a localização das antenas que estavam numa casa particular. O cerco começou a ser feito logo a partir de Bicesse. Cederam-nos as instalações que quiseram, coordenaram a nossa entrada em Luanda e controlaram-nos rigorosa e pacientemente à espera do dia «D». com eleições ou sem elas, com vitória ou derrota, o nosso fim teria sido o mesmo: a morte para milhares, o sofrimento para milhões e o renascer das cinzas para a UNITA.
Nessa noite de domingo, o general Ndalu e o general Wambo concordaram na constituição de uma comissão, com elementos de ambas as partes, para estudar a implementação do cessar-fogo na cidade. Assim, a nossa delegação foi ao Ministério da Defesa reunir com a delegação do governo. Concordou-se num cessar-fogo global, e a evacuação das pessoas que estavam no Turismo começou a fazer-se na segunda-feira. A maioria foi transferida para o quartel RI 20.
Na segunda e terça-feira, uma delegação mista, governo e UNITA, deslocou-se aos locais onde ainda estavam pessoas da UNITA. Foram aos hotéis Tivoli e Trópico – estes não tinham sido destruídos, se bem que o ultimo tivesse estado na «mira dos destruidores» durante algum tempo. O relato desta «negociação» ficará para outra oportunidade.
A história da rendição que o Governo de Angola se encarregou de espalhar interna e internacionalmente nunca existiu. Mais uma vez houve má fé. Os militantes do Turismo, ou de outros locais, não se renderam e muito menos pediram a protecção do governo.
Concordaram num cessar-fogo, e foi assim que o governo impôs o estatuto «sob custódia» - àqueles que não tinham sido mortos. Passados onze meses, continuam em quarteis e prisões «sob protecção do governo».
O general Wambo e outros dirigentes ficaram logo sob «protecção do governo» no Ministério da Defesa. Encontraram já lá outros generais da UNITA, tais como Zacarias e McKenzie, que tinham sido ajudados pelo general Ndalu e trazidos do prédio onde viviam (ou estavam) para o Ministério da Defesa.
A farsa da protecção pedida pelos militantes da UNITA ao governo foi uma das razões que levou os detidos «sob custódia», ou prisioneiros a tomar uma posição pública, em 23 de Novembro, através da divulgada da divulgação da 1ª Carta Aberta.»
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