CONSTITUIÇÃO MAIS TRANSIÇÃO



Na “Conferência sobre a Organização do Estado em Angola”, que se realizou ontem em Luanda, no Memorial Agostinho Neto, debateram-se os caminhos possíveis e necessários que é preciso percorrer para que Angola seja um Estado funcional, justo, inclusivo e próspero. Rui Verde, da Universidade de Oxford e da Universidade de Paris Cité, apresentou a sua visão sobre o imperativo de ter “uma constituição para além da transição e uma transição para além da constituição”.

Este é um tempo de aceleração da história – no mundo em geral e em Angola em particular. Os dados tidos por estáveis estão em mutação rápida. Aliados de ontem tornam-se inimigos, inimigos ficam amigos, equilíbrios passados são destruídos, certezas transformam-se em incertezas.

Constituição e transição são duas palavras quase antinómicas que, no caso angolano, poderão dar um sentido a esta aceleração.

Constituição pretende estabilidade e é do mundo do direito, enquanto transição é sinónimo de instabilidade e pertence ao mundo da política.



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É um erro pensar que o direito resolve as questões fundamentais da política (e da sociedade em geral). Tal pertence ao domínio da política pura.

O direito é um mero enquadrador, regulador, uma tentativa de ordem e direcção, que pode resultar ou não, de acordo com a sua eficácia.

Por isso, não se pense que numa constituição se encontram as soluções para o futuro, tal como não se encontraram no passado. A Constituição não é aplicada num vazio, mas num contexto alargado, em que forças poderosas e fracas se digladiam; por isso, constituições iguais terão diferentes resultados em diferentes países e épocas históricas.

Quanto à transição, trata-se de uma palavra que, em Angola, se tornou quase um refrão eternamente repetido. Porém, actualmente, a transição é importante para o país, mais importante do que a própria ideia de mudança ou de reforma constitucional.

Após a independência, apostava-se na transição para o socialismo. A lei constitucional de 1975 proclamava, usando alguns dos típicos chavões marxistas, que a República Popular de Angola almejava a construção de um país livre de qualquer exploração do homem pelo homem, materializando as aspirações das massas populares (art.º 1.º) e que competia ao MPLA a direcção política, económica e social da Nação (art.º 2.º).

Mais tarde, talvez nos anos marcados pela ascensão informal de Manuel Vicente na estrutura de poder, a transição rumou a outro objectivo, que se pode descrever como um misto de democracia musculada numa economia tipo Singapura. O objectivo Singapura não passou de uma miragem, afundando-se num pântano de corrupção. E esta transição também falhou.

Podemos dizer, de forma geral, que a partir do final da segunda década do século XXI surgiu um novo consenso sobre o objectivo de uma transição angolana, que denominaremos “objectivo Fukuyama”: uma democracia liberal com uma economia de mercado. Possivelmente, será esse hoje o consenso social em Angola. Não se pretende que o país seja uma Rússia soviética, uma Singapura ou um Dubai, mas um país próximo das práticas europeias ou norte-americanas, com uma democracia funcional e uma economia livre e próspera.

De certa forma, pareceu que João Lourenço tentaria fazer uma transição estrutural política e económica dentro do regime vigente a partir de 2017 – a chamada transição interna. Tal movimento já foi tentado e realizado em vários países, como Portugal antes da Revolução do 25 de Abril de 1974, Espanha com Juan Carlos e Adolfo Suárez, a China com Deng Xiaoping (limitado à evolução económica), a União Soviética com Gorbachov (Perestroika e Glasnost) e até mesmo a França com Luís XVI, que ficou sem cabeça no final da tentativa… Houve casos com sucesso – Espanha e China –, houve fracassos que levaram à revolução e queda do regime – Portugal (Estado Novo), França (Antigo Regime) e União Soviética.

Não vou aqui pronunciar-me sobre o resultado da tentativa de João Lourenço, preferindo enfatizar o facto de João Lourenço ter acelerado a história de Angola.

Salto para o futuro: 2027. Muitos pensam que basta que a UNITA vença as eleições para que a transição se realize e para que tudo fique resolvido. A verdade é que isso é possível, a acreditarmos nas palavras de Napoleão, segundo o qual “o impossível é uma palavra encontrada somente no dicionário dos tolos”. No entanto, é muito pouco provável.

A falta de experiência em situações de alternância em Angola, aliada ao peso de uma estrutura de interesses entrecruzados com clãs familiares, além de toda história pretérita de hostilidade, tornam quase impossível uma mera transição apenas por simples via eleitoral. Poderá ser essa a norma constitucional, mas não é o que a política presume.

Creio que, salvaguardadas as várias diferenças – a Angola de hoje não é a Espanha franquista de 1975 –, devemos olhar para a situação espanhola da década de 1970, quando foi empreendida uma transição bem-sucedida, em que o elemento político foi acompanhado pela renovação constitucional.

Porque esta é a chave: saber combinar o direito e a política.

A transição espanhola para a democracia foi um processo evolutivo lento, do estado autoritário de Franco para a monarquia democrática do rei Juan Carlos I.

O general Francisco Franco ganhou o poder em Espanha depois de vencer a Guerra Civil Espanhola em 1939, estabelecendo um estado fascizante, corporativo e centralizado, governado pelo seu partido, o Movimento Nacional. Durante a década de 1960, a Espanha desenvolveu-se economicamente, gerando uma classe média mais instruída e uma nova classe trabalhadora urbana. Os padres católicos, anteriores aliados, começaram a opor-se ao regime de Franco, por ser antidemocrático e contra as liberdades civis. Esses factores, juntamente com a opressão regional dos grupos bascos e catalães, levaram a uma oposição crescente ao Movimento Nacional de Franco.

No entanto, Franco não hesitou e sentiu-se suficientemente seguro para indicar um sucessor, o príncipe Juan Carlos, neto do rei deposto Alfonso XIII. Juan Carlos jurou lealdade ao Movimento Nacional e Franco supervisionou pessoalmente a educação de seu sucessor. A tensão em Espanha começou a aumentar a partir do final dos anos 60. Uma desaceleração económica trouxe greves gerais, a liberdade de expressão foi acentuadamente restringida e Espanha voltou ao nível de opressão presente na década de 1940.

Em 1973, a ETA, o grupo separatista basco, assassinou com sucesso o primeiro-ministro de Franco, Luis Carrero Blanco. O novo primeiro-ministro de Franco, Carlos Arias Navarro, prometeu reformas cautelosas, mas foi atacado quer por franquistas obstinados quer por reformistas. Nem agradou a uns, por sair do rumo franquista, nem a outros, por ser demasiado timorato nas reformas.

Quando Franco finalmente morreu, em Novembro de 1975, Espanha ansiava por uma mudança política.  

Relativamente a Juan Carlos, o sucessor de Franco, educado e treinado por Franco, não havia razão para esperar que mudasse algo ou fizesse qualquer transição. Contudo, Juan Carlos demitiu o primeiro-ministro Navarro em Julho de 1976, após seis meses de reinado, embora o tenha substituído por outro franquista, Adolfo Suárez.

Mas tudo mudou.

As ligações de Suárez com o Movimento Nacional e a lealdade dos militares a Juan Carlos permitiram que ambos, Juan Carlos e Suárez, começassem reformas políticas lentas, como a libertação de alguns prisioneiros políticos, e iniciassem uma reforma das leis políticas num sentido democratizante, aprovado pelo povo espanhol num referendo.

Um ano e meio após a morte de Franco, foram realizadas eleições democráticas para o Parlamento e uma nova coligação centrista liderada por Suárez, a UCD, formou o governo.

A habilidade política de Suárez, a coragem e determinação de Juan Carlos, bem como a disposição dos líderes da oposição para sacrificar as suas esperanças por uma mudança social mais radical pelo objectivo mais imediato de garantir a transição política, ajudaram a acabar com qualquer polarização. 

Suárez seguiu um programa de política de consenso e conseguiu obter o apoio de quase todos os grupos para uma nova Constituição. O Parlamento aprovou a nova Constituição em Outubro de 1978, a qual foi referendada por voto popular em Dezembro daquele ano.

O estado franquista foi capaz de utilizar as instituições de Franco para democratizar lentamente, evitar a revolução, a agitação de massas e a oposição de muitas estruturas do governo à mudança.

Que lições se poderão retirar para Angola?

Uma primeira é que o momento que se vive, antes de qualquer reforma constitucional ou legal, exige uma dinâmica política. As questões que se colocam são políticas, no sentido da boa governação e da estruturação de um sistema que corresponda melhor às necessidades do povo.

Assim, o trabalho começa com as lideranças partidárias, velhas ou novas, mas com mandatos renovados, que saiam dos próximos congressos electivos partidários. Sobre os seus ombros recai a responsabilidade de responder à aceleração da história em curso e de criar um pacto para as futuras gerações.

Não se pode pensar que a transição é meramente formal, bastando accionar os mecanismos jurídico-constitucionais existentes. Deve-se procurar um consenso alargado que envolva as forças de defesa e segurança, a sociedade civil e as igrejas, eventuais terceiras vias, as forças económicas, sabendo-se que todos têm de ceder um pouco, fazer sacrifícios e construir consensos.

Depois deste processo político, pode-se pensar numa convenção nacional constituinte que vá gerar uma nova constituição pactuada, sujeita a referendo e base de futuro sistema, correspondendo às expectativas do povo.

Como escreveu um famoso professor brasileiro de literatura, Fernando Teixeira de Andrade:

Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Este é o desafio que vos coloco.

Maka Angola

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