Não gostar de uma lei não é o mesmo que a declarar inconstitucional. Aliás, é para decidir sobre a discordância que a democracia existe e é definida pela deliberação maioritária, respeitando a Constituição.
Esta questão coloca-se a propósito de duas recentes leis aprovadas na Assembleia Nacional: a Lei da Segurança Nacional (Lei n.º 15/24, de 10 de Setembro) e a Lei contra a Vandalização dos Bens Públicos (Lei n.º 13/24, de 29 de Agosto).
A discussão destas leis levantou acalorados debates e disputas, parecendo existir apenas uma posição extremada de cada lado da contenda: ou as leis eram totalmente inconstitucionais e deveriam ser puras e simples erradicadas, ou eram perfeitas e não havia nada a alterar.
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A realidade, porém, é outra. Ambas as leis suscitam discussão sobre determinadas inconstitucionalidades, que precisam de ser extirpadas ou esclarecidas, mas, ao contrário do que tem sido descrito, não são monstruosidades draconianas. Talvez por essa razão, a UNITA, o principal partido da oposição, absteve-se na votação final de ambas as leis, não votando contra.
Nesse sentido, é importante distinguir entre uma aproximação maximalista e uma visão minimalista da inconstitucionalidade.
A inconstitucionalidade não é uma questão política ou de gosto, é uma questão técnica e traduz-se, em termos simples, na desconformidade de uma norma legal com uma norma constitucional.
A Constituição é a norma suprema e, por isso, é necessariamente geral, apoiada sobretudo em princípios e em indicações esparsas sobre as principais regras que devem predominar num país. Isto quer dizer que, pela sua natureza, na Constituição não há uma resposta directa a todas as questões legais e o esforço interpretativo é simultaneamente maior e mais cuidadoso do que na interpretação de uma lei. Estão sempre em causa os fundamentos do Estado, da liberdade dos cidadãos e do funcionamento das instituições.
É por isso que se defende uma aproximação minimalista e técnica às questões de inconstitucionalidade, libertando-as tanto quanto possível da carga política.
O melhor contributo que se pode dar para uma vigência justa da Lei da Segurança Nacional e da Lei Contra a Vandalização dos Bens Públicos é apontar concreta e especificadamente as suas possíveis inconstitucionalidades, para levar a que o Tribunal Constitucional se pronuncie efectivamente, e não lançar anátemas generalizados que misturam tudo e nada resolvem.
Como escrevia com beleza o poeta Camões num soneto, “o mundo todo abarco e nada aperto”. Quem opta por uma visão maximalista das inconstitucionalidades está como o eu lírico do soneto camoniano: tudo abraça e nada aperta.
Assim, de forma sumária, para se apertar e não ficar pelas palavras gerais, enumeram-se em seguida as principais inconstitucionalidades que se vislumbram nas referidas leis.
Em relação à Lei da Segurança Nacional – na versão da proposta de lei e não a versão final –, entendia-se que o artigo 40.º (Dever especial de colaboração) seria inconstitucional, por estabelecer um dever de denúncia geral de ameaças à segurança nacional, as quais não eram bem especificadas e apenas vagamente enunciadas. Por sua vez, os artigos 39.º (Dever de colaboração) e 36.º (Medidas de prevenção) não pareciam estar feridos de inconstitucionalidade (embora a questão possa ser debatida), uma vez que, pela sua redacção, não aparentavam ser normas preceptivas, ou seja, não impunham um comando jurídico. O art.º 39.º criava um dever cívico e patriótico de colaborar na persecução dos objectivos de segurança nacional, e não um dever legal e muito menos sancionado. O artigo 36.º – aquele que mais celeuma levantara, por aparentar atribuir amplos poderes às forças de segurança –, na realidade, não atribuía novos ou diferentes poderes às forças de segurança, apenas fazia uma enumeração daqueles que já estavam previstos noutras leis e na Constituição.
Tudo isto se explicitou em artigo neste portal (https://www.makaangola.org/2024/02/lei-da-bufaria-generalizada/)em Fevereiro passado.
A verdade é que, conhecida a versão final, publicada do diploma (I série, n.º 174, 10 Setembro de 2024), se verificou que a discussão na especialidade na Assembleia Nacional foi profícua, e a lei promulgada já tem extirpados os principais problemas anotados.
Assim, o artigo que mais celeuma provocou – o famoso artigo 36.º sobre as medidas de prevenção – deixou de existir. Igualmente, o antigo artigo 40.º acerca do dever especial de colaboração, que intitulámos, artigo da “bufaria generalizada”, foi transformado no artigo 37.º, com um alcance tipificado e baseado em lei expressa, afastando os fantasmas de um dever de denúncia absurdo.
No entanto, o artigo 39.º, que se dedicava ao dever de colaboração patriótico e cívico com os serviços de informação, manteve-se, agora como artigo 36.º. Entende-se que este artigo não cria qualquer dever jurídico e o seu incumprimento não acarreta qualquer sanção. Em todo o caso, uma apreciação constitucional do tema seria esclarecedora.
A novidade está no artigo 35.º, que deu uma redacção diferente ao que antes era o artigo 38.º, que estabelecia um dever de participação do cidadão no sistema de segurança nacional, concretizando em que é que se traduziria essa participação: “[n]o cumprimento da prestação de serviço na Defesa Nacional, na Segurança Pública e Ordem Interna”. O actual artigo 35.º é curto, determinando que “o cidadão nacional tem o dever de participar na concretização dos objectivos da Segurança Nacional, nos termos da Constituição e da Lei”. Tornou-se uma norma demasiado vaga e genérica, que pode permitir ao aplicador uma margem de latitude pouco definida.
Em conclusão, a forma definitiva da Lei de Segurança Nacional não apresenta os perigos antecipados na sua versão inicial, antes da discussão pública e legislativa, demonstrando que a discussão cívica e pública dos temas é fundamental. Foi modificada para bastante melhor. Contudo, em termos de segurança jurídica, seria benéfico ver bem definida a interpretação dos artigos 35.º e 36.º.
Quanto à Lei do Vandalismo, há dois artigos que preocupam: o art.º 7.º (Destruição de infra-estruturas ou meios de transportes rodoviários, ferroviários e náuticos públicos) e o art.º 9.º (Promoção do vandalismo de bem e serviço público).
Estes artigos têm dois problemas. Em primeiro lugar, prevêem a aplicação da pena máxima, 25 anos, o que é desproporcional. O princípio da proporcionalidade, consagrado constitucionalmente logo no art.º 2.º da Constituição, estabelece um equilíbrio entre o crime e sua punição para estabelecer a justiça penal. Não tem sentido que a destruição de bens públicos seja equiparada ao genocídio ou ao homicídio qualificado.
Em segundo lugar, propõem um carácter vago do tipo incriminatório, o que viola o princípio da legalidade criminal (artigo 65.º da CRA). O princípio da legalidade criminal inclui a chamada tipicidade criminal. A tipicidade impede que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insusceptíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime. Há uma exigência constitucional de determinabilidade do conteúdo da lei criminal, quer para que o cidadão perceba bem os comportamentos que não pode ter, quer também para evitar a arbitrariedade na aplicação da lei.
Em resumo, e segundo a perspectiva minimalista de inconstitucionalidade que aqui se defende, o Tribunal Constitucional deveria ser chamado a pronunciar-se sobre os artigos 35.º e 36.º da Lei de Segurança Nacional por uma questão de fixação da interpretação constitucional, e acerca d
os artigos 7.º e 9.º da Lei contra o Vandalismo de Bens Públicos.
Maka Angola
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