O Semanário Angolense fez sempre por demarcar-se das manifestações de bajulação e adulação que meio mundo foi concedendo a José Eduardo dos Santos no decurso do seu consulado como Presidente da República.
Quando as datas do aniversário de JES se constituíam em férteis ocasiões para gigantescas filas no Palácio da Cidade Alta, aonde acorriam – pressurosos e para o beija-mão da ordem – toda a sorte de dignitários angolanos, entre políticos, juristas, economistas e outros, o jornal procurou, invariavelmente, alertar para os perigos de uma tal conduta para o futuro de Angola.
Foi esse comportamento que deu lugar ao “Eduardismo”, fenómeno que no extremo permitiu que JES assumisse tamanha discricionariedade na condução do Estado angolano, com as consequências nefastas que todos vimos: má-governação, corrupção e peculato em níveis estratosféricos, injusta partilha dos recursos nacionais e muita desigualdade entre os cidadãos.
O tempo passou e mesmo com JES fora do poder, os efeitos perniciosos do “Eduardismo” perduram de forma pegajosa, comprometendo a caminhada de Angola e dos Angolanos.
Pior ainda é a conduta de ratos de porão que se assiste entre as antigas clientelas e aduladores de JES. Leiam bem e vejam como o Semanário Angolense avisou que aqueles que foram ontem os “bobos da corte” do ex-Presidente – desmanchando-se em momices, cinismo e hipocrisia –, seriam os primeiros a saltar do navio assim que JES largasse o leme.
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“Não é difícil perceber que muitos dos que hoje erguem mais alto os megafones para bajularem o presidente da República são, provavelmente, os mesmos que, se pudessem, lhe virariam as costas na primeira esquina – se coisa pior não lhe fizessem. Alguns dos que têm contas do passado a ajustar com o Presidente (e disso costumam dar conta em círculos privados), nomeadamente antigos colaboradores directos de que José Eduardo dos Santos se livrou como fraldas descartáveis, ou líderes parlamentares desautorizados, nos últimos dias foram vistos a derramar elogios à “excepcional” capacidade de liderança e trabalho do Presidente. No fundo, são as mesmíssimas pessoas que se deixam consumir por ardentes e indisfarçáveis desejos de vingança. Ora, isso não é hipocrisia e falsidade?” – escreveu o “SA” na sua edição 179, são hoje transcorridos 14 anos.
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(SEMANÁRIO ANGOLENSE Nº 179, DE 02 A 09 DE SETEMBRO DE 2006)
Até os intelectuais caíram no ardil da adulação
exagerada do PR na celebração do seu aniversário
O PECADO CAPITAL
DA POLÍTICA À ANGOLANA
Por SEVERINO CARLOS
PREMISSA ERRADA: O Presidente José Eduardo dos Santos constitui a nata do pensamento político, intelectual e técnico do país.
PRIMEIRA ILAÇÃO: Não é a melhor via para aglutinar saber, vontades e energias dos cidadãos, colocando-os ao serviço do desenvolvimento do país.
SEGUNDA ILAÇÃO: O jogo político sai a perder, pois continuará a ser a mesma modorra, sem chama nem vitalidade por parte dos seus actores.
TERCEIRA ILAÇÃO: Subversão da alternância. O político é como o pugilista: não sobe ao ringue se sabe de antemão que não aguentará um só assalto.
Quando tudo parecia indicar que as celebrações do 64º aniversário do Presidente angolano seriam menos ruidosas do que em ocasiões anteriores, a desilusão acabou por tomar conta do país. Este ano, a gritaria e a comoção que sempre foram evidências de um desusado culto de personalidade, que só países como a Coreia do Norte, de Kim Il Jong, e Cuba, de Fidel Castro, continuam a cultivar, abriram a porta para algo de mais perverso e preocupante nas relações de poder em Angola: a existência de uma profunda hipocrisia e perfídia entre os actores políticos, o que não augura nada de bom para o país nestes tempos.
Antes, a bajulação e o culto à personalidade, apesar de serem indesejáveis, eram menos nocivos quando vistos no contexto da época, dominado pelo conflito armado. Um quadro mais mitigado de liberdades e garantias induzia uma “tácita aceitação” do fenómeno pela generalidade dos cidadãos. Já o que está a acontecer hoje segue a todos os títulos contra a corrente.
É bom que se esclareça que o aniversário de José Eduardo dos Santos, que antes de mais é cidadão e homem, pode e deve continuar a ser comemorado com festa e o champanhe da ordem. Mas seria de bom-tom que tal acontecesse num ambiente mais privativo, a que podem ir políticos, médicos, juristas, empresários, eclesiásticos, enfim personalidades que privem com ele, e que até lhe podem manifestar a deferência que por ele nutram, mas de maneira mais recatada.
Ora, o que vimos não foi nada disso e acabou por ultrapassar todos os níveis de racionalidade e decência. Intelectuais de reconhecido prestígio como juristas, economistas e outras personalidades de inegável reputação curvaram-se em manifestações públicas de adulação ao Presidente que já ninguém achava possíveis nestes tempos. Pior é que muitos tentaram passar à opinião pública uma visão do Presidente próxima da de um “supra-sumo”, aquele que sabe tudo e é infalível. É o “artífice da paz”, é o “garante da estabilidade do país”, “pilar das relações entre os Estados” e outra ladainha idêntica encheram, até um nível próximo da náusea, os ouvidos das pessoas.
Num ambiente de maior tolerância e abertura democrática, de menos medos e receios como se supõe ser o presente, a data até poderia prestar-se exactamente a que os intelectuais mergulhassem num exercício de cidadania, fazendo um balanço desapaixonado da magistratura exercida por José Eduardo dos Santos nestes 27 anos.
Aceita-se que o Bureau Político do MPLA carregue o seu chefe ao colo, realçando apenas as suas virtudes. Mas muita gente que esteve envolvida nesse salamaleque desperdiçou uma excelente oportunidade para prestar melhor serviço à Nação, dizendo o que verdadeiramente pensam do Presidente, com que o ajudariam, ao mesmo tempo, a ter uma visão mais autocrítica do seu consulado.
O momento podia não ser muito propício a um terçar de armas entre oposição e poder. Mas não é aceitável que até alguns líderes oposicionistas se tenham predisposto a “fazer a corte” a José Eduardo dos Santos, realçando mais as virtudes do que os seus pontos fracos. Na realidade, o que seria elegante e mais politicamente correcto para a oposição era não passar da saudação formal, abstendo-se de tecer juízos de valor.
Temos assim uma peça política de péssimo gosto, por via da qual se passa a ideia de os cidadãos deste país deixaram de pensar e que o exclusivo do raciocínio repousa num só homem, José Eduardo dos Santos, guindado à posição de última reserva da Nação. São momentos de pobreza e pequenez de espírito como os que acabámos de assistir que fazem com que muitas pessoas descreiam do futuro deste país.
Atribuir à pessoa do Presidente da República a nata do pensamento político, intelectual e técnico não é a melhor via para aglutinar saber, vontades e energias dos cidadãos, colocando-os ao serviço do desenvolvimento do país. O jogo político também sai a perder, pois a perspectiva é que ele continue a ser a mesma modorra de sempre, sem chama nem vitalidade por parte dos seus actores. Mas é também o espírito de alternância política que o conceito de democracia encerra que fica subvertido. Adianta a um pugilista subir ao ringue quando ele já está antecipadamente convencido de que não se vai suster nas pernas mais do que um assalto?
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Momices com cinismo e hipocrisia
PERIGOSOS “BOBOS DA CORTE”
O esmero com que certos dignitários do país se entregam à tarefa de bajular o Presidente da República, acabando mesmo por concorrer com os integrantes de grupos como o Movimento Nacional Espontâneo, é um comportamento que contém uma grande carga de hipocrisia. Grande parte dos que se mostram hoje “derretidos” por José Eduardo dos Santos fazem-no de forma fingida.
O que se viu por aí em doses industriais é, por um lado, refluxo de um sentimento de “gratidão” que muitos têm por alguém ao qual “devem” a ascensão social, política e financeira. Mas, por outro, é um comportamento que encerra um medo permanente e mórbido: o mesmo José Eduardo dos Santos que os guindou aos píncaros dos corredores do poder também pode facilmente, e sem o mais leve peso de consciência, apeá-los.
Na realidade, muitos a ele devem particularmente a fama, o dinheiro, o prestígio e a influência que têm no interior do “establishment” angolano. Daí que cerrem agora fileiras e façam coro com a habitual horda de aduladores do Presidente. Mas a gratidão, neste caso, vive paredes-meias com raiva e frustração incubadas por se sentirem prisioneiros de José Eduardo dos Santos.
Não é difícil perceber que muitos dos que hoje erguem mais alto os megafones para bajularem o presidente da República são, provavelmente, os mesmos que, se pudessem, lhe virariam as costas na primeira esquina – se coisa pior não lhe fizessem. Alguns dos que têm contas do passado a ajustar com o Presidente (e disso costumam dar conta em círculos privados) nomeadamente antigos colaboradores directos de que José Eduardo dos Santos se livrou como fraldas descartáveis, ou líderes parlamentares desautorizados, nos últimos dias foram vistos a derramar elogios à “excepcional” capacidade de liderança e trabalho do Presidente. No fundo, são as mesmíssimas pessoas que se deixam consumir por ardentes e indisfarçáveis desejos de vingança. Ora, isso não é hipocrisia e falsidade?
No fundo, é esse comportamento que engendra o ambiente pouco saudável que tem caracterizado a nossa política. Vivendo em equilíbrio instável e permanentemente receosos do dia seguinte, os protagonistas da nossa política escudam-se não no trabalho honesto e sério para se manterem nos postos, mas no fomento de um clima de intriga e delação de uns e outros. Todavia, muitos deles partem de uma premissa errada quando menosprezam a sua própria competência técnica e intelectual e passam a atribuir um peso maior ao acto de bajular o Presidente como meio para a ascensão e manutenção do “status” conquistado.
A observação empírica do comportamento-tipo de José Eduardo dos Santos já demonstrou que ele gosta realmente dos seus aduladores de serviço, mas não é escravo dos que o fazem permanentemente. Muitos dos que mais se esmeraram a fazer-lhe o papel de “bobos da corte” já não estão à sua cintura: desfez-se deles na primeira ocasião que teve.
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Lei universal do poder de que
os nossos políticos fazem tábua rasa
NÃO OFUSQUE O BRILHO DO MESTRE
Os políticos angolanos que mais se esfalfam em manifestações esfuziantes de adulação ao Presidente da República na expectativa de, desta maneira, o agradarem e subirem mais uns degraus na sua consideração, provavelmente nunca leram “As 48 Leis do Poder”, de Robert Greene e Joost Elffers. Se o tivessem feito saberiam, seguramente, que a bajulação excessiva pode ser o caminho mais curto para caírem do pedestal, sobretudo quando daí resulta que o brilho do superior hierárquico cuja simpatia queremos conquistar fique ofuscado.
“Não ofusque o brilho do Mestre” é a primeira de um conjunto de 48 leis do poder compiladas por Greene e Elffers, que tiveram por base acontecimentos e factos que em três mil anos de história da humanidade envolveram reis, políticos, generais, diplomatas e religiosos, bem como cortesãs, bandidos e charlatães. Basicamente, esta lei enuncia que quando se pretende adquirir ou manter poder devemos proceder sempre de forma que as pessoas acima de nós se sintam confortavelmente superiores.
Querendo agradar ou impressionar, não devemos exagerar exibindo nossos próprios dotes e talentos sob pena de lograrmos exactamente o inverso: inspirar medo e insegurança. Enfim, um passo para alcançar poder num ápice, garantem Robert Greene e Joost Elffers, é fazer com que os nossos mestres pareçam mais brilhantes do que são na realidade.
Sem saber, Nicolas Fouquet, ministro das Finanças de Luís XIV nos primeiros anos do seu reinado, transgrediu essa regra quando deu uma festa imponente, jamais vista até então em Paris, para agradar o rei e assim o levar a nomeá-lo sucessor do primeiro-ministro, Jules Mazarin, que havia falecido. Fouquet era inteligente e indispensável ao rei, mas logrou um efeito contrário. Depois da festa, quando pensava que havia conquistado a simpatia do rei, foi preso no dia seguinte e condenado ao ostracismo pelo resto da vida.
Mesmo sendo uma bajulação, a festa fez o ministro parecer mais importante que Luís XIV, o rei-sol, um homem orgulhoso e arrogante que queria sempre ser o centro das atenções. Não suportava ser superado em prodigalidade por ninguém, e certamente isso se punha também em relação ao seu ministro das Finanças.
Para o seu lugar, Luís XIV escolheu Jean-Baptiste Colber, um homem famoso pela sua parcimónia e por promover as festas mais insípidas de Paris, ao contrário de Fouquet que era um homem generoso, gostava de festas pródigas e faustosas, mulheres bonitas e dinheiro. Na festa que deu para bajular o rei, o ministro das Finanças acabou por ser a estrela da noite. Cada sorriso de apreço dos convidados dirigidos a Fouquet, fazia Luís XIV achar que os seus próprios amigos e súbditos estavam mais encantados com o ministro das Finanças do que com o rei, e que Fouquet estava na verdade ostentando a sua riqueza e poder. Assim, em lugar de lisonjear Luís XIV, este sentiu-se ofendido na sua vaidade e logo manobrou para se livrar do homem que, inadvertidamente, o fizera sentir-se inseguro.
“É este o destino, de uma forma ou de outra, de todos aqueles que desestabilizam a noção de identidade do mestre, arranham a sua vaidade, ou o fazem desconfiar da própria superioridade” – sentenciam Greene e Elffers. O caso adapta-se à realidade angolana, onde temos nestes dias um sem-número de dignitários a acenarem o Presidente da República com excessiva lisonja, esquecendo-se que esse comportamento poderá não ser inteiramente do agrado do Chefe.
José Eduardo dos Santos já demonstrou, de resto, ser um político e um homem como outro qualquer. Pode não ser tão exuberante no castigo como Luís XIV foi com o seu ministro das Finanças, mas também detesta ter a impressão de estar a ser passado para trás. Em política isso até chega a ser humano. Foi o que aconteceu quando Fernando Miala tentou ter mais protagonismo do que devia. Miala pensava, certamente, que tinha a aprovação do Chefe, mas o que veio a revelar-se mais tarde é que este estava agastado até à medula.
Ou seja, mesmo não se tendo provado que Miala pretendesse suplantar o PR, certo é que à determinada altura acabou por ofuscar o brilho do Mestre. Com essa machadada na regra foi o suficiente para fazê-lo vir por aí abaixo com o estrépito que todos tivemos a oportunidade de observar. Assim, as manifestações de lisonja que muitos continuam a conceder a JES poderão não compensar. É um filme já visto.
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