Sons, Poder e Conhecimentos africanos. Potencialidades, desafios e possibilidades descoloniais dos arquivos históricos sonoros sobre África



Entre finais do século XIX e primeiras décadas do século XX, o espaço das colónias europeias em África tornou-se objeto de diversas expedições/missões científico-culturais que incluíram a recolha, gravação e estudo do designado ‘folclore africano’, como músicas e danças ‘tradicionais’, contos, provérbios, e também línguas africanas. Estas iniciativas tinham como destino territórios rurais africanos e foram desenvolvidas por vários atores, entre os quais antropólogos, arqueólogos, exploradores, funcionários e administradores coloniais, missionários, linguistas ou etnomusicólogos. No contexto colonial europeu da África Subsariana, estas expedições articularam ideais de ‘autenticidade’, ‘tradição’ e ‘pureza’, com ideias de raça, de ‘primitivismo’, de ‘exotismo’ e de ‘tribalismo’, conciliando motivações filológicas, científicas e políticas (Nhaitani, 2010; Valentim, 2022). Informadas pelo ideário europeu da missão civilizadora e de salvação, grande parte dessas expedições serviu aos estados coloniais europeus como modo de ocupação colonial dos territórios, dos corpos e das mentes. 

Nos territórios ultramarinos portugueses em África, estas pesquisas foram intensificadas no período a seguir ao pós-guerra e ao longo do colonialismo tardio (Valentim, 2022), tendo algumas expedições de etnomusicologia prosseguido no período da pós-independência.
Os arquivos sonoros produzidos no âmbito destas expedições/missões a África ainda são sobejamente desconhecidos pela academia e pelo público mais vasto e, acima de tudo, pelas nações africanas e pelas próprias comunidades rurais que foram alvo destas iniciativas. Atualmente, estes arquivos e fontes documentais associadas (texto, filmes e fotografias) encontram-se, na sua grande maioria, em instituições localizadas fora dos países africanos onde foram originalmente produzidos, nomeadamente no espaço das ex-metrópoles, nos países que patrocinaram as expedições, ou ainda em instituições especializadas localizadas na África do Sul ou no Gana (Agawu, 2003).



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Estes arquivos sonoros africanos são bastante específicos e têm colocado várias preocupações a quem tem investigado com eles. Em que condições de preservação se encontram? Quem pode ter acesso a estes arquivos? De que formas as vozes, línguas, oratura popular, danças e canções gravadas há cerca de 40, 50 ou 70 anos constituem fontes históricas importantes para compreender dinâmicas identitárias coloniais e/ou da pós-independência? Que legados podem ter hoje estes acervos sonoros no seio das comunidades africanas? Quais as perspetivas africanas sobre estes arquivos produzidos sobre África? Como podem contribuir os sujeitos africanos para resignificar estes patrimónios sonoros a partir de África?
Como sabemos, os arquivos coloniais fazem parte do que o escritor e filósofo congolês Valentin Mudimbe designa de “biblioteca colonial” (Mudimbe, 1988: 175). 

Na aceção de Foucault, trata-se de um conjunto de conhecimentos que produziram poder ao definirem, situarem e hierarquizarem as identidades do colonizado e do colonizador, regulando assim sociabilidades e criando subalternidades. Porém, se analisados nos seus interstícios, os arquivos não documentam apenas práticas de dominação, mas também fragilidades, ansiedades, colaborações, processos de poder e contra-poder (Stoler, 2010). 

Para lá disso, os arquivos históricos sonoros permitem ter em conta subjetividades e dinâmicas políticas reveladas pelas vozes e paisagens sonoras gravadas que, de outra forma, não seria possível aceder (Hoffman, 2023; Valentim, 2022).
Porém, torna-se necessário escutar não só os arquivos, mas também os testemunhos orais de quem foi intérprete das gravações sonoras, ou seus descendentes. Assim, os arquivos históricos sonoros permitem aceder à dimensão acústica, ontológica e política do passado em articulação com diversas outras fontes, como fotografias, textos e memórias orais, abrindo caminho para revelar narrativas ausentes no arquivo, e interpelando ou complementando as memórias oficiais sobre o passado colonial (Valentim, 2022). A investigação com comunidades africanas tem sido feita através de metodologias colaborativas e participativas interdisciplinares que articulam trabalho de campo etnográfico, recolha de história oral e escuta partilhada dos registos sonoros com as comunidades onde, originalmente, essas coleções sonoras foram gravadas (ver Hoffmann, 2023; Lobley, 2010; Valentim, 2016, 2018, 2022).


Estes acervos não só remetem a um passado específico como também ao presente e ao futuro, no sentido em que influenciam o nosso olhar sobre a história e sobre as formas de atuar hoje e desejar outro amanhã possível. Considerando que o arquivo histórico é uma construção política e social, e tendo como ponto de partida investigações realizadas com arquivos sonoros africanos que foram produzidos no âmbito de expedições/missões a África, em vários países, tanto no período colonial como logo a seguir à independência, este painel convida à discussão de várias temáticas, entre as quais: dilemas e desafios da investigação com estes acervos; estudos de proveniência destas coleções e arquivos; práticas de dominação colonial, violências, agencialidade e estratégias de resistência africana; legados coloniais dos arquivos históricos sonoros, continuidades e descontinuidades; uso de metodologias participativas e colaborativas; processos e políticas de patrimonialização de culturas expressivas africanas, e sua relação com identidades nacionais, culturais e étnicas; possibilidades de descolonização e de reparação histórica.

Referências Bibliográficas:

Agawu, Kofi (2003), Representing African Music. Postcolonial notes, Queries, Positions. London: Routledge.
Hoffman, Anette (2023), Listening to Colonial History. Echoes of Coercive Knowledge Production in Historical Sound Recordings from Southern Africa. Basel: Basler Afrika Bibliographien.
Lobley, Noel (2010) The Social Biography of Ethnomusicological Field Recordings: Eliciting Responses to Hugh Tracey’s The Sound of Africa series. Tese de doutoramento. Oxford: University of Oxford.
Mudimbe, Valentin Yves (1988), The Invention of Africa. Gnosis, philosophy, and the order of knowledge. USA: Indiana University Press.
Naithani, Sadhana (2010), The Story-Time of the British Empire: Colonial and Postcolonial Folkloristics. Jackson: University Press of Mississippi.
Stoler, Ann Laura (2010), Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial Common Sense. Princeton: Princeton University Press.
Valentim, Cristina Sá (2016) “Ciwewe. Cultura y poder en una canción cokwe del este de Angola colonial, 1955”, Revista de Antropología Social. 25, 2: 281-316.
____ (2018) “Entangled voices, lived songs. Mwambwambwa, a Cokwe song recorded in 1954 at colonial Lunda, Angola” in Pemunta, Ngambouk Vitalis (org.) Concurrences in Postcolonial Research. Perspectives, Methodologies, and Engagements. Stuttgart: ibidem-Verlag Press, 221-264.
____ (2022) Sons do Império. Vozes do Cipale: Canções cokwe e Memórias do Trabalho Forçado nas Lundas, Angola. Luanda: FAAN

Por: Cristina Sá Valentim

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

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Nina Baratti

Universidade de Harvard

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