Os primeiros anos de estudo exigiram que Valentim Amões percorresse distâncias enormes entre a aldeia e a escola – primeiro no Cachiungo e depois na emblemática Missão do Dondi – frequentemente com o risco de cruzar-se, pelo caminho, com leões e outras feras que, à época, abundavam por aquelas paragens
O ancião Felisberto Muenekongo Amões, falecido aos 107 anos em Agosto de 2018, foi o último grande patriarca do clã Amões. Passou a vida basicamente de enxada em punho e a amanhar o gado nos campos verdejantes do Huambo, o planalto central de Angola. Enquanto viveu, houve um episódio que sempre teve na memória: o dia em que o mais ilustre das suas várias dezenas de netos levou-o a dar o maior e mais curioso passeio da sua existência.
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O neto foi buscá-lo à aldeia, na Camela, num imponente automóvel. Entregou-lhe uma mala e pediu que arrumasse nela a sua roupa – não muita – e pouco depois rumaram para a cidade do Huambo. Após breve paragem, para esticar os ossos numa vivenda do neto, viu-se novamente dentro do carro-mundo que o tirara da aldeia. Mas, desta vez, quase não houve paragem. O ancião, o neto, alguns acompanhantes e até o próprio carro acabaram no interior do que ele poderia comparar a um grande pássaro. Mas não era um pássaro. Tratava-se, na verdade, de um avião. Já os vira a esvoaçar, muitas vezes, nos céus da aldeia.
Cerca de uma hora depois aterravam então na maior cidade que já vira: Luanda. E menos de meia hora depois entrava, com o ilustre neto e o carro imponente, numa majestosa vivenda onde, finalmente, acabou boquiaberto com os outros automóveis que vira estacionados no quintal.
Naquele momento, o ancião Felisberto Muenekongo tinha a prova de todas as provas de que aquele neto, que deixara a aldeia da Camela há muitos anos, ainda garoto agarrado às calças do pai, seu sobrinho, transformara-se realmente numa “pessoa grande”. Um orgulho para toda a família de humildes aldeões que vivia do cultivo do campo e do pastoreio de bois e cabras no interior da província do Huambo. Este neto ilustre, que simbolizava o apogeu e crescimento da família, chamava-se Valentim Amões! Nome de um “grande homem”. Empresário de sucesso que enchia de orgulho todos os membros do clã, de que se tornara o provedor. E provavelmente até mesmo os ancestrais falecidos.
Mas a vida está repleta de ironias. Muitas fatídicas. Depois do ancião ter retornado à Camela, para contar às suas gentes as lembranças que lhe ficaram do passeio à grande cidade em que o neto vivia, não se passara muito tempo até chegar a notícia que todos se recusaram a aceitar: Valentim Amões já não fazia parte do mundo dos vivos. Partira sem ter tido tempo de pagar a promessa que fizera ao ancião, ainda em Luanda, de que lhe daria um grande automóvel. A concretizar-se a oferta, teria sido a paga, simbólica, daquilo que o patriarca do clã fizera pelo núcleo de Valentim Amões.
Há muitos anos, Felisberto Muenekongo, ainda jovem e robusto, também fora o provedor do clã. O episódio ficara gravado na retina do ancião. Certo dia ele oferecera três bois ao pai de Valentim: um para comer, outro para vender e sustentar a escola dos filhos e o último para o cultivo. Na verdade, nenhum automóvel de tempos modernos teria valor bastante para apagar da memória dos membros da família o significado daquele episódio. Ainda que seja uma película que ficou distante no passado, ela guarda muitas similitudes com o tempo presente.
CAMELA, HUAMBO E LUANDA
O empresário Valentim Noñani Amões nasceu a 4 de Julho de 1960 na aldeia da Camela, município de Cachiungo, província do Huambo. Membro de uma família rural de estilo jacobino, foi o terceiro de sete irmãos, todos rapazes. A única mulher do núcleo familiar era a mãe, Rosa Navio.
“E foi também o mais inteligente entre os seus amigos de infância aqui na aldeia de Camela”, como conta Benita Tchileñe, tia paterna do empresário. Mas lembra-se, sobretudo, que ele não fazia acepção de ninguém.”Valentim via a todos os amigos como iguais. Não os distinguia por famílias e partilhava com eles o pouco que tinha. Também tinha a particularidade de detestar as brigas e zaragatas de miúdos – o que não significava que fosse um fracote. Pelo contrário, intervinha quase sempre para aconselhar e repor a ordem!”, assegura.
Benita Tchileñe vive até hoje na Camela e sente orgulho em ver as transformações que foram operadas na aldeia pela mão do empresário Segunda Amões, um dos irmãos mais novos de Valentim, que, no entanto, veio a falecer em 2020. Camela deixou de ser a típica aldeia rural de Angola onde falta tudo. Actualmente, os seus habitantes podem desfrutar de uma qualidade de vida que ultrapassa os padrões de um sem-número de localidades periurbanas do país. Na paisagem antigamente salpicada por frágeis e pobres cabanas surgiram sólidas e cómodas moradias de padrão médio, com água corrente e luz eléctrica. Mercearias e escolas – do ensino primário ao preparatório – deixaram de ser coisas que apenas se vêem em cenários urbanos. Duas capelas representativas da tradição religiosa local estão na aldeia; sem falar de um pequeno hospital e outros equipamentos sociais que melhoraram, substancialmente, a vida dos humildes homens e mulheres, crianças e anciãos da Camela.
As mudanças ocorridas na aldeia foram, indiscutivelmente, fruto do espírito visionário de Segunda Amões. Mas Benita Tchileñe – que é uma das beneficiárias do advento da ‘civilização’ nesse rincão de Angola – não hesita em atribuir a paternidade de tais transformações ao génio herdado de Valentim Amões, a criança que antes de se transformar no homem e no protagonista do seu tempo, calcorreou e conheceu a fundo o mato em torno da Camela.
Naquele tempo até feras, como leões, havia nas suas cercanias. Pelo que constituía uma empresa temerária o que Valentim e os irmãos mais velhos, Laurindo e Faustino, eram obrigados a fazer nos seus primeiros anos de estudo. Para irem à escola tinham de enfrentar o mato, correndo muitas vezes o risco de se cruzarem com um animal feroz pelo caminho e serem devorados.
“Muitas vezes, tiveram coragem para frequentar a escola nessas condições. Mas muitas vezes também a coragem dava lugar ao medo e, como crianças que eram, ficavam em casa e não iam à escola”, recorda Benita Tchileñe. De modo que, a certa altura, tiveram mesmo de interromper os estudos. A vida era obviamente difícil nesse tempo. Até chegar o momento da viragem, quando o pai resolveu mudar-se com a família para o Huambo, em busca de uma nova vida.
Na realidade, Valentim e sua família, mesmo depois de terem migrado para o Huambo, nunca se afastaram definitivamente da parentela que ficara na aldeia. Visitavam frequentemente a Camela. Deste modo, os seus habitantes foram acompanhando o crescimento e prosperidade dos que haviam migrado. E ano após ano, cada ida e vinda de Valentim Amões à aldeia natal representava e simbolizava a escada do progresso que ele ia galgando. E sempre que tal acontecesse, Valentim não regateava ajuda a ninguém. Passava de casa em casa deixando o essencial, dos alimentos ao vestuário. Até que um dia desses o viram, já empresário feito, gritando a plenos pulmões: “Agora que estou bem, a minha família nunca mais sofrerá”.
Com efeito, o empresário foi um verdadeiro benfeitor não apenas para a sua própria família, mas também para os habitantes em geral da sua Camela. Plenamente identificado com o chão que o viu nascer e em cujas entranhas ficou enterrado o seu umbigo, Valentim Amões jamais regateou ajuda aos seus. Essa solidariedade foi permanente e proporcional ao seu crescimento e prosperidade como homem de negócios.
Antes de morrer, Valentim Amões prometera transformar a vida em Camela. Porém, não foi a tempo de realizar promessas como as de construir na terra natal escolas, hospitais e até edifícios modernos. Quando a morte o colheu, estavam pelo menos terraplenadas as vias de acesso à aldeia, a partir da localidade do Bailundo. Valentim partira deixando, porém, um forte testemunho nas mãos do irmão Segunda Amões. Este, com argúcia e tenacidade, concretizaria o projecto de transformar o chão dos Amões em ‘terra de gente’, com direito a desfrutar a vida com decência e dignidade.
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