A violência política é um elemento constante em todas as fases da construção dos Estados africanos ao longo das últimas seis décadas.
Desde o dealbar das independências, os Estados africanos foram marcados pela violência política, manifestada quer na perspectiva genética, quer na perspectiva estrutural. A violência de carácter genético é aquela que a doutrina confere ao Estado como seu elemento constitutivo e exclusivo (monopólio) que visa obrigar a respeitar o Direito e a ordem estabelecida. Trata-se da violência que vem designada por coerção.
Já a violência na perspectiva estrutural é aquela que tem que ver com os regimes “en place”. É aquela que podemos designar por “violência contestatária”, que decorre de ameaças securitárias internas visando a mudança de regime ou reivindicações difusas.
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A presente reflexão pretende escrutinar a intensidade e a frequência com que esses tipos de violência são usados, sobretudo, nos regimes autoritários, em África, e suas incidências na construção de regimes democráticos.
O meu propósito é a identificação da violência política como inimiga da democracia e um freio que pode comprometer os propósitos da construção do Estado Democrático de Direito em África.
O continente africano conta hoje com 54 Estados independentes, na sua maioria antigas colónias dos impérios euromundistas. Alguns territórios, entretanto, ainda não foram reconhecidos como países, tais como: a Somalilândia, Mayottte, Azawad, Cabinda, Ogoniland, Barotseland, Casamança, República Árabe Saharaui (fonte Google). A transição da situação de territórios colonizados a Estados independentes nem sempre foi pacífica e, na maior parte dos casos, foi um parto doloroso.
Os conflitos políticos internos, habilmente instigados e apoiados pelos antigos senhores da situação, fizeram eclodir a violência política que tomou várias formas, como sejam as guerras civis, as rebeliões/ insurreições, os golpes de Estado, as rivalidades étnicas, a perseguição dos opositores e sua eliminação física, etc.
Embora vários factores tenham comprometido o progresso dos novos Estados, a violência política foi aquela que mais impactos negativos teve, tendo sido ainda o principal problema que confirma a expressão de René Dumont que intitulou assim uma das suas obras: “L’Afrique Noire est mal partie” (A África negra começou mal).
O autoritarismo - mais ou menos espalhado por todos os regimes africanos – criou Estados com malformação congénita – autênticos mongoloides -, com defeito de fabrico. O advento da transição democrática em África – ainda dentro da “terceira vaga de democratização” preconizada por Samuel Huntington - produziu mais um parto doloroso. A democracia terá conhecido supostas mutações genéticas em África ao ponto de ser causa motriz e geradora de violência política.
No caso de Angola, a democracia foi a “varinha mágica” encontrada nas manobras diplomáticas para resolver o conflito político, ideológico e militar entre o MPLA/Partido-Estado e a UNITA/Movimento rebelde.
Sendo a alternância do poder um dos cânones principais dos sistemas democráticos, e como isso só pode ser aferido pelo voto livre do povo soberano, os processos eleitorais passaram a ser autêntico campo de batalha onde a regra “quem perde, tudo perde e quem ganha, ganha tudo” tem estado a atropelar todos os limites éticos da política, acirrando ainda mais as disputas pelo poder através da violência pós-eleitoral que tem ensombrado o nosso continente.
Para abordar estas constatações trago à liça as seguintes perguntas de partida: Como é que as democracias podem coabitar com a violência política sistemática, alimentada por tendências autoritárias? Será que o sistema democrático pode funcionar como antídoto contra a violência política?
Dentre os politicólogos há vozes que defendem que o autoritarismo seria a melhor coisa para os Estados africanos e que a África não está preparada para a democracia.
Por vezes, a percepção mais vendida em relação aos sistemas políticos em África é aquela de que a África constitui um caso à parte em relação ao resto do mundo.
Assim, pretendo, por um lado, procurar compreender o fenómeno da violência política enquanto expressão dos regimes autoritários no contexto africano e, por outro, ensaiar cenários sobre uma possível inviabilização do Estado democrático de Direito por tendências antidemocráticas.
Temos de diferenciar, previamente, a violência política da violência generalizada. A violência é tão velha como a própria humanidade. Trata-se de uma característica que é conatural ao ser humano. Fala-se da violência no “estado natural” como um fenómeno indiscriminado onde, num período primordial da humanidade, cada indivíduo usava a própria força para a defesa dos seus interesses quando entrassem em conflito com terceiros. Trata-se de uma situação de todos contra todos que Thomas Hobbes traduziu na sua obra “Leviatã”, com a clássica expressão latina de Plautos “homo homini lupus est” (o homem é o lobo do próprio homem).
Segundo J.J. Rousseau, o “estado natural” teria sido depois substituído pelo “estado civil”, que corresponde à “sociedade política” submetida a uma autoridade central, a única com a legitimidade do uso da força (monopólio da violência).
O Estado tem, assim, as prerrogativas exclusivas do uso da violência para a sua sobrevivência.
A nível interno não pode haver outras forças de coacção paralelas ao Estado e com as mesmas prerrogativas.
A violência política ou estatal tornou-se uma realidade que ao longo dos tempos esteve sempre presente como recurso material e ideológico na construção dos Estados, independentemente das formas de governo. Não é um apanágio exclusivo dos regimes autoritários, pois está presente em todas os modelos ou sistemas políticos, desde as mais vetustas monarquias, passando pelas aristocracias medievais, até aos sistemas democráticos contemporâneos.
Uma boa parte dos actuais Estados africanos resulta de algum tipo de violência revolucionária que culminou na ruptura com o status quo (sistemas coloniais). Os novos entes estatais dali resultantes carregam no seu DNA a maldição da violência. Os regimes autoritários são ab initio uma realidade marcada pelo uso da violência política contra os seus cidadãos, algo muito bem traduzido por Simone Weil como “opressão social” que surge como uma antípoda da “sociedade livre”.
Pode um Estado subsistir sem violência?
Para os teóricos da Ciência Política, a violência é um elemento constitutivo do Estado. Desde logo, os Estados não existem sem um poder de coacção que obrigue os cidadãos à submissão/obediência às normas que sustentam a sociedade política. As leis são uma expressão desse poder dos Estados. Os cidadãos não as cumprem porque lhes apraz, mas porque são obrigados a isso, sob pena de serem sancionados: “dura lex, sed lex” (a lei é dura, mas é a lei). Alguma razão tinha também Nicolau Maquiavel que dizia que «Boas leis para nada servem sem boas armas.»
À margem dessa violência, entendida como poder de coacção para o cumprimento das leis, temos a violência política. Esta é aquela que faz do Estado um “leviatã” (monstro), segundo a expressão de Thomas Hobbes. O Estado dispõe da vida e da morte dos seus cidadãos de forma arbitrária, atentando contra a dignidade da pessoa humana e contra os direitos cívicos e políticos. O Estado decide quem deve viver e quem deve morrer, como e quando. O fenómeno do canibalismo político que ensombrou a África independente é disto um exemplo acabado. A purga contra os opositores e dissonantes no Uganda, com Idi Amin Dada, em Angola, com o Agostinho Neto (27 de Maio 1977), no Zimbabwe, com Robert Mugabe, no Zaíre, com Mobutu Sesso Seko, no Congo Brazzaville, com Denis Sassou Nguesso, inter alia, demonstra esse carácter violento do Estado autoritário e securocrata que põe em marcha uma estratégia defensiva e conservadora do status quo perante supostas ameaças, próximas ou remotas, ao poder, que acabam sempre por despoletar acções encobertas (covert actions) de perseguição/eliminação dos indesejados e incómodos.
Em países que tenham abolido a pena de morte, seguem, paradoxalmente, as execuções extrajudiciais e os assassinatos selectivos consumados por órgãos do Estado.
Acontece, entretanto, que a maioria destes Estados, como Angola, adoptou formalmente sistemas político-constitucionais de democracia liberal em que o Estado de Direito é um dogma sagrado. Estão consagradas constitucionalmente a preservação da vida humana - como um valor intangível - a dignidade da pessoa humana e a proibição de todas as formas de tratamento degradante como a escravidão e a tortura. Mas a prática quotidiana desmente tais propósitos. A escalada de violência política praticada nestes Estados penaliza-os liminarmente no ranking internacional da democraticidade. Por isso, nem sequer são tidos como sistemas híbridos, mas como Estados autoritários ou “não livres” (sans rien ajouter après, sans rien de plus). Nestes contextos, as lideranças com fraca/nula aceitação popular recorrem amiúde a expedientes tenebrosos que descambam no endurecimento do establishment para impor o medo civil e não necessariamente o respeito/obediência. «Melhor ser temido do que ser amado» (Maquiavel).
Portanto, a violência política, entendida como tirania, é um dos “inimigos íntimos da democracia” no dizer de Tzvetan Todorov.
Não se constrói a democracia com porretes, kalashnikov ou com bombas, embora os contextos inquinados pela violência possam gerar democracias robustas através de um processo de transição por via revolucionista ou transformativa.
Entretanto, a violência política é um indicador negativo da saúde democrática de uma sociedade. Ela precisa de mecanismos institucionais e estruturais para controlá-la e mitigá-la enquanto fenómeno político.
*Cientista Político Raul Tati/Correio Angolense*
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