Nas últimas eleições angolanas, de 2022, o incumbente não se coibiu de executar vá- rias práticas que desnivelaram as regras do jogo do processo eleitoral, resultando em vá- rios atentados à integridade eleitoral. Conforme a literatura especializada nesta matéria, o menu da fraude ocorre muito antes das eleições e engloba três fases: no processo de preparação das eleições, em que se destacam as alterações das regras; durante a campanha eleitoral, em que se destacam a violência eleitoral, a compra de votos e o agudizar do con- trolo dos media; no pós-eleições, em que se destaca a parcialidade dos órgãos responsáveis pelo contencioso eleitoral. As eleições realizadas em regimes autoritários, como o angola- no, acabam por ser apenas um simulacro democrático, pois violam os requisitos mínimos de uma eleição democrática.
Podemos considerar que a primeira conceção eleitoral angolana ocorreu em 1975, na transição entre o período colonial e a implantação da independência. A realização das eleições, como mecanismo que decidiria qual dos três movimen- tos de libertação (Frente Nacional de Libertação de Angola, FNLA, Movimento Popular de Libertação de Angola, MPLA, e União Nacional para a Independência Total de Angola, UNITA) ascenderia ao poder político, estava prevista nos Acordos de Alvor, assinados entre os seus líderes (Holden Roberto, FNLA; António Agostinho Neto, MPLA, e Jonas Malheiro Savimbi, UNITA) e o governo de Portugal. As mesmas não foram realizadas, pois cada um dos três movimen- tos encarava-se como a única organização legítima para governar o país (Gomes, 2009; Mabeko-Tali, 2018). Esse posicionamento dos três movimentos provocou a guerra pré e pós-independência.
As primeiras eleições vieram a ser realizadas em 1992, 17 anos após a procla- mação da independência, um período marcado pelo belicismo pós-independência entre o governo do MPLA, liderado por José Eduardo dos Santos, e a UNITA, liderada por Jonas Malheiro Savimbi. As eleições legislativas foram ganhas pelo MPLA, com 54% dos votos, seguido pela UNITA, com 34%. A primeira volta das eleições presidenciais foi ganha por José Eduardo dos Santos. Porém, não tendo alcançado a maioria absoluta, a Lei Constitucional estipulava a realização de uma segunda volta. Essa não aconteceu, dado que a UNITA contestou os resultados eleitorais e o país mergulhou novamente numa guerra civil (Almeida & Sanches, 2011; Birmingham, 2015; Hodges, 2001; Pélissier & Wheeler, 2013).
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As segundas eleições foram realizadas em 2008, seis anos depois do fim da guerra, ganhas pelo MPLA, com 81,64% dos votos, seguido da UNITA, com ape- nas 10,39%.
As terceiras eleições ocorreram em 2012. Com uma estimativa de 18 056 072 habitantes, havia uma população em idade eleitoral de 8 554 966 votantes. Nessas eleições, aderiram às urnas 6 124 669 eleitores, perfazendo 62,77% de votos e uma abstenção eleitoral de 37,23%. As eleições tiveram como vencedor o MPLA, com 71,84% dos votos, seguido da UNITA, com 18,66%.
Em 2017 realizaram-se as quartas eleições gerais, com uma participação de 7 093 002 eleitores, num universo de 13 666 186 cidadãos em idade eleitoral e 9 317 294 registados para votar. Com base nesses números, constatou-se uma partici- pação VAT (população em idade eleitoral) de 53,07% e uma afluência às urnas de 76,13%. Verificou-se uma nova vitória do MPLA, com 61,08% contra 26,68% da UNITA.
Em agosto de 2022 realizaram-se as últimas eleições gerais, as mais competi- tivas nas eleições pós-guerra, com uma população total estimada em 34 795 287 habitantes, uma população em idade eleitoral de 15 939 218, tendo sido cadas- trados 14 399 391 eleitores. As eleições foram ganhas pelo MPLA, com 51,17% (perdendo a maioria qualificada), e a UNITA ficou novamente em segundo lugar, com 43,95%.
As suprarreferidas cinco eleições realizadas ficaram marcadas por diversas suspeitas de práticas que configuram situações de manipulação e de fraude elei- toral.
Por exemplo, no dia 2 de outubro de 1992, oito partidos da oposição emitiram uma declaração em que se afirmava que as eleições foram fraudulentas. Além disso, cerca de 1,2 milhões de boletins de votos não utilizados terão desapare- cido de forma misteriosa. As eleições de 2008 também foram tingidas por uma série de irregularidades. No dia 25 de julho de 2008, o recém-criado Tribunal Constitucional divulgou os cinco partidos legalmente aptos a concorrer às elei- ções, isto é: apenas cinco dias antes do arranque oficial da campanha eleitoral (Roque, 2008, p. 7). De acordo com o relatório de observação eleitoral da União Europeia, embora as eleições tenham decorrido em ambiente pacífico, com uma campanha conduzida de forma calma e ordeira (ao contrário das eleições de 1992), observaram-se desequilíbrios que serviram para beneficiar o MPLA, o partido no poder, como o acesso aos recursos públicos e o envolvimento dos governos pro- vinciais e das autoridades tradicionais na campanha a seu favor. Acresce a isso o facto de muitos eleitores terem sido registados fora da área de residência e os cadernos eleitorais terem sido distribuídos muito tarde. A comunicação social do Estado, Televisão Pública de Angola (TPA), Rádio Nacional (RN) e Jornal de Angola (JA), embora tenham cumprido com a atribuição dos tempos de antena estipulados pela Lei Eleitoral, realizaram uma cobertura da campanha eleitoral geralmente tendenciosa (UE, 2008). No essencial, essas situações continuaram a marcar todos os pleitos eleitorais até hoje.
Face ao exposto, o presente artigo avalia, com base na literatura, as diversas ocorrências de práticas formais e informais que podem configurar o “menu da manipulação” eleitoral das últimas eleições angolanas de agosto de 2022. Em ter- mos metodológicos, a pesquisa é conduzida com base nas seguintes questões:
• De que forma detetar as práticas formais e informais que podem configu- rar situações de manipulação e de fraude eleitoral?
• Os resultados eleitorais, divulgados pela CNE, traduzirão, na verdade, a vontade dos eleitores?
A pesquisa é desenvolvida a partir da seguinte expetativa:
Tendo em conta o ambiente social, económico e político em que as eleições de 2022 ocorreram, e tendo em conta os dados do estudo do Afrobarometer em que o autor participou (Afrobarometer, 2022), sustentamos que os resultados divulga- dos oficialmente não traduzem fielmente os votos dos eleitores.
Tendo em conta que os regimes autoritários realizam eleições principalmente para o reforço da legitimidade, interna e internacional (Bunce & Wolchik, 2010; Geddes et al., 2018; Schedler, 2002), torna-se importante a compreensão das di- nâmicas da manipulação e da fraude eleitoral, que contribuem para o descrédito desse tipo de regimes e das eleições por eles realizadas. De igual modo, essa compreensão permite adotar uma série de medidas preventivas nas próximas eleições, o que, por sua vez, poderá contribuir para a democratização do país.
No caso específico de Angola, uma vez que o incumbente está em tendência decrescente no número de votos expressos ao longo dos vários pleitos eleitorais, o domínio sobre as estratégias da manipulação e da fraude e o conhecimento das medidas de combate poderão permitir a possibilidade de as próximas eleições virem a ser o que Keneth Greene denomina “eleições significativas”, ou seja, uma situação em que a “arena eleitoral está aberta [...], embora os controlos autori- tários possam levar à competição abaixo do limiar das ‘eleições minimamente livres’” (Greene, 2007, p. 14). Consequentemente, os partidos da oposição terão mais oportunidades para derrubar o incumbente no contexto da competição elei- toral, desde que sejam capazes de se organizar e realizar campanhas eleitorais capazes de mobilizar os eleitores para votarem na alternância.
Por fim, no contexto da literatura africana, e não só, a presente pesquisa pro- cura contribuir para o preenchimento da lacuna dos estudos sobre a manipula- ção e a fraude eleitoral, pois conjuga a análise qualitativa com a quantitativa.
A pesquisa está estruturada em três partes: análise do estado da arte da mani- pulação eleitoral; análise qualitativa dos mecanismos da fraude; análise quanti- tativa da manipulação eleitoral.
Estado da arte: o “menu da fraude”
O tópico da pesquisa – manipulação, fraude eleitoral e como combatê-la – situa-se num quadro teórico mais abrangente da Ciência Política, que tem que ver com o papel das eleições em contextos de autoritarismo e com o impacto das mesmas na sobrevivência desses regimes.
A preocupação sobre os processos eleitorais em contextos autoritários resul- tou da constatação dos estudos de certos autores como Steven Levitsky e Lucan Way, Andrea Schedler, Scott Mainwaring, entre outros, segundo os quais alguns países da América Latina, não obstante não possam ser caracterizados simples- mente como regimes autoritários, também não estavam em processo de transi
ção para a democracia (Levitsky & Way, 2020; Mainwaring & Pérez-Liñán, 2013; Schedler, 2010).
Para esses autores, a realidade política de países como Venezuela, Peru, Bolívia e Equador traduz um regime político em que os incumbentes dominam de forma desproporcional os recursos do Estado e, com base nisso, realizam elei- ções em que o “campo do jogo” está inclinado a favor dos mesmos, apesar de teoricamente os opositores poderem vencer o incumbente através das ditas elei- ções desniveladas. Esses regimes são caracterizados por representarem autorita- rismos eleitorais ou autoritarismos competitivos.
Relativamente aos autoritarismos competitivos, importa referir a definição de Levitsky e Way, segundo a qual:
Regimes autoritários competitivos são regimes civis, nos quais existem instituições democráticas formais que são amplamente vistas como o principal meio de obtenção de poder, mas nos quais o abuso do Estado pelos governantes os coloca numa vantagem significativa em relação aos seus oponentes. Os regimes são competiti- vos no sentido de que os partidos de oposição usam instituições democráticas para disputar seriamente o poder, mas não são democráticos porque o campo de jogo é fortemente distorcido a favor dos governantes. A concorrência é, portanto, real, mas injusta. (Levitsky & Way, 2020, p. 5)
Quanto aos autoritarismos eleitorais, Schedler define-os como regimes em que:
diversos partidos disputam posições de poder do Estado nacional em eleições re- gulares, que transgridem os padrões mínimos democráticos de forma severa e sis- temática. Esses regimes oferecem melhores perspetivas de sobrevivência política do que as eleições democráticas, bem como melhores perspetivas de sobrevivência física em relação aos regimes militares. No entanto, embora as eleições autoritárias ajudem os governos a aumentar o seu controlo sobre o poder, elas também contêm o potencial de afrouxar as correntes do controlo autoritário. (Schedler, 2010, p. 1)
Alguns autores, como é o caso de Marxell Cameron, apresentam uma receção muito crítica das conceções de regimes que misturam características de regimes autoritários com as dos regimes democráticos. Por exemplo, Marxell considera que o conceito de autoritarismo competitivo apresenta três problemas teóricos: o primeiro é a ambiguidade acerca do significado de um “campo de jogo razoa- velmente nivelado”; o segundo é o estabelecimento de uma definição intermé- dia, i.e., ao invés de começar com uma definição minimalista e procedimental de democracia, adotando uma definição “procedimental mais exigente”; o terceiro refere que o conceito não inclui uma das características essenciais do autoritarismo mo, que tem que ver com a existência de poderes tutelares não eleitos (Cameron, 2018, pp. 3-4).
Tendo em conta que o propósito da nossa investigação não é entrar nos mean- dros da discussão epistemológica desses conceitos, optámos aqui pela utilização do autoritarismo eleitoral, pois, atualmente, o regime angolano mais facilmente se enquadra nos pressupostos desse conceito: o acesso ao poder do Estado tem sido feito regularmente através de eleições que violam os requisitos de uma elei- ção democrática. Essas violações dos requisitos mínimos de uma eleição demo- crática são concretizadas através de esquemas de manipulação e de fraude elei- toral. Como diz Schedler, os autoritarismos eleitorais “praticam o autoritarismo por detrás das fachadas institucionais da democracia representativa” (Schedler, 2013, p. 1).
Existe uma literatura muito vasta sobre as estratégias que os autoritarismos eleitorais utilizam para a manipulação e a fraude eleitoral, de onde se destacam vários autores (Cheeseman & Klaas, 2018; Greene, 2007; Kaya & Bernhard, 2013; Riaz & Parvez, 2021; Schedler, 2002, 2002a, 2010; Schoeman, 2020; Snyder, 2006). De acordo com a mesma, os autoritarismos eleitorais violam os requisitos míni- mos das eleições através de práticas legais (manipulação) e ilegais (fraude), que seguidamente se apresentam.
Exemplos de manipulação
Gerrymandering
Inspirado nas iniciativas do norte-americano Elbridge Gerry, é um método de distribuição dos distritos eleitorais através do qual se asseguram vantagens no número de representantes eleitos. Aplicado à realidade africana, Nic Cheeseman e Brian Klaas apresentam como exemplo o caso do Zimbabwe. Em janeiro de 2008, a direção do órgão responsável pelas eleições apresentou ao Parlamento um relatório onde se propôs redesenhar o mapa eleitoral para aumentar o nú- mero de assentos na Câmara, de 120 para 210. Dessas novas unidades eleito- rais, a grande maioria estava localizada em áreas rurais. Por exemplo, 62 dos 90 novos distritos eleitorais da Assembleia estavam localizados fora das principais cidades, enquanto Bulawayo, a segunda maior cidade do país, recebeu apenas 12 assentos, e províncias rurais, como Mashonaland East, Mashonaland West, Masvingo e Manicaland, ganharam mais de 20. A opção do aumento dos assen- tos nas áreas rurais deve-se ao facto de o incumbente (ZANU-PF) possuir mais apoiantes rurais do que urbanos (Cheeseman & Klaas, 2018, pp. 35-36).
Mudar as regras do jogo
Uma das questões centrais apresentadas nos regimes autoritários eleitorais tem que ver com o papel das instituições nas suas dinâmicas de funcionamento. Michael Bratton, no Formal versus Informal Institutions in Africa, discute a impor- tância relativa entre as instituições formais (conjunto de regras e de procedimen- tos) e informais (regras não escritas embutidas nas práticas quotidianas) (Bratton, 2007). A questão é: sendo os incumbentes autoritários, por que razão se dedicam a executar processos de aprovação de leis?
A problemática da necessidade da manipulação eleitoral ajuda a perceber como os incumbentes autoritários lidam com as instituições. Um incumbente au- toritário sofisticado procura manter sempre uma aparência de um poder legíti- mo, i.e., que está de acordo com as regras e procedimentos institucionais e, para este efeito, tem de conceber uma engenharia institucional que o favoreça. Ora, quando deixa de o favorecer, o próprio altera esse conjunto de regras. É isso que geralmente acontece na arena eleitoral.
A primeira preocupação dos incumbentes, nos períodos antes das eleições, é procurar alterar as leis, ou mesmo a Constituição, no sentido de garantirem van- tagens face aos seus concorrentes. Em África, uma das alterações constitucionais mais frequentes tem que ver com o aumento dos mandatos ou a supressão dos limites de mandatos. É o caso de países como o Ruanda, Camarões, Costa do Marfim e outros. Por exemplo, em 2015, Paul Kagame venceu um referendo que estendeu o número limite dos seus mandatos.
Supressão de eleitores
Os incumbentes autoritários podem fazer uso das instituições (regras) como artefacto para dificultarem a participação eleitoral dos cidadãos afetos à oposi- ção. Por exemplo, e continuando com o caso do Zimbabwe, a ZANU-PF, além do guerrymandering, limitou a emissão de documentos de identidade nas áreas da oposição, ao mesmo tempo que tornou esses documentos essenciais ao acesso a determinados serviços do Estado e à participação eleitoral (Cheeseman & Klaas, 2018, p. 39). Com essa prática, excluem-se certos cidadãos de participar nas elei- ções.
Exclusão política
Os incumbentes autoritários, além de muitas vezes excluírem legalmente alguns cidadãos de votar (apoiantes da oposição), também adotam leis com o propósito de banirem os seus adversários ou assegurarem que certos candida- tos possam ser desqualificados de concorrer a uma eleição. Nic Cheeseman e Brian Klaas apresentam como exemplo o caso de Madagáscar. Sob a presidência de Marc Ravalomanana (2002 a 2009), aprovou-se uma lei segundo a qual os candidatos deviam apresentar as suas candidaturas pessoalmente. Em 2006, na eleição que o reelegeria, teria de ultrapassar um grande desafio, a candidatura de um ex-vice-primeiro-ministro, Pierrot Rajaonarivelo. Acontece, porém, que, para este efeito, Rajaonarivelo, que se encontrava exilado no exterior, primeiro teria de regressar a Madagáscar, pelo que o presidente Ravalomanana, para excluir o seu adversário, apenas teve de impedi-lo de entrar no país, fechando o aeroporto de Toamasina a todo o tráfego aéreo (Cheeseman & Klaas, 2018, p. 42). Um outro exemplo de exclusão é o caso das leis eleitorais do México pós-revolucionário, em que se excluíram da arena eleitoral os partidos regionais e religiosos e os can- didatos independentes (Schedler, 2002a, p. 106).
Exemplos de fraude
Relativamente à fraude eleitoral, é comum estar associada à violação das re- gras de contagem de votos, i.e., a fraude ocorre quando os resultados oficiais não traduzem fielmente as escolhas dos eleitores. No entanto, na generalidade das situações, a fraude ocorre muito antes do dia do sufrágio e resulta, não de um único ato (falsificar os resultados), mas de um conjunto diversificado de práticas ilegais, que desnivela a arena eleitoral, tornando a competição injusta, em situa- ções como:
Compra de votos
Os incumbentes utilizam ilegalmente os recursos financeiros do Estado para a compra de votos dos eleitores, particularmente dos mais pobres; esta prática é especialmente usada junto das comunidades rurais, em que os candidatos in- cumbentes corrompem os líderes tradicionais e estes os ajudam a conquistar o voto dos eleitores.
O controlo dos meios de comunicação social
Os autoritarismos eleitorais, embora formalmente instituam o multipartida- rismo, informalmente governam como “partidos-Estado”, pelo que todos os re- cursos do Estado acabam por estar ao serviço do partido no poder. Aquando da competição eleitoral, os meios de comunicação social públicos, instrumentos fundamentais para a disseminação das mensagens durante a campanha eleito- ral, ficam exclusivamente ao serviço do partido incumbente. Aos candidatos da oposição é-lhes dedicado apenas o tempo de antena exigido por lei. No caso da generalidade dos países africanos, o controlo dos media públicos é muito proble- mático para a oposição, pois a maioria dos eleitores possui poucas ou nenhumas fontes alternativas de informação. Contudo, embora os incumbentes autoritários apostem muito no controlo da comunicação social e na censura, o facto é que, como é descrito por Schedler, os cidadãos não são ingénuos, e a forma flagrante da censura autoritária pode gerar uma reação cínica da população, ao invés de uma conformação política (Schedler, 2013, p. 263).
Violência e repressão
Um dos traços essenciais do autoritarismo é a utilização da violência para a repressão da população, em particular dos militantes da oposição e dos cida- dãos que interpelam publicamente as ações do incumbente. Estes utilizam diver- sas formas de violência, desde exonerações e despedimentos, ameaças, prisões arbitrárias, agressão física ou, mesmo, assassínios. Por exemplo: Paul Kagame tem um histórico de ação de violência contra os oponentes, sejam os residen- tes no Ruanda, sejam os que se encontram no exílio. Recentemente, o regime de Kagame terá sequestrado Paul Rusesabagina, figura da oposição, no Dubai, e submeteu-o a um “julgamento-espetáculo”. Em 2014, Patrick Karegeya, ex-chefe de inteligência de Kagame, foi estrangulado num quarto de hotel, enquanto vivia exilado na África do Sul (The Guardian, 2022).
Falsificação de resultados
As formas mais comuns de falsificação de resultados têm que ver com o enchi- mento das urnas e a adulteração dos boletins de voto, ou das atas das mesas e/ou das assembleias de voto. Em algumas situações, as urnas podem simplesmente desaparecer ou ser substituídas por outras na madrugada. Essas práticas de frau- de mais rudimentares têm o inconveniente de serem mais facilmente detetáveis e denunciadas pela oposição e pelos observadores eleitorais. Por exemplo, nas eleições de 2019 na República Democrática do Congo, de acordo com a conta- gem paralela dos observadores eleitorais da Igreja Católica, as eleições deram ao candidato Fayulu cerca de 60% dos votos. Contudo, a Comissão Eleitoral indicou outro candidato da oposição, Tshisekedi, como vencedor, com 38,6% dos votos, seguido de Fayulu, com 34,8%.
Detetando a manipulação e a fraude eleitoral em Angola
Neste capítulo, por um lado, vamos confrontar o “menu da manipulação” e da fraude eleitoral com o processo eleitoral das últimas eleições angolanas de 2022, por forma a avaliar em que medida o processo angolano viola os requisitos mínimos de uma eleição democrática e, por outro, confrontaremos os resultados
oficiais divulgados pela Comissão Nacional Eleitoral (CNE) com os dados de opinião do Afrobarometer, recolhidos em março de 2022 (Afrobarometer, 2022).
A confrontação entre o “menu da manipulação” e o processo eleitoral reali- zou-se através de um projeto de monitoria do processo eleitoral desenvolvido pelo Observatório Eleitoral do Instituto Superior Politécnico Sol Nascente. A mo- nitoria observou os diversos aspetos das eleições, incluindo as alterações do qua- dro legal, a campanha eleitoral, a cobertura dos meios de comunicação públicos, e o contencioso pós-eleitoral.
A adoção de leis e artifícios legais que garantam ou facilitem a fraude eleitoral
África tem sido, nos últimos tempos, marcada por um ciclo regular de eleições gerais, que, por um lado, pode ser entendido como um indicador de abertura aos cânones de democracia, uma vez que num período de três anos, precisamente de 2019 a 2022, mais de 28 países africanos realizaram eleições, mas, por outro lado, tem sido também marcada por uma tendência progressiva de golpes de Estado, assim como uma inclinação para a alteração legislativa com fundamento na re- forma do quadro da Administração Pública, mas que do ponto de vista prático se constituem como artefactos para a manutenção e tomada do poder de forma prolongada.
Para o caso específico de Angola, a ida às urnas em 2022 foi precedida pela alteração da Constituição da República de Angola e dos principais instrumentos jurídicos que estabelecem os princípios e as regras sobre as eleições gerais, no- meadamente a Lei de alteração à Lei n.o 36/11, de 21 de dezembro – Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais, assim como a Lei que altera a Lei n.o 8/15, de 15 de junho – Lei do Registo Eleitoral Oficioso.
Não obstante este último diploma merecer o consenso dos deputados da opo- sição, a Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais foi fortemente contestada pelos de- putados da oposição, pela classe académica e pela sociedade civil que, de modo genérico, considerou aquele diploma como um recuo no capítulo da democracia, restringindo os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos eleitores, indo em sentido contrário à transparência e à verdade eleitoral.
Conforme veremos em seguida, os diplomas em apreço, a forma como foram propostos e a narrativa de abordagem acabaram por legalizar a fraude.
Em Angola foram alteradas e revogadas determinadas normas através da lei que altera a Lei n.o 36/11 de 21 de dezembro – Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais 2.a revisão/21. Nestas alterações destacam-se três pontos fundamentais a seguir mencionados, que consubstanciam os principais obstáculos à transparên cia e lisura do processo eleitoral, desde logo não permitindo o apuramento dos votos ao nível municipal e provincial.
Na lei eleitoral revogada (Lei n.o 7/04, de 17 de junho), o apuramento dos vo- tos era feito ao nível municipal e provincial (vide Artigo 138.o). Contudo, na nova Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais, o apuramento passou a ser feito apenas ao nível nacional pela Comissão Nacional Eleitoral (Artigo 131.o).
Do não apuramento ao nível do município e da província levantam-se uma série de suspeições ao processo, no que respeita ao processo de contagem dos votos, à divulgação das atas-síntese nas assembleias de voto, ao controlo dos votos pelos cidadãos e, de forma mais genérica, à credibilidade dos resultados eleitorais.
No âmbito da nova lei orgânica, é da competência exclusiva da Comissão Nacional Eleitoral a divulgação dos resultados provisórios e definitivos das elei- ções, sendo de 15 dias o prazo máximo para a divulgação dos resultados finais, contados a partir da data do encerramento da votação (Artigo 135.o), ao contrário do previsto na lei anterior, em que os resultados eram publicados pelo Presidente da Comissão Provincial Eleitoral, no prazo máximo de quatro dias a partir do dia de encerramento da votação, mediante divulgação dos órgãos de comunicação social.
Esta solução legal veio tornar o processo eleitoral menos transparente, tendo levado a uma petição com mais de 400 signatários afetos ao denominado mo- vimento cívico em defesa do voto justo e da verdade eleitoral, que exigiam que o escrutínio fosse feito em cada mesa de voto. Elementos representativos deste grupo foram detidos no dia 30 de agosto de 2022, por exigirem, na portaria da Assembleia Nacional, uma lei que garantisse eleições transparentes.
Uma questão pouco discutida e analisada prende-se com o recurso contencio- so, ou seja, com a impugnação dos resultados eleitorais ao nível do município, bem como da província. Com a eliminação do apuramento municipal restringi- ram-se as garantias dos particulares no exercício do direito à reclamação, con- forme o Artigo 154.o da lei eleitoral vigente. Os cidadãos ficam diminuídos no seu direito de controlo do voto e de reclamarem uma eventual irregularidade no processo, na medida em que a lei impõe que qualquer recurso contencioso seja precedido da observância das garantias graciosas, ou seja, deve antes proceder- -se a uma reclamação no respetivo órgão local – a Comissão Municipal Eleitoral.
Quer isto dizer que no caso de eventuais irregularidades do processo ao nível do município, os cidadãos ficam privados, em primeira instância, de recorrerem, até que sejam divulgados os resultados (que passaram a ser a nível nacional), comprometendo-se deste modo a lisura e a transparência a montante.
A Lei do Registo Eleitoral Oficioso é seguramente a lei fundamental em ma- téria eleitoral, na medida em que todo o processo inicial de habilitação ao exer- cício do direito de voto tem a sua origem no registo. É por este motivo que se transformou num pilar para a distorção do processo eleitoral, ao se constituir numa efetiva limitação ao poder de fiscalização dos intervenientes no processo, mormente os partidos políticos, a sociedade civil, assim como observadores na- cionais e internacionais.
De acordo com o Artigo 59.o, os partidos políticos e coligações de partidos políticos, enquanto pessoas coletivas de direito privado e parte interessada no processo, têm a prerrogativa de fiscalizar o grau de preparação, assim como de execução dos atos de registo presencial dos cidadãos maiores, com vista à veri- ficação da conformidade legal, sem necessariamente interferirem nas operações materiais de inserção. Porém, para o efeito, há a necessidade de capacitação des- tes membros ao nível técnico e tecnológico, assim como operacional, para esta- rem munidos de ferramentas para exercerem essas tarefas. Uma das preocupa- ções que se levantam nesta altura tem que ver com as garantias de segurança, introdução do bilhete de identidade, que vai habilitar os cidadãos maiores de idade como potenciais eleitores, e com os receios que surgem sobre as fragilida- des do sistema de identificação civil do país.
O problema está em que a tarefa referida é da inteira responsabilidade dos partidos políticos ou das coligações de partidos políticos. Essa orientação legal (vide Artigo 59.o, n.o 5), por si só, é um fator de exclusão. Ficam de fora da possibi- lidade de fiscalização as organizações da sociedade civil e as organizações de ob- servação eleitoral nacionais e internacionais, para além da esmagadora maioria dos partidos da oposição que não têm capacidade financeira nem logística para acompanharem preliminarmente o processo do registo.
De igual modo, decorre da lei em apreço (Artigo 15.o), que em anos de eleições, o Executivo deve atualizar a Base de Dados de Cidadãos Maiores (BDCM) e en- tregar o Ficheiro Informático de Cidadãos Maiores (FICM) à Comissão Nacional Eleitoral (CNE), dez dias depois da convocação de eleições, para permitir a cor- reção de erros e omissões a promover pelos interessados. Contudo, na prática, isto não se verificou, a entrega dos ficheiros à CNE fez-se tardiamente, o que permitiu, por um lado, levantar dúvidas em relação à transparência e lisura na apresentação dos dados e, por outro lado, não foram publicadas quaisquer listas provisórias para possibilitar corrigir erros futuros e prevenir constrangimentos aos cidadãos eleitores. Devido a este facto, o partido UNITA interpôs uma provi- dência cautelar para pedir a suspensão parcial do processo, pedido que foi inde- ferido pelo Tribunal Constitucional.
Nos termos do Art.o 107.o da CRA, deverá ser um órgão independente a orga- nizar, executar, coordenar e conduzir os processos eleitorais. O registo eleitoral oficioso será um dos primeiros atos do processo eleitoral, com o registo presen- cial dos cidadãos maiores. Uma das questões que, desde logo, se levantou no processo eleitoral de 2022, foi a de saber por que razão o registo presencial dos cidadãos maiores foi executado pelos órgãos da Administração Central e Local do Estado, se à partida são órgãos auxiliares do Executivo, cuja nomeação para os respetivos cargos obedece a critérios de militância partidária e de conveniência política.
Esta solução obviamente que não garantiu a lisura, a transparência ou a inde- pendência do processo. Os órgãos da Administração Central e Local não são in- dependentes, ademais estabelecem com o titular do poder executivo uma relação de hierarquia, que se traduz no dever de subordinação e no dever de obediência.
De igual modo, a chamada revisão pontual da CRA de 2021, cerca de um ano antes das eleições, introduziu a possibilidade de votação na diáspora, sendo que nas anteriores eleições realizadas em Angola nunca houve participação eleitoral de cidadãos residentes na diáspora. A alteração seria um ponto positivo para a efetiva democratização, no entanto, uma vez mais, o problema residiu no facto de o registo eleitoral oficioso destes cidadãos obedecer ao mesmo formalismo an- teriormente referido, coordenado e executado por órgãos da administração nos termos da Lei do Registo Eleitoral Oficioso e do seu regulamento.
Prosseguindo com os mecanismos ou artifícios legais de promoção da dis- torção da verdade do processo eleitoral, temos a Comissão Nacional Eleitoral – CNA. Nos termos da lei, a CNE é composta por 17 membros: presidida por um magistrado judicial oriundo de qualquer órgão, escolhido na base de concurso curricular pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, o qual suspende as funções até à designação; 16 cidadãos designados pela Assembleia Nacional, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, sob proposta dos partidos políticos e coligações de partidos políticos com assento parlamentar, obedecendo aos princípios da maioria e ao respeito pelas minorias parlamentares (Artigo 7.o da Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento da Comissão Nacional Eleitoral).
Na ordem jurídica angolana, para além das habituais condicionantes políti- cas em relação ao presidente da CNE, o debate sobre a composição da CNE tem sido em torno dos 16 cidadãos designados pela Assembleia Nacional por maioria absoluta de deputados em efetividade de funções, sob proposta dos partidos po- líticos e/ou coligações. Ora, como sobejamente é conhecido por nós, até antes das últimas eleições (24 de agosto de 2022), o parlamento angolano era constituído por uma maioria absoluta de deputados pertencentes ao partido do governo, o MPLA. Atendendo à lógica por que são designados, obviamente que o MPLA tinha maior representatividade, o que de igual modo permitiria que a vontade predominante naquela instituição fosse de quem tem maioria absoluta. Isto por- que, por um lado, o Plenário da Comissão Nacional Eleitoral funciona com a maioria absoluta dos seus membros em efetividade de funções e, por outro, as deliberações da CNE são tomadas por consenso ou, na falta deste, por maioria absoluta dos membros presentes na sessão plenária (vide Artigo 16.o Quórum da Lei Orgânica sobre a Organização e Funcionamento da CNE).
Daqui se pode facilmente perceber a prevalência da vontade do MPLA nas deliberações.
A efetivação das práticas e artifícios para a distorção do processo eleitoral
Com um pacote legislativo favorável, observou-se que o incumbente (MPLA) instrumentalizou efetivamente as leis para desequilibrar as regras do jogo a seu favor, tendo surgido vários casos que comprovaram estes procedimentos, dos quais selecionámos abaixo alguns.
A eleição de Manuel Pereira da Silva “Manico” para presidente da CNE – elemento afeto ao MPLA
“Manico” havia sido indicado pelo Conselho Superior da Magistratura, órgão igualmente dominado pelo partido no poder, apesar das diversas contestações dos partidos políticos e de vários membros e organizações da sociedade civil, o que resultou, inclusive, em ondas de manifestações levadas a cabo na véspera da sua tomada de posse. Importa também referir que “Manico” já havia sido o responsável pela Comissão Provincial de Eleições da província de Luanda e que, em 2017, as eleições, tanto em Luanda como a nível nacional, foram marcadas por diversas suspeitas de manipulação e de fraude eleitoral. Esta situação co- meçou desde logo por concorrer de forma significativa para a descredibilização do processo eleitoral, pois a CNE possui um papel central na credibilidade dos resultados eleitorais.
A contestação da eleição da presidente do Tribunal Constitucional
Após o conturbado pedido de demissão de Manuel Aragão, antigo presidente do Tribunal Constitucional, que se demitiu por não concordar com as decisões tomadas pelo coletivo de juízes do órgão a que presidia, relativamente à revisão pontual da Constituição promovida pelo Presidente da República (DW, 2021), foi nomeada Laurinda Cardoso para substituir o então presidente demissioná rio. A nomeação de Laurinda Cardoso gerou muita contestação por, primeiro, a nomeada ter renunciado com pouca antecedência à sua militância no MPLA e, segundo, por não reunir a confiança dos juristas e magistrados, pela falta de experiência e de mérito no sector da Justiça. Acresce a isso o facto de o Tribunal Constitucional ser o responsável por julgar os litígios pós-eleitorais e o tratamen- to de todas as matérias legais dos partidos políticos.
A anulação do XIII congresso da UNITA que elegeu Adalberto da Costa Júnior
No dia 5 de outubro de 2021, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão 700/2021, anulou o XIII Congresso da UNITA, realizado em 2019, que havia eleito Adalberto da Costa Júnior como presidente da UNITA. A anulação resultou de uma queixa de um grupo de militantes da UNITA, que alegava que aquando da sua eleição como presidente da UNITA, Adalberto da Costa Júnior possuía a dupla nacionalidade (angolana e portuguesa). O Tribunal Constitucional decidiu a favor dos queixosos, alegando violação da Constituição, da Lei, e dos Estatutos da UNITA, e declarou sem efeito o XIII Congresso Ordinário de 2019. Adalberto da Costa Júnior reagiu à decisão do Tribunal Constitucional, considerando-o um “instrumento partidário”, tendo feito a seguinte declaração à imprensa, horas antes de ser conhecida a notícia da anulação do congresso:
Os tribunais constitucionais são instituições que devem congregar estabilidade so- cial e política. O nosso Tribunal Constitucional tem sido um instrumento partidá- rio. Se se chegar aí [anulação do congresso], posso dizer que há muito que estamos preparados para as interferências e temos a garantia de continuidade. (DW, 2021b)
Para a anulação, pesou o argumento sobre a dupla nacionalidade de Adalberto Júnior, o que, à luz da Constituição, constitui fundamento para o impedimento da candidatura a Presidente da República. No entanto, em dezembro de 2021, Adalberto da Costa Júnior voltou a ser eleito presidente da UNITA, com 96% da votação (Expansão, 2021). Seguiu-se um conjunto de ações perpetrado pelo incumbente, lançando uma campanha difamatória nos órgãos de comunicação pública, visando o desgaste da imagem de Adalberto da Costa Júnior, como, por exemplo, a conferência de imprensa de um antigo militante da UNITA, Rui Galhardo da Silva, à Televisão Pública de Angola (TPA), onde este acusou o líder da UNITA de ter simulado um atentado contra si próprio na província do Uíje durante uma atividade da UNITA.
Arresto dos órgãos de comunicação privados do país
Em 2020, no âmbito do denominado processo de recuperação dos ativos des- viados durante o regime de José Eduardo dos Santos, a Procuradoria-Geral da República (PGR) entregou ao executivo de João Lourenço o Grupo Média Nova, proprietário da TV Zimbo, do jornal O País, e da Rádio Mais, “em virtude de terem sido constituídos com o apoio e o reforço institucional do Estado”. No mes- mo processo, a PGR também entregou ao Estado a TV Palanca e, a 19 de abril de 2021, o Ministério da Comunicação Social encerrou as atividades televisivas da Zap TV, da Vida TV e da Record TV. As duas primeiras pertencentes às duas fi- lhas do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, nomeadamente Isabel dos Santos e Tchizé dos Santos.
Apesar da narrativa segundo a qual a recuperação desses ativos fazia parte da concretização da política de combate à corrupção, não deixa de ser politica- mente relevante o facto de isso ter acontecido em ano pré-eleitoral, pelo que tais medidas contribuíram para a instrumentalização e controlo da opinião pública. Importa lembrar que esses eram os principais órgãos de comunicação privados que garantiam alguma pluralidade na informação, e alguns davam alguma ex- pressão aos partidos da oposição, nomeadamente à UNITA, que não encontrava espaço nos canais públicos. Tanto é assim que a TPA nunca entrevistou o líder da UNITA desde que este assumiu a liderança do partido em 2019.
Recusa do Tribunal Constitucional em aceitar o projeto PRA-JÁ Servir Angola como partido político
Em 2012, Abel Chivukuvuku, antigo dirigente da UNITA, um político popu- lar e carismático, havia fundado a coligação CASA-CE. Nas eleições de 2012, a CASA-CE obteve 6% dos votos, tendo eleito oito deputados e, em 2017, subiu para 16 representantes, com 9,46% dos votos. Apesar do crescimento eleitoral da coligação, em 2019 Abel Chivukuvuku foi afastado da liderança da coliga- ção. Após isso, decidiu criar o seu partido político, “PRA-JÁ Servir Angola”. O Tribunal Constitucional invalidou a legalização do seu projeto político, tendo rejeitado 19.000 das 23.492 assinaturas remetidas, com a justificação de serem falsas, de menoridade, e de ausência de autenticação dos atestados de residência. Abel Chivukuvuku reagiu à decisão do Tribunal Constitucional, afirmando que a decisão “consubstancia uma mera perseguição política impiedosa, antidemo- crática e cruel a um grupo de cidadãos que apenas busca exercer os seus direitos consagrados na Constituição da República de Angola (RTP, 2020).
O incumbente entendeu excluir a possibilidade de Abel Chivukuvuku cons- tituir o seu próprio partido e de, posteriormente, vir a candidatar-se às eleições de 2022. Essa posição foi confirmada quando, inesperadamente, o Tribunal Constitucional aprovou, meses antes das eleições, dois novos partidos pertencen- tes a dissidentes da UNITA, que manifestamente não possuíam qualquer estru- tura, nem implantação territorial, que lhes permitisse a recolha das assinaturas exigidas por lei e cujos promotores não possuíam qualquer capital político mini- mamente reconhecido. A legalização desses dois partidos veio solidificar a ideia segundo a qual só é possível a legalização de partidos políticos que traduzam a estratégia de manipulação do incumbente.
Criação da plataforma política Frente Patriótica Unida
No dia 6 de outubro de 2021, a UNITA, o Bloco Democrático e o projeto po- lítico PRA-JÁ criaram a plataforma eleitoral Frente Patriótica Unida (FPU). A FPU foi subscrita pelo líder da UNITA, Adalberto da Costa Júnior (coordena- dor da Frente), Filomeno Vieira Lopes, líder do Bloco Democrático, e por Abel Chivukuvuku, coordenador do projeto político PRA-JÁ. A intenção manifesta seria que as três forças criassem uma coligação eleitoral, mas não o fizeram pelo receio de que viesse a ser inviabilizada pelo Tribunal Constitucional.
Os obstáculos criados à campanha eleitoral da oposição
A título de exemplo, durante as suas deslocações por percurso terrestre às províncias, para realização de comícios, a oposição da UNITA/FPU teve de en- frentar bloqueios como o fornecimento de combustíveis, devido ao encerramento de estações de combustível na rota da sua campanha (claramente por ordens das autoridades). Do mesmo modo, existiam recorrentes problemas de alojamento das delegações da oposição nas províncias, com os hotéis a alegarem não ter vagas.
Em algumas províncias, o incumbente, durante a fase da campanha eleitoral, dificultou, por intermédio dos governos provinciais e administrações municipais, a cedência de espaços estratégicos, no centro das artérias da cidade, para a reali- zação de comícios da oposição. Num dos seus comícios no Huambo, Adalberto Júnior terá sofrido dois inexplicáveis apagões: um corte de energia geral, durante o comício, e outro da Televisão Pública de Angola (TPA), que deixou de trans- mitir o comício em direto. Do mesmo modo, muitos populares que pretendiam associar-se voluntariamente ao comício, numa das maiores praças eleitorais da UNITA, no Huambo, foram impedidos de fazê-lo por falta de transportes cole- tivos. As operadoras de transportes privados, que asseguram as ligações inter- municipais, paralisaram as suas atividades nos dias dos comícios, sem qualquer comunicação prévia ou justificativa.
De acordo com a monitoria de imprensa realizada pelo Centro de Investigação Sol Nascente (CISN), durante os períodos de pré-campanha e de campanha elei- toral, aos órgãos de comunicação social, mais concretamente ao principal serviço noticioso público, da responsabilidade da Televisão Pública de Angola, nos prin- cipais programas de informação, o “Telejornal” e “Jornal da Tarde”, foi possível observar uma esmagadora tendência a favor do partido que dirige o Executivo. Em 368 edições do “Jornal da Tarde”, foram dedicados 776 minutos de cobertura ao Executivo e ao partido que sustenta o Executivo (144 minutos ao MPLA e 632 minutos às ações do Executivo), enquanto que ao total de partidos concorrentes dedicaram apenas 86 minutos, dos quais 20 minutos à UNITA, o maior partido na oposição.
O “Telejornal”, serviço noticioso da Televisão Pública de Angola, emitido às 20 horas, dedicou ao Executivo e ao partido que o sustenta 1818 minutos (1223 minutos à cobertura das ações do Executivo e 594,24 ao MPLA). Os restantes par- tidos ficaram com um espaço de antena correspondente a 394,74 minutos (96,97 para a UNITA), num total de 962 edições do “Telejornal”.
Os comportamentos apresentados pelos meios de comunicação social públi- cos foram reprovados e denunciados por várias entidades da sociedade civil, e não só, nomeadamente na declaração do sindicato dos jornalistas (VOA, 2022), bem como através de denúncias proferidas pelo presidente da UNITA, em que se referia à cobertura que era concedida ao seu partido que, a seu ver, correspondia a um processo de exclusão perpetrado pelos órgãos de comunicação que deviam ser de serviço público (DW, 2021a).
A atuação parcial dos meios de comunicação públicos configura uma séria violação da Lei Eleitoral e da Lei de Imprensa e, antes de mais, da Constituição da República de Angola – CRA, segundo a qual:
Os partidos políticos têm direito à igualdade de tratamento por parte das entida- des que exercem o poder público, direito a um tratamento imparcial da imprensa pública e direito de oposição democrática, nos termos da Constituição e da lei. (CRA, Art.o 17.o, parágrafo 4)
É garantida a liberdade de imprensa, não podendo esta ser sujeita a qualquer cen- sura prévia, nomeadamente de natureza política, ideológica ou artística. (CRA, Art.o 44.o, parágrafo 1)
O Estado assegura o pluralismo de expressão e garante a diferença de propriedade e a diversidade editorial dos meios de comunicação. (CRA, Art.o 44.o, parágrafo 2) O Estado assegura a existência e o funcionamento independente e qualitativamen- te competitivo de um serviço público de rádio e de televisão. (CRA, Art.o 44.o, pa- rágrafo 3)
De referir, ainda, que o Artigo 45.o da CRA refere também o direito de antena, de resposta e de réplica política, algo que não foi respeitado.
Um outro obstáculo à ação da oposição foi consubstanciado por alguns atos de coerção, podendo ser aqui citados vários exemplos: a) a detenção do secretário provincial da juventude revolucionária de Angola, Edvaldo Cabral, candidato a deputado à Assembleia Nacional pelo círculo provincial local1; b) a detenção do ativista Odávio Lógico, da Sociedade Civil Contestatária e Revolucionária do Cuando Cubango, por seis homens ligados aos serviços de inteligência e da polícia nacional, por alegadamente ter estado a promover nas redes sociais a campanha denominada “Votou, Sentou” (que pretendia montar um esquema de vigilância para evitar a fraude e a não afixação dos resultados da contagem de votos conforme exigida por lei); c) a detenção pela polícia do professor Florindo Kandjilo, na centralidade de Caála, na Assembleia 8539, por se ter sentado a 500 metros de uma assembleia de voto, gravando algumas imagens no âmbito da campanha “Votou, Sentou”; d) detenções arbitrárias nas províncias do Uíge, Zaire, Huambo, denunciadas e documentadas pelo Movimento Cívico MUDEI; e) detenção de ativista cívico na província do Zaire, por estar a fotografar a ata- -síntese na sede do município do Cuimba.
O Bloco Democrático também alertou para detenções, sem mandato e com aparato policial, em que dezenas de ativistas foram submetidos a sevícias e a torturas em Caxito, Luanda, Lobito, Benguela, Uíge, Malanje, no Cuango e em Luanda. O Bloco Democrático repudiou estas ações de violência que, para além da ilegalidade em que se inscreveram, criaram um clima de intimidação para os ativistas cívicos e militantes dos partidos da oposição em geral e da FPU em particular.
Várias outras acusações foram lançadas e comprovadas a respeito da utiliza- ção de recursos do Estado pelo MPLA para compra de votos, especialmente dos pobres. Segundo a lei eleitoral, no seu Artigo 205.o, constitui ato de corrupção eleitoral aquele que, para persuadir alguém a votar ou a deixar de votar em qual- quer partido ou candidato, oferecer ou prometer emprego público ou privado ou qualquer vantagem patrimonial a um ou mais eleitores, ainda que por in- terposta pessoa, mesmo que as coisas oferecidas ou prometidas sejam dissimu- ladas a título de ajuda pecuniária para custear despesas de qualquer natureza.
1 De acordo com uma fonte do partido, Cabral esteve detido na cela dos serviços de investigação criminal do Kwanza Norte por alegadamente ter tentado influenciar alguns votantes.
Contudo, durante a época eleitoral, vários episódios concorreram para a corrup- ção eleitoral, sem terem existido procedimentos judiciais subsequentes. Destas práticas, destaca-se a execução do Programa Kwenda, do governo, que consistia em transferências monetárias para assediar eleitores a votar no MPLA nos meses que antecederam as eleições, nos municípios rurais da província do Huambo. O governo utilizou os valores desse programa para assediar os eleitores que tradi- cionalmente votavam na oposição, sendo que o programa Kwenda era financia- do por dinheiros públicos e pelo Banco Mundial.
Acrescenta-se, por fim, a aprovação da lei das sondagens que proíbe a divul- gação de sondagens pré-eleitorais durante a campanha eleitoral e que obriga ao licenciamento das instituições que se dedicam à realização de sondagens pelo Executivo e a contratação da empresa espanhola INDRA para a gestão infor- mática das eleições (INDRA é a empresa que havia sido contratada nas eleições anteriores e que já na altura havia gerado muita crítica e contestação pela forma não transparente com que atuou, estando demasiado associada ao partido no poder e à casa de segurança da Presidência da República).
Resultados da aplicação de inquéritos para deteção de manipulação e fraude eleitoral nas eleições de 2022
Este terceiro e último capítulo apresenta os resultados de inquéritos aplicados no âmbito do trabalho que contou com a participação do autor, desenvolvido para o Afrobarometer, a respeito do processo eleitoral angolano de 2022, tratando- -se de um estudo de opinião realizado em março de 2022 (Afrobarometer, 2022).
A pesquisa foi inspirada no trabalho de Michael Bratton sobre como dete- tar a manipulação eleitoral utilizando métodos baseados em inquéritos sociais (Bratton et al., 2016). O autor justifica a pertinência da utilização de estudos de opinião como um instrumento complementar a outras ferramentas que ajudam a identificar a manipulação eleitoral (como relatórios de observadores eleitorais e a tabulação paralela dos votos), através da seguinte ideia: os cidadãos (eleitores) entram no cenário eleitoral munidos das suas memórias, negativas ou positivas, sobre as eleições anteriores, opiniões sobre o ambiente eleitoral atual, com as suas perceções sobre as autoridades que conduzirão as próximas eleições. Além disso, os mesmos poderão estar disponíveis a expressar a intenção de votar e, se sim, pretende-se saber em qual partido ou candidato pretenderão votar. Os dados re- latados pelos inquiridos podem ajudar como uma linha de medida para verificar a veracidade dos resultados publicados pelo órgão oficial das eleições (Bratton et al., 2016, p. 5).
De acordo com alguns autores, o comportamento eleitoral dos eleitores do continente tende a ser consequência da avaliação que fazem da performance do incumbente (Bratton et al., 2012; Ellis, 2014; Lyons, 2010). Outros autores privile- giam a maneira como os contendores se posicionam perante os principais assun- tos (valence issue) que preocupam os eleitores (Bleck & Van de Walle, 2011, 2013), pelo que, para captar o contexto das eleições, vamos analisar de forma resumida os assuntos que mais preocupam os eleitores e a avaliação que fazem da perfor- mance do incumbente em lidar com esses assuntos.
Os problemas que mais preocupam os angolanos
Tal como se observa na Figura 1, os angolanos, quando interpelados sobre os problemas que mais os preocupam, destacam a escassez de alimentos/fome (15,8%), seguida do desemprego (15,4%), fornecimento de água (12,8%), saúde (9,3%), educação (6,8%) e gestão da economia (6,6%). Curiosamente, os angolanos não estão tão preocupados com a covid-19 (0,5%), apesar de quase dois anos de crise pandémica.
Figura 1
Na sua opinião, quais são os mais importantes problemas do país que o governo deveria resolver?
In your opinion, what are the most important problems facing this country that government should address? (Afrobarometer, 2022)
É interessante verificar que o programa de governo do incumbente, apresen- tado na campanha eleitoral, praticamente não faz referência à expressão “fome” e no programa de governo da UNITA, a expressão “fome” aparece apenas cinco vezes.
A corrupção, assunto central da governação de João Lourenço na legislatura anterior, praticamente não preocupa os angolanos, pois apenas 2,2% o elegem como problema preocupante.
Avaliação da situação do país
Em relação à avaliação que os angolanos fazem do país, analisámos a perce- ção do rumo de Angola, a avaliação da performance do Presidente da República, a situação das condições económicas do país (perspetiva sociotrópica) e dos cida- dãos (perspetiva egotrópica) e a avaliação económica retrospetiva.
Os dados da Figura 2 indicam que a maioria dos angolanos, 62,3%, considera que, de uma maneira geral, o país está a caminhar na direção errada. A maio- ria dos angolanos, 55,5%, reprova o desempenho do Presidente da República, principal instituição do Estado angolano, pois é o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas, Presidente da República e Chefe do Executivo. Em relação à situação económica do país, 59,2% consideram que a situação económica está má ou muito má e 57,9% afirmam que as condições económicas pioraram ou piora- ram muito, quando comparadas com as do ano anterior. No mesmo sentido, 56% dos angolanos confessam que as suas condições de vida estão más ou muito más.
Figura 2
Diria que o país vai na direção certa ou errada? Would you say that the country is going in the wrong direc- tion or going in the right direction? Em geral, como descreve: a) A presente situação económica do país?; b) As suas atuais condições de vida?; O desempenho do PR JLo?; In general, how would you describe: a) The present economic condition of this country?; b)Your own present living conditions?; PR JLo performance? (Afrobarometer, 2022)
Análise dos resultados eleitorais
A pré-campanha das eleições arrancou em finais de maio de 2022. A UNITA escolheu a capital do país, Luanda, para o arranque da pré-campanha, ao passo que o MPLA optou pela Huila, segunda maior praça eleitoral do país. As eleições foram realizadas no dia 24 de agosto, após cerca de dois meses de uma intensa campanha eleitoral.
Como se observa na Figura 3, de acordo com os resultados oficiais, o MPLA venceu as eleições com 3 209 429 votos, 51,17%, tendo obtido 124 deputados en- tre os 220 possíveis. O principal partido da oposição, UNITA, obteve 2 756 789 votos, 43,95%, o que representa 90 assentos parlamentares. O PRS é a terceira força política eleitoral, com 71 351 votos, 1,14%, com apenas dois deputados no Parlamento. Os outros partidos que conseguiram eleger deputados são a FNLA (dois deputados) e o Partido Humanista de Angola − PHA, também com dois de- putados. A coligação CASA-CE, anterior terceira força partidária, não conseguiu eleger sequer um deputado, e em branco ficaram, também, a coligação APN e o partido P-Django.
O MPLA, embora tenha ganho as eleições com uma maioria absoluta de 124 deputados, viu confirmado o seu processo de declínio eleitoral. Como se observa na Figura 4, o MPLA tem vindo a perder terreno desde as eleições de 2008, numa ordem de cerca de 10% de eleição para eleição. Durante a campanha eleitoral, num comício feito na província do Cunene, João Lourenço havia solicitado aos militantes uma votação em massa, com vista a recuperar os 20% de votos per- didos em 2012 e em 2017. Contudo, ao contrário da expetativa do crescimento eleitoral, o eleitorado entendeu reduzir o poder eleitoral do incumbente.
De realçar igualmente o facto de o MPLA ter perdido as eleições nas três províncias que mais contribuem para a riqueza nacional, nomeadamente em Luanda, capital do país, local onde a UNITA obteve 1 243 894 votos, 62%, e ele- geu três deputados. O MPLA obteve perto de metade dos votos da UNITA, 671 861, 33,62%, com dois deputados eleitos. No Zaire, segunda província petrolífera do país, a UNITA venceu com 73 665 votos, 52,12%, tendo eleito três deputados.
O MPLA obteve 51 241 votos e elegeu dois deputados. Já em Cabinda, maior pro- víncia petrolífera de Angola, a UNITA ganhou com 114 300 votos, 68,7%, tendo eleito quatro deputados dos cinco possíveis em cada círculo provincial, tendo o MPLA conseguido eleger apenas um deputado, com apenas 26,23% dos votos.
Predição dos resultados eleitorais
As eleições decorreram num contexto de elevado nível de insatisfação e re- provação da governação do MPLA e de João Lourenço, como atestam os dados do Afrobarometer (Afrobarometer, 2020, 2022, 2022a, 2023). Paralelamente a isso, a UNITA concorreu com uma nova liderança, Adalberto da Costa Júnior, um can- didato muito apreciado pelos eleitores urbanos, muito popular nas redes sociais e cujas características pessoais (mestiço e urbano) e percurso de vida (dirigente da UNITA, mas sem percurso de guerra) ajudavam a retirar a UNITA da imagem do seu passado de rebelião civil. Face a isso, pela primeira vez após 20 anos de paz, acreditava-se que a oposição poderia vencer as eleições.
Tal como defendido por Michael Bratton (Bratton et al., 2016), utilizaremos os resultados do estudo de opinião do Afrobarometer para estabelecer um referencial de avaliação entre os dados publicados pela CNE e os dados reais (Afrobarometer, 2022, 2023).
Embora os nossos dados tenham sido recolhidos antes da campanha eleitoral, julgamos que não deixam de servir para este propósito, pelas seguintes razões:
• Não existiu nenhuma alteração política de relevo de março de 2022 até às eleições de agosto de 2022;
• Adalberto da Costa Júnior e João Lourenço, figuras avaliadas no referido estudo do Afrobarometer, foram os concorrentes às eleições;
• Asituaçãoeconómicaesocialnãosealterouentreotempodoestudoeas eleições;
• Uma outra sondagem, que foi feita mensalmente pelo Movimento Cívico MUDEI até às eleições, dava um resultado de vantagem à UNITA, o que não se alterou desde o início do ano até às eleições (MUDEI, 2022);
• Ambos os partidos não se apresentaram na campanha eleitoral com pro- gramas eleitorais ou mensagens com diferenças marcantes em relação ao período de pré-campanha, pelo que é muito provável que a campanha não tivesse tido um impacto considerável na transição entre a intenção de voto em março e o voto manifesto em agosto.
Voltando a Bratton, a utilização de estudos de opinião pública para se avaliar os resultados oficiais parte de duas presunções:
Embora as previsões pré-eleitorais não estejam sempre corretas, não dei- xam de ser uma base confiável para a previsão dos comportamentos dos indivíduos, desde que a amostra e a aleatoriedade da mesma estejam den- tro de uma margem de erro mínima +/-2%;
Tal como foi dito, desde a recolha e divulgação dos dados (março/abril), não se observou nenhum acontecimento político de relevo, e as mensagens que os principais concorrentes apresentaram antes da campanha foram precisamente as que apresentaram na campanha eleitoral, o MPLA/João Lourenço com a utilização da narrativa da importância da paz e a UNITA/ Adalberto da Costa Júnior com a narrativa da alternância e da luta contra a fraude eleitoral.
Com base nesses pressupostos elaboraram-se três cenários, assentes em eta- pas cada vez mais restritivas para se calcular um voto previsto. A variável utili- zada para se predizer o voto dos eleitores centrou-se na seguinte questão: “Se as eleições fossem hoje, em que partido/candidato votaria?”
Nos dois primeiros cenários, o MPLA ganha com uma margem de 6,8% e de 11,2% respetivamente, mas no terceiro cenário, a UNITA ganha com uma dife- rença de 4%.
No primeiro cenário considerámos todos os eleitores elegíveis, excluindo os indecisos e eleitores de outros partidos. Neste cenário, prevê-se uma vitória do MPLA com 30,7% dos votos. A UNITA obtém 23,8% dos votos, sendo que os reticentes (os que se recusam a dizer em quem votariam) constituem 32,9%. É curioso observar o facto de a maioria dos eleitores serem reticentes.
No segundo cenário, fez-se a predição dos votos tendo em conta the wisdom of the crowd da população inquirida. A medição dessa sabedoria da multidão é feita através da pergunta: “Independentemente de votar ou não, e independente- mente do sentido do seu voto, qual o candidato de partido ou aliança espera que venha a vencer as eleições presidenciais de 2022?”
Neste cenário, os votos do incumbente sobem para 35,4%, ao passo que os votos da UNITA sobem apenas para 24,2%. Verifica-se uma variação mais assi- nalável nos reticentes, de 32,9% do cenário anterior, para 24,9% neste. Também é curioso observar que, mesmo numa questão que não compromete diretamente os inquiridos, muitos deles preferem não dizer qual o candidato que acham que venceria as eleições.
No terceiro cenário, distribuímos a intenção de voto dos reticentes pelo MPLA e pela UNITA. Para fazer essa distribuição, efetuámos um cruzamento entre os reticentes e a avaliação que estes fazem da performance do Presidente da República, da direção geral do país, das condições económicas deste e das con- dições pessoais dos inquiridos. Por exemplo, a distribuição entre as pessoas que consideram que o país está na direção errada é muito mais próxima da distribui- ção entre o reticente e o voto na UNITA do que entre o reticente e o votante no MPLA. Isto é uma indicação de que provavelmente a maioria dos reticentes está mais próxima dos votantes da UNITA do que do MPLA. Esse critério é reforçado com a presunção de que, face à natureza autoritária do regime político, os vo- tantes da UNITA tendem a ter mais receio ou medo de assumirem publicamente as suas escolhas. Assim, em termos concretos, atribuímos 33% dos reticentes ao MPLA e 67% à UNITA.
Nesse cenário, a UNITA ganha as eleições com 45,9% dos votos e o MPLA perde com 41,5%.
Evidências de manipulação
Pelo que podemos verificar no capítulo sobre a avaliação feita através da moni- toria do processo eleitoral, o incumbente desencadeou uma série de práticas que a literatura enquadra no “menu da fraude”, tais como: a eleição do presidente da CNE, Manuel Pereira da Silva “Manico”; a alteração pontual da Constituição; a alteração da lei eleitoral; a nomeação de uma militante do MPLA para o cargo de presidente do Tribunal Constitucional; a anulação do congresso que havia eleito Adalberto da Costa Júnior, líder da UNITA, pelo Tribunal Constitucional; o ar- resto e suspensão dos órgãos privados de comunicação social, reforçando o con- trolo da comunicação social de massas (televisão, rádio e jornais); a inviabilização do projeto político PRA-JÁ Servir Angola, de Abel Chivukuvuku; a compra de votos e obstáculos impostos à UNITA para a disseminação das suas mensagens eleitorais; a aprovação da lei das sondagens; a contratação da empresa espanhola INDRA para a gestão informática das eleições.
Figura 7
Diferença dos resultados entre a CNE e o Afrobarometer
Elementos de manipulação e fraude eleitoral detetados nas eleições angolanas de 2022
51,17% e à UNITA 43,95%, uma margem de diferença de 9,67%, ao passo que os dados do estudo de opinião Afrobarometer (Afrobarometer, 2022, 2023), indicam que o MPLA perde as eleições com 41,5% e a UNITA ganha com 45,9%, uma margem de 1,95%.
Portanto, com base nas duas formas utilizadas, podemos com alguma mar- gem de segurança afirmar que os resultados oficiais divulgados pela CNE não traduzem a vontade genuína dos eleitores.
Conclusões e implicações
A principal conclusão da pesquisa reforça a ideia de que as eleições realizadas nos regimes autoritários acabam por ser apenas um simulacro democrático, pois violam os requisitos mínimos de uma eleição democrática.
No caso concreto das últimas eleições angolanas, embora tivesse havido ob- servação eleitoral, nomeadamente da CPLP – Comunidade de Países de Língua Portuguesa, o incumbente não se coibiu de executar várias práticas que desnive- laram as regras do jogo do processo eleitoral.
Tal como descreve a literatura, o menu da fraude ocorre muito antes das elei- ções, em três fases: no processo de preparação das eleições, em que se destacam as alterações das regras; durante a campanha eleitoral, em que se destacam a violência eleitoral, a compra de votos e o agudizar do controlo dos media; no pós-eleições, em que se destaca a parcialidade dos órgãos responsáveis pelo con- tencioso eleitoral.
A pesquisa evidencia também a pertinência de se conjugar a análise qualitati- va e quantitativa para se detetar a fraude eleitoral. A análise qualitativa, através da monitoria de todo o processo eleitoral, permite-nos captar as diversas práticas do incumbente, que configuram a manipulação e a fraude eleitoral. A análise quantitativa permite detetar, especificamente, em que medida os resultados ofi- ciais publicados pelo órgão responsável pelas eleições, a CNE no caso de Angola, traduzem verdadeiramente o voto dos eleitores.
Contudo, para um apuramento mais assertivo da manipulação, pensamos que as futuras pesquisas que se queiram dedicar a este tema devem ser realiza- das através de um inquérito especificamente concebido para o efeito, aplicado o mais próximo possível das eleições, e outro pós-eleitoral, aplicado no máximo de 90 dias após a realização das eleições.
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Cadernos de Estudos Africanos • janeiro-junho de 2023 • 45, 101-133
David Boio
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