Para uns, muito poucos, não passa de uma pedra minúscula, brilhante é certo, mas com a mesma composição química da grafite usada nos lápis com que escrevemos; para outros, quase todos, é um tesouro incalculável, com quase sete centímetros de comprimento, o tamanho de um cartão de crédito, e uma classificação Tipo IIa, a segunda mais elevada de todas, à qual pertencem não mais do que 1 a 2% de todos os diamantes do mundo, os mais puros e imaculados, compostos por redes rígidas de carbono, com poucos ou nenhuns átomos de nitrogénio. Vivia nas entranhas do planeta, a uma profundidade de 150 a 200 quilómetros do manto superior, foi trazido à superfície por um kimberlito, que até nós transportou o maior diamante alguma vez descoberto em Angola (e o 27º. no mundo), com uns assombrosos 404.2 quilates.
Em 14 de Novembro de 2017, um ano e meio depois de ter sido encontrado na Mina de Lulo, nordeste de Angola, o 404, como passou a ser chamado, foi leiloado pela Christie’s, em Genebra, e arrematado por um comprador anónimo pela astronómica quantia de 33,5 milhões de dólares, um recorde mundial para a venda de pedras preciosas em leilão. Depois de ter sido descoberto no Lulo por uma empresa australiana, o 404 viajou até Nova Iorque, onde foi analisado pelos peritos do Gemological Institute of America, que concluíram, lapidarmente, que “a sua extrema raridade não pode ser sobrestimada”. Daí, avançou uns metros até ao Diamond District, entre a 5.ª e a 7.ª Avenidas, onde, na sede do Julius Klein Group, um grupo de 10 especialistas cortou e lapidou o maior diamante que alguma vez lhe tinha passado pelas mãos.
Durante várias semanas, o perito em diamantes Isaac Barhorin limitou-se a olhar para ele, a observá-lo de todos os ângulos, ao infinitésimo de milímetro, para marcar os pontos e as linhas por onde deveria ser cortado. A seguir, em 29 de Junho de 2016, após meses de análises e de testes, um octogenário venerando, Ben Green, considerado o melhor cortador de diamantes do mundo, dividiu o 404 em dois. Seguiram-se semanas de aperfeiçoamento do corte na roda de polimento e só ao fim de seis meses se alcançou o produto final, um diamante de 163,41 quilates lapidado em forma de esmeralda.
Em Dezembro de 2016, foi transportado para a sede da De Grisogono, em Genebra, uma empresa de joalharia de luxo fundada em 1993 pelo italo-libanês Fawaz Gruosi, um especialista em diamantes negros que, antes, trabalhara para a londrina Harry Winston e para a Bulgari, entre outras. Gruosi disse nunca ter pensado que alguma vez na vida iria trabalhar com uma pedra de 163 quilates daquela qualidade, que descreveu como “o diamante mais bonito do mundo”.
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Com a colaboração de Patrick Affolter, chefe do atelier de alta joalharia da De Grisogono, e com a equipa de design da casa, Gruosi concebeu uma peça única: ao centro, o diamante-estrela, que pode ser removido e colocado noutros colares; no colar assimétrico, de um lado 18 diamantes lapidação-esmeralda e, do outro, uma corrente de esmeraldas verdes.
Não parariam aqui as andanças do 404, ou do que dele restava. A criação de Fawaz Gruosi fez uma tournée pelos lugares de luxo do globo - Hong Kong, Londres, Dubai e Nova Iorque -, até regressar a Genebra, onde foi vendida num sumptuoso leilão: Magnificent Jewels. Rahul Kadakia, chefe do Departamento Internacional de Joalharia da Christie’s, afirmou que, nos 251 anos de história da prestigiada leiloeira, aquela era uma peça única e que, graças a ela, a De Grisogono se posicionava num lugar à parte no universo das pedras raras, preciosíssimas.
A Operação 404, chamemos-lhe assim, envolveu um investimento de milhares ou milhões de dólares, mobilizou gente de várias geografias, implicou um colossal trabalho de marketing, análises científicas, apurados lavores de design, publicação de brochuras, viagens intercontinentais. No final, 33 milhões de dólares. *** A Grisigono é assim chamada por causa de uma expressão greco-latina, crisogonus, que significa “gerado do ouro” ou “nascido do ouro”, e a História regista várias figuras com esse nome: Crisógono de Atenas, um flautista que viveu no século V antes de Cristo; São Crisógono, mártir da Igreja, venerado em igreja própria no bairro romano de Trastevere; Crisógono da Macedónia, general e conselheiro de Filipe V, cujos dois filhos este mandaria matar, por conspirarem contra a sua pessoa; e Lúcio Cornélio Crisógono, um escravo liberto grego, que o general romano Sula encarregou de tratar das proscrições do ano 82 a.C. e, à conta disso, se apropriou das terras de um dos proscritos, acabando por ser julgado por corrupção, num processo célebre em que foi acusado por Marco Túlio Cícero.
Qualquer semelhança entre isto e o que se passou e ainda passa na República de Angola não é pura coincidência, já que, desde os tempos remotos da Antiguidade Clássica até aos dias da actualidade, encontramos sempre, mas sempre, os mesmos traços humanos: ganância, corrupção, conspirações homicidas, excessos de poder autocrático. Espantosamente, tudo isto está concentrado e condensado num xenólito de sete centímetros, que só vale milhões e milhões porque se convencionou dizer que sim, ou seja, porque há outros tantos milhões e milhões que acreditam que aquela pedra vale mesmo aquilo: colocado no colar da Grisogono, o 404 não tem qualquer utilidade industrial ou prática, destaca-se apenas pela sua singular beleza, mas esta, note-se, é inacessível ao olhar dos comuns mortais, só sendo alcançada por especialistas e potentes microscópios.
O 404 vale, assim, e em suma, pela sua raridade - pelo que nos dizem ser a sua raridade -, mas isso, em si mesmo, não é critério algum, já que há muitas outras coisas únicas, irrepetíveis - um floco de neve, por exemplo -, pelas quais ninguém se dispõe a pagar sequer um cêntimo. É aqui que bate o ponto: o 404 não tem valor, tem preço. Tem um preço de milhões porque há gente disposta a pagá-lo, e a pagá-lo apenas, e tão-só, para que outros o não tenham; para que possa ser possuído e certamente exibido como sinal de riqueza, como prova pública, urbi et orbi, de que se tem 33 milhões de dólares para dar por um colar de pedras, por aquele colar de pedras.
Tudo não passa, portanto, de uma ficção dos humanos, ilusão que se estende à própria empresa que concebeu o colar e ao poder dos seus proprietários. A história da De Grisogono, de facto, parece dar razão à velha máxima marxista segundo a qual tudo o que é sólido dissolve-se no ar: criada em 1993 por Fawaz Gruosi, com produção instalada em Plan-Les-Ouates, na Suíça, a De Grisogono necessitava urgentemente ser capitalizada para manter a sua independência, para sustentar o crescimento e para investir numa nova fábrica. Através da Victoria Limited e da Victoria Holding, sediadas em Malta, Isabel dos Santos, Sindika Dokolo e a Endiam/Sodiam (a Sociedade de Comercialização de Diamantes de Angola, criada por decreto presidencial) compraram, em 2012, 75% do capital da empresa, ficando 15% para o fundador, Fawaz Gruosi, e o resto dividido por outros accionistas. A operação, estimada em 100 milhões de dólares, foi saudada com entusiasmo por Fawaz Gruosi, que afirmou que, doravante, a empresa que fundara iria ter “acesso privilegiado a pedras preciosas de alta qualidade”, como foi o caso manifesto do 404.
Sindika Dokolo, de seu lado, dizia que “já não há sectores de actividade onde os africanos não possam competir em igualdade ao nível global”. “Aliás, permita-me recordar que a Cartier pertence a um sul-africano. Não vejo, portanto, o que choca quando investidores angolanos seguem a mesma estratégia de sucesso”, acrescentando, em jeito premonitório, ou astrológico, que “este modelo angolano daqui a 20 anos será celebrado de forma unânime.” *** Viviam-se tempos felizes, de opulência e fartura: as jóias da De Grisogono eram usadas por supermodelos internacionais, como a brasileira Alessandra Ambrósio, a norte-americana Bella Hadid, a britânica Cara Delevigne, e a marca ia de vento em popa, com 40 lojas espalhadas pelos quatro cantos do mundo e outras tantas projectadas para abertura em breve.
Por vezes, ocorriam percalços - em Maio de 2013, um colar de dois milhões desapareceu durante uma apresentação da marca, em Cap d’Antibes, por ocasião do Festival de Cannes -, mas nada capaz de ofuscar o grande momento, passado no mítico Hôtel du Cap-Eden-Roc, também em Antibes, na noite de 7 de Maio de 2016. As revistas cor-de-rosa chamaram-lhe uma “extravagant soirée”, na qual estiveram presentes quase 700 celebridades, entre as quais Robert de Niro, Ivana Trump, Harvey Weinstein, Paris Hilton e a sua mãe, Kris Jenner, e top models como Mila Jovovich, Lara Stone, Alek Wek e Chanel Joan. De Angola, vieram a modelo Sharam Diniz, o apresentador de televisão Daniel do Nascimento, além de Isabel dos Santos e o seu irmão Coréon Du.
Dois anos antes, em 2014, noutra festa da Grisogono em Antibes, Isabel estivera com Antonio Banderas, Amber Heard, Cara Delevigne ou Tamara Ecclestone. Desta feita, jantou ao lado do humorista americano Chris Tucker e da modelo sudanesa Alek Wek e, após a refeição, o mestre-de-cerimónias, Fawaz Gruosi, fez projectar na fachada Napoleão III do Eden-Roc um vídeo sobre a história da De Grisogono, antecedendo o grande momento da noite: a apresentação mundial do 404, ainda em bruto, sobre o qual Kim Kardashian escreveria no Twitter: “Pensava que já tinha visto tudo, mas este é o maior diamante que já vi”.
Contudo, nem ela, nem o mundo, ainda tinham visto tudo: em Janeiro de 2020, a empresa De Grisogono foi nomeada no Luanda Leaks como uma das empresas do império de Isabel dos Santos e, a 29 desse mês, abria falência. Em 2022, acabou comprada por um grupo imobiliário do Dubai. O fundador, Fawaz Gruosi, daria uma entrevista à Vogue Arabia, em Fevereiro desse ano, em que falou de novos projectos, mostrou celebridades a usarem as suas criações (Sharon Stone, Candice Swanepol, Hend Sabri, Jodie Comer), referiu um estralejante baile de caridade no Dubai, com Jessica Kahawaty, Eva Longoria e Halima Aden, recordou o glamour de Cannes, mencionou a sua loja no West End, em Londres, mas não disse palavra sobre Angola e Isabel dos Santos, as causas do seu desastre, que o levaram, e à sua empresa, até aos cumes da fama, mas que depois lhe provocaram uma aparatosa queda, tão meteórica e fulgurante como a subida.
Para trás ficavam as manequins famosas e os lapidadores judeus, os homens do design e do marketing, o brilho das festas e com DJ da moda, o borbulhar do champanhe, naquele que foi mais um exemplo, só um, dos perigos que correm os que se aventuram a negociar com ditaduras corruptas. *** Isabel José dos Santos, a quem em Angola chamavam A Princesa - ou, menos frequentemente, A Leoa ou A Pantera -, nasceu em Bacu, no Azerbaijão, então URSS, em 20 de Abril de 1973, e é filha de José Eduardo Van-Dunem, que em adulto, para não ser confundido com o ramo rico da família, deixou cair este apelido, trocando-o por outro, “dos Santos”, e que assim a chamou em homenagem à sua irmã mais velha, que, como ele, era filha de Eduardo Avelino dos Santos Van-Dunem, pedreiro e calceteiro da Câmara de Luanda, e de Jacinta José Paulino, empregada doméstica e quitandeira no mercado do Chamavo, actividade que herdara de sua mãe, Domingas Justino.
Logo aqui, todavia, existe um ponto de mistério, pois Isabel nasceu em 1973, como se disse, mas nessa altura o pai já não se encontrava no Azerbaijão, onde em 1969 se formara em Engenharia no Instituto de Petróleo e Química de Bacu (onde estudara Lavrenti Béria), após o que realizou um curso militar de Telecomunicações, regressando a Angola em 1970, para servir nos Serviços de Telecomunicações da 2.ª Região Político-Militar do MPLA, em Cabinda, onde esteve colocado até 1974.
A mãe de Isabel, Tatiana Sergeevna Kukanova, era uma russa nascida e criada em Penza, de origens muito humildes, que estudava Geologia em Bacu, onde foi Campeã Regional de Xadrez, dizendo Isabel que os pais tiveram de aguardar sete anos para obterem a autorização para se casarem (Financial Times, de 29/3/2013), o que introduz novo ponto de dúvida, porquanto José Eduardo chegou ao Azerbaijão em 1962, 1963, e casou-se com Tatiana logo em 1966.
Pouco antes da independência de Angola, Tatiana e Isabel fixaram-se em Luanda, tendo vivido uns meses no Congo-Brazaville, em condições precárias. Isabel diz que foi o pai que a ensinou a ler e a escrever, pelos vistos mal, dado os erros que amiúde comete no Twitter, e recorda-se que José Eduardo, então já ministro dos Negócios Estrangeiros do MPLA, a levou à escola, no primeiro dia de aulas; enquanto isso, iniciava um relacionamento amoroso com Filomena de Sousa, Necas, sua secretária no MNE, uma angolana com raízes cabo-verdianas, de quem teve um filho, José Filomeno de Sousa, Zenú, nascido em 9 de Janeiro de 1978.
Em 1980, José Eduardo e Tatiana separaram-se, diz-se que por razões políticas, pois o racismo angolano olhava com maus olhos que o novel presidente, empossado em 1979, se apresentasse ao país com uma esposa branca. Em todo o caso, refere o ex-general soviético Valentin Varennikov nas suas memórias, José Eduardo “comportou-se de uma forma bastante nobre em relação à sua família anterior: deu-lhe uma villa, concedeu à antiga esposa uma pensão e um subsídio à filha”.
Isabel, porém, diz que passou dificuldades na infância e que até ia a pé para a escola (coisa que já não sucederia com o irmão Zenú, transportado de Mercedes com dois guarda-costas) e, em sinal de precocidade do seu espírito empreendedor, referiu ao Financial Times que já em criança fazia negócios, trocando ovos por algodão doce.
A realidade, porém, parece ser outra: a mãe, colocada no Departamento de Geologia da Sonangol, recebia cartões para comprar ovos, que, por deles não carecer, depois vendia aos outros funcionários da empresa (cf. Filipe S. Fernandes, Isabel dos Santos. Segredos e Poder do Dinheiro, Casa das Letras, 2015, p. 34). Não seria essa, longe disso, a única incursão de Isabel na economia informal angolana, eufemismo para mercado negro ou candonga, que todos os anos rouba milhões aos cofres do Estado: quando vivia em Londres e ia a Luanda pelo Natal, levava as malas cheias de relógios, pulseiras e brincos de marcas de luxo, como a Louis Vuitton, que depois vendia aos amigos (ob. cit., p. 41). O pai, de resto, avalizou essas e outras práticas, à luz da frase, que consideramos histórica: “Nenhum angolano vive só do seu salário.”
Nas poucas entrevistas que concedeu, sobretudo as da sua fase áurea, a filha mais velha de José Eduardo dos Santos fez questão de sublinhar que sempre foi independente do pai, que seguira o seu caminho como uma empresária autónoma, distante da política, ficando por explicar, então, como pôde fixar-se com a mãe em Londres, em meados da década de 80, e estudar num colégio privado de elite, a St. Paul’s Girls’ School, que no tempo em que Isabel lá andou tinha como directora a baronesa de Brigstocke e que, entre os seus antigos alunos, exibe um impressionante rol de personalidades da política, das artes e das ciências britânicas.
Depois, foi para o King’s College, também em Londres, onde se formou em Engenharia, o que lhe exigiu muita dedicação e trabalho, pois os “pais eram muito exigentes”, tinha 23 horas de aulas teóricas por semana e “não havia tempo para brincadeiras”, esforço que não está, de modo algum, ao alcance da esmagadora maioria dos seus compatriotas, quatro milhões dos quais são analfabetos, perfazendo 24% da população do país, segundo as estatísticas oficiais.
Regressada a Angola em 1995, depois de ter trabalhado uns meses na consultora Coopers, tornou-se sócia, em 1997, do Miami Beach Club, na Ilha de Luanda, cujo proprietário estava a ter problemas com os inspectores de Saúde e das Finanças e que, por causa disso, procurava juntar-se a alguém de influência. Uma vez mais, o apelido de Isabel ajudou: com um investimento inicial insignificante, pôde tornar-se sócia de um restaurante-bar que, ainda hoje, se orgulha de ser “um marco em Luanda” e “um farol de alegria e inspiração por mais de 20 anos”. As inspecções sanitárias e fiscais, obviamente, desapareceram.
Na altura, finais dos Anos 90, Isabel vivia ainda no Palácio Presidencial do Futungo de Belas com o seu pai, que se casara entretanto, em Maio de 1991, com Ana Paula Cristóvão Lemos, hospedeira de bordo dos voos presidenciais, da qual teve três filhos e uma filha, a juntar aos que teve com outras cinco mulheres (Tatiana; Filomena - Necas; Maria Luísa - Milucha; Maria Bernarda Gourgel; e Eduarda - Dadinha), não sendo fácil quantificar ao certo a prole daquele a quem o escritor Agualusa chamou O Opaco. Oficialmente, são oito, mas a própria Wikipédia enumera dez.
Dias depois de o pai morrer em Barcelona, em Julho de 2022, Welwitschia José, Tchizé, surpreendeu tudo e todos, a começar pelos irmãos, supomos, ao afirmar numa entrevista à SIC: “Vou requerer teste de ADN a nós, os oito filhos, só para ver se todos somos mesmo dignos de assinar «dos Santos» e se todas as mães foram sérias” - e a rematar, acrescentou: “Se alguém não foi sério e se o filho não for de José Eduardo dos Santos terá de perder todas as benesses”; “Querem brincar? Então vamos.”
“Subi a pulso”, referiu Tchizé noutra ocasião, um registo em tudo idêntico ao da sua meia-irmã Isabel, que, nas raras entrevistas que deu, dizia que trabalhava sete dias por semana, que tinha “sentido para o negócio desde muito jovem”, que para fazer alguma coisa de útil no mundo - como diminuir a desigualdade, afirmou ela - era necessário acordar de manhã e trabalhar, trabalhar sempre, até chegar ao lugar onde chegou, o de mulher mais rica de África, considerada pela revista Forbes a primeira bilionária do continente, com uma fortuna estimada em 3,7 mil milhões de dólares.
“Quem for trabalhador e determinado vai ter sucesso, e isso é o principal. Não há caminhos fáceis”, disse ao Financial Times, para acrescentar à Sábado: “Não represento nenhum interesse e não represento a ninguém a não ser a mim própria. Sou uma pessoa independente. Há mais de uma década escolhi livremente uma carreira diferente e independente da minha família. Desenvolvi a minha própria actividade.”
O trabalho, a inteligência e o espírito empreendedor parecem ser, de facto, características genéticas comuns a toda a família dos Santos, que conseguiu impor-se com enorme sucesso na difícil meritocracia luandense, ou, se quisermos, da versão africana da sociedade de corte de que falou Norbert Elias: Avelina dos Santos, sobrinha de José Eduardo, era secretária do tio para assuntos particulares, e casada com o brigadeiro Bento dos Santos Kangamba, sobre o qual são tantos os processos e acusações, inclusive de tráfico de mulheres no Brasil, que é melhor nem falar; Luís Eduardo dos Santos, irmão de José Eduardo, foi durante anos administrador da TAAG; José Filomeno de Sousa, Zenú, era presidente do Fundo Soberano de Angola, acabando condenado em 2020 a cinco anos de cadeia por fraude, lavagem de dinheiro e tráfico de influências; Milucha, mãe de dois filhos de José Eduardo, presidia à Agência Nacional para o Investimento Privado de Angola; Marta Santos, irmã de José Eduardo, era parceira do construtor português José Guilherme, entre outros negócios, e o marido, José Pacavira Narciso, era chairman da Prodoil, sendo a sua prima, Rosa Escórcio Pacavira de Matos, ministra do Comércio e ex-secretária para os Assuntos Sociais; Tchizé e Coréon Du tinham a produtora Semba Comunicações, a consultora Westside Investments e o canal TPA2; o sobrinho Catarino dos Santos era secretário-geral da Casa Militar e sócio da Lunha Imobiliária; outro sobrinho, Adão Ferreira do Nascimento, era ministro do Ensino Superior; a irmã de Ana Paula Santos era subdirectora do Banco Nacional de Angola e o seu marido foi ministro das Finanças; outro irmão de Ana Paula, Joaquim Silvestre António, era secretário de Estado da Habitação; o primo Leonídio Ceita era presidente da Empresa Pública de Águas de Angola; outro primo presidia à Empresa Nacional de Exploração e Aeroportos e Navegação Aérea; outro ainda era presidente do Banco de Comércio e Indústria e outro ainda, enfim, era director-geral do Instituto de Estatística.
Nem vale a pena descrever os negócios de Isabel, tantos e tão complexos eles são, a ponto de a própria, em entrevista ao Observador, de 20/12/2019, ter sido incapaz de dizer quantas empresas tinha ou quanto facturavam aproximadamente. Começou nos walkie-talkies da Urbana 2000, a empresa encarregada de limpar a sempiterna imundície da capital angolana, passou para os telemóveis (depois de um concurso sem efeito, a licença de operação foi atribuída a uma empresa de Isabel, de Manuel Vicente, o vice-presidente, e dos generais Manuel Vieira Dias, Kopelipa, e Leopoldino Fragoso do Nascimento, Dino), a par da restauração de luxo (o Ooon.dah, em Luanda, com ementa gourmet e chef vindo das Ilhas Maurícias), dos petróleos e energia, dos diamantes e da joalharia, da banca e da finança, da distribuição, do imobiliário, da imprensa, etc.
Naquela entrevista ao Observador, um diálogo delicioso: “Foi nomeada para a Sonangol pelo pai?” “Não, fui nomeada pelo Governo.” “O Governo era presidido pelo pai?” “Não, o Governo era presidido pelo Presidente”. Noutra ocasião, nova frase antológica: “É sempre importante ter bons valores e ética no negócio.” *** Isabel dos Santos é contemporânea e cúmplice do tempo em que, às mesas da Cervejaria Ramiro, em Lisboa, os todo-poderosos angolanos acompanhavam lagosta com tinto Barca Velha, o que era só um entre muitos gestos de homenagem ou submissão cultural à antiga potência colonizadora, patente na aquisição de quintas no Douro e de herdades no Alentejo, no serviço Cozinha Velha, da Vista Alegre, usado no faustoso casamento de Isabel com Sindika Dokolo, ou na fidelidade clubística ao Benfica, Sporting e Porto, do qual José Eduardo era um adepto ferrenho e até “Dragão de Ouro”.
Por cá, não foram poucos os que, por aperto financeiro ou ganância pura, ou ambas as coisas, trilharam caminhos parecidos com os da joalheira Grisogono, e, claro, acabaram envolvidos em sarilhadas judiciais infindáveis ou viram as suas empresas quase destruídas no turbilhão angolano.
Muita gente, da mais rica e da mais esclarecida, permaneceu insensível aos avisos que a História e o dr. Louçã fizeram, tomou Ana Gomes por “louca”, julgando que com eles não, com eles seria diferente, pois, até com laivos de racismo, sentiam-se mais espertos e astutos do que os generais angolanos, que pensaram ser capazes de domar e iniciar nos mistérios da economia de mercado.
Apertado pela troika, o país, como sempre, buscou uma escapatória externa, não já nos oiros do Brasil, nas remessas da emigração ou nos fundos de Bruxelas, mas nas “parcerias estratégicas” e nos negócios com as elites de um regime despótico, a quem foram vendidas casas e propriedades, participações e golden shares em grandes empresas, do mesmo passo que o poder político tudo fazia para aplacar os “irritantes” nascidos do natural labor investigativo das polícias e dos tribunais, e a servil academia lhes concedia os seus mais altos títulos e graus, em cerimónias doutorais de opereta que muito contribuíram para o desprestígio das nossas universidades (para não falarmos, claro, de coisas como a Medalha Municipal de Mérito, Grau Ouro, atribuída pela Câmara do Porto a Sindika Dokolo).
Impensadamente, julgou-se que era possível estabelecer um cordon sanitaire ético e moral entre o dinheiro dos angolanos e a sua origem sangrenta e corrupta, e os mais entusiastas até fizeram crer que, do ponto de vista do negócio e da racionalidade económica, nenhuma diferença havia entre a Autoeuropa e a Sonangol, como se, mesmo numa perspectiva puramente pragmática e empresarial, a solidez, a estabilidade e a perenidade de uma companhia não estivessem sujeitas à peculiar natureza dos seus sócios, à proveniência do seu dinheiro, ao contexto democrático ou autocrático em que se moviam, à tradição cultural de respeito, ou não, pelo Estado de Direito e pelos Direitos Humanos.
Quem se deu mal em negociar com Angola - e foram muitos - só pode queixar-se de si próprio e da sua avidez, lição que, como é óbvio, não foi aprendida: mal saíram os angolanos, entraram em cena os chineses, tomando posições-chave em sectores estratégicos soberanos, dos quais será difícil tirá-los.
Em entrevista recente, Isabel diz-se “particularmente orgulhosa” por ter ajudado a “construir uma ponte entre a ex-colónia e a antiga potência colonial, uma ponte de interesses comuns onde o relacionamento de trabalho era mais equilibrado e justo.” Acrescenta, com saudade, que, “antigamente, as relações entre Angola e Portugal eram mais fortes”, ao passo que agora, afirma, Lisboa limita-se a “aceitar todos os pedidos apresentados por Angola contra [si] e a executá-los sem questionar, o que é estranho.” (Expresso, de 15/2/2024). Como diria o outro, é a vida. *** Com o abandono da Presidência, José Eduardo - que a filha diz ter sido “muito honesto”, jamais motivado pelas riquezas, antes pela ideologia e pela libertação do povo (a ponto de, até 2004, ter vivido numa casa modesta de três quartos, tendo sido levado “à força” para o Palácio Presidencial, onde não se “sentia confortável” no meio de tanto luxo, preferindo andar com o mesmo fato de treino Adidas três dias por semana, garante a filha) -, José Eduardo, dizíamos, foi morar para uma mansão no Bairro de Miramar, forrada a mármores de Carrara, mas acabou por fixar-se em Barcelona, no luxuoso Bairro de Pedralbes, em opulenta casa que, curiosamente, antes pertencera a Jordi Pujol, que também terminou a vida política afundado em escândalos de corrupção e controvérsia (em 2014, por falta de financiamentos, fechou as portas o Centro de Estudos Jordi Pujol, destinado a divulgar a sua filosofia política e, pasme-se, o seu “pensamento ético”).
Morreu em 8 de Julho de 2022, aos 79 anos, mas as exéquias fúnebres só se realizaram em 26 de Agosto, após uma acesa e shakespeariana disputa que passou, inclusive, pelos tribunais (“o ávido não tem sepultura”, já se dizia no Livro dos Mortos do Antigo Egipto).
Meses depois, em Dezembro, o Tribunal Supremo de Angola ordenou a apreensão preventiva dos bens de Isabel dos Santos em instituições bancárias de Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé, num valor estimado de mil milhões de dólares. Que se saiba, têm caído em saco roto os apelos feitos por João Lourenço para o repatriamento voluntário de capitais desviados.
Isabel, que enviuvou em 2020 do exuberante Sindika Dokolo, morto enquanto fazia mergulho no Dubai (“a morte dele foi um mistério”, diz ela), não compareceu ao funeral do seu pai. A mãe Tatiana, de quem se diz ser muito próxima, adquiriu a nacionalidade britânica e reside actualmente entre Londres e o Mónaco, parece.
Quanto a ela, optou pela cidadania russa e mudou de residência profissional para o Dubai, dizendo-se que aí mora num condomínio de luxo construído numa ilha artificial em forma de cavalo-marinho, o Bulgari Resort and Residences, de onde só saiu uma ou duas vezes, em viagens-relâmpago para assistir a jogos no Mundial do Catar, segundo uma investigação do site Bellingcat. Já foi alvo de três “avisos vermelhos” (red notice) por parte da Interpol e as notícias mais recentes dão conta de que, por mais de uma vez, o procurador-geral de Angola se deslocou aos Emirados Árabes Unidos no seu encalço. Em Junho deste ano, o Tribunal de Recurso de Amsterdão condenou-a pelo desvio de 52,6 milhões de euros da Sonangol, através de uma ordem de transferência dada no próprio dia em que foi exonerada da presidência da petrolífera angolana.
Hoje com 50 anos, mãe de três filhos, Isabel José dos Santos tem sido caracterizada, de forma unânime, como uma mulher de grande inteligência e sagacidade, não havendo razão para descrer desses predicados: “Muito fria, muito discreta, muito inteligente e tem uma profunda noção estratégica das coisas” (Jornal de Negócios); “muito arguta e inteligente, tanto na reflexão como nos comentários” (Visão); “acho que ela seria uma grande empresária em qualquer país onde ela estivesse” (António Mota); “uma excelente empresária, a nível nacional e internacional” e “uma óptima gestora” (Ricardo Salgado).
O seu percurso de vida demonstra, porém, que de pouco vale a inteligência, quando é perturbada pela ganância. Não é descabido supor que Isabel tenha acreditado no seu próprio mito de self-made woman angolana, julgando que a sua riqueza e o seu poder não provinham inteirinhos, a 100%, do facto de ser filha de José Eduardo dos Santos, o que, obviamente, tornava muito difícil que conseguisse sobreviver à morte política e física do ex-presidente, sobretudo porque, à uma, tinha sido muito pujante o gamanço, e, à outra, manda a tradição tribal africana que um novo chefe, até para impor a sua autoridade, elimine com violência os resquícios mais gritantes do antecessor. Talvez por ter estudado em Inglaterra e viajado amiúde pelo Ocidente, cujas delícias a deslumbraram e gozou à farta, Isabel ter-se-á julgado cidadã do mundo, cosmopolita globetrotter, esquecendo-se de que, no fundo, nunca deixou de ser africana, e que de África dependia inexoravelmente o seu destino, para o bem e para o mal.
Vive hoje sequestrada e acossada num resort de luxo, em permanente sobressalto, e, sendo nova, passará o resto dos dias, na melhor das hipóteses, no pavor de ser detida e levada à sua terra de origem. Segundo a revista Flash!, de 22/2/2024, fazendo eco de uma entrevista ao Sunday Times, foi obrigada a enviar os filhos para Londres, onde vivem numa mansão em Kensington ao cuidado de “amas e guarda-costas”, tudo para lhes garantir o futuro.
Quanto ao exílio dourado nas Arábias, diz que “é muito aborrecido”, pois tem saudades de “pôr a mão na massa” e tratar de negócios milionários: “No que eu sou boa é a construir negócios. Mas agora passo a maior parte do tempo a lidar com advogados.” (numa das suas últimas batalhas judiciais, o Tribunal Supremo de Londres ordenou o congelamento dos seus activos e determinou-lhe um limite de gastos de 17,5 mil euros por semana; em Junho de 2023, o Tribunal de Recurso de Amesterdão condenou-a por falsificação de documentos e gestão danosa, incluindo o desvio de 53 milhões de euros da Sonangol).
“Estou muito entediada”, disse ela ao Expresso. De facto, as águas cálidas e os shoppings climatizados do Dubai poderão disfarçar o seu ennui e até dão boas fotos para pôr nas redes (é fera no Instagram, onde tem 555 mil seguidores, e 1,5 milhões no Tik-Tok), mas são um horizonte demasiado limitado e monótono para quem outrora circulava pelo mundo fora, entre mansões de revista e hotéis de luxo, em convívio próximo com os grandes do planeta, como ela, ou em festas repletas de vedetas e celebridades, como a que deu pelo seu aniversário, num palácio de Marraquexe, ou um baile da Cruz Vermelha em Luanda, instituição a que presidia, com a cantora Mariah Carey (cachet: um milhão de dólares), numa época em que o seu meio-irmão Danilo arrematava um relógio por 500 mil dólares num leilão de caridade em Cannes, para espanto do actor Will Smith, que se interrogou como é que um miúdo de 25 anos tinha tanto dinheiro para dar por um relógio.
Se tivesse sido um pouco mais moderada na avidez dos ganhos e dos gastos (não bastava muito, só uns milhões de dólares mais moderada), é possível, até provável, que Isabel dos Santos estivesse hoje a gozar tranquilamente a fortuna, passando incólume na transição de poder luandense. Mas não, falou mais alto a ganância, desmesurada e voraz, em prova provada de que, quando quer, e a deixam, a inteligência consegue ser muito estúpida.
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