Sarju Raikundalia foi diretor financeiro da Sonangol quando Isabel dos Santos liderava a empresa angolana. Em 2022, foi ouvido em segredo no Porto por investigadores holandeses que acabaram por acusar a filha do antigo Presidente de Angola, e o próprio Raikundalia, de práticas de má gestão numa empresa controlada nos Países Baixos.
Agravação começou exatamente às 15h53, numa sala do Hotel Crowne Plaza, no Porto. Era segunda-feira, 30 de maio de 2022. Naquele sigiloso encontro que acabou por durar quase 4 horas, um investigador holandês e a assistente recolheram o testemunho do antigo diretor financeiro da Sonangol escolhido por Isabel dos Santos quando a angolana dirigiu e terá defraudado em 2017 a empresa em muitos milhões de euros.
Mandatados para cumprir o despacho de 17 de setembro de 2020 das autoridades holandesas que, a pedido da Sonangol, ordenou uma investigação aos negócios e relações da Esperaza (empresa holandesa participada por Angola) a partir de 1 de janeiro de 2017, Willem Jan Van Andel e Eveline Neele iniciaram a entrevista com Sarju Raikundalia pedindo-lhe que lhes falasse do percurso profissional.
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Raikundalia não se fez rogado e foi ao pormenor, salientando que tinha começado a trabalhar no departamento de auditoria da PwC, no Porto, onde permaneceu quatro ou cinco anos focado em áreas como as da indústria, telecomunicações e serviços. Depois, com vários colegas, passou para outra empresa de auditoria também no Porto até receber, em 2008, um convite para trabalhar na PwC em Angola. Nessa altura, a PwC Portugal e a congénere angolana tinham acionistas independentes e Raikundalia mudou-se para Luanda em janeiro de 2009, juntamente com a mulher e os filhos, tendo trabalhado na PwC local durante cerca de sete anos, até 2016. Foi nesse período que se especializou no setor do petróleo e do gás, tendo passado a ser, a partir de 2013, um dos acionistas da PwC local.
Nesse dia, no Porto, Raikundalia destacou ao investigador dos Países Baixos que Angola não tinha muitos especialistas no setor do petróleo e que isso ajudou-o bastante. Já depois da fusão entre as PwC Portugal e Angola e de o Presidente angolano José Eduardo dos Santos decidir avançar reestruturação da indústria do petróleo e do gás, Raikundalia viu-se confrontado com uma abordagem de um dos sócios da PwC, que estava a auxiliar o governo angolano a reformar a Sonangol porque os preços internacionais do petróleo estavam a diminuir e a provocar grande mossa na economia. Coincidência ou não, uma das mudanças que a PwC e outros consultores externos propuseram foi a necessidade de uma nova equipa para dirigir a gigante empresa pública angolana.
Conforme garantiu Raikundalia, teve uma “reunião informal” com um antigo colega já então um dos homens fortes da PwC Portugal, Ivo Faria (afastado da consultora após o caso Luanda Leaks), que lhe terá feito um convite. “Olha, precisamos de alguém com o teu currículo para o conselho de Administração da Sonangol”, recordou Raikundalia garantindo que inicialmente recusou a ideia, porque estava farto de viver entre Luanda e Lisboa, sendo que a mulher e os três filhos moravam há cerca de dois anos em permanência na capital portuguesa. A outra razão que Rakundalia disse ter para não aceitar o desafio da Sonangol era que sabia como seria difícil estar numa empresa pública de um país que tinha óbvios problemas relacionados com a corrupção e outras más práticas. “As melhores práticas lá não existiam (…), nunca se percebia o que estava a acontecer por trás”, frisou antes de se justificar ao investigador holandês: “Compreendo que esteja surpreso por eu ter acabado por aceitar o cargo”. De seguida, salientou que “era uma pessoa muito ambiciosa” e que não conseguira entrar como consultor externo da Sonangol.
"Então, o Ivo disse-me: ‘vou falar com a Sra. Isabel’, porque naquela época ele estava em contacto direto com a Sra. Isabel dos Santos e principalmente com o Mário [Leite da Silva], com quem tinha vários compromissos.” A Van Andel, Raikundalia esclareceu outro facto: “Até esse período, eu nunca tinha conhecido a Sra. Isabel ou o Mário, nunca, em toda a minha vida. Eles não sabiam, acho, que eu existia.”
Se não sabiam passaram a saber porque Raikundalia recebeu pouco depois um telefonema do amigo Ivo quando estava em Lisboa. “Bem, você vai ser nomeado”, disse-me ele e eu digo “mas eu não disse ‘sim’ (…) Como posso ser nomeado?” E ele diz: “Não, você tem duas opções, ou você aceita ou não aceita e será nomeado de qualquer maneira, porque é o Presidente de Angola que escolhe a equipa, então ele pode trazer pessoas do setor privado. Portanto, a lei permite que ele escolha pessoas temporariamente para ajudar a administrar uma empresa estatal.”
Segundo Raikundalia, a hipótese de avançar só se colocaria se pudesse, como CFO, “controlar todas as transações bancárias da Sonangol”, algo extraordinariamente relevante numa empresa pública daquela dimensão e cujos negócios eram o principal cofre do Estado angolano.” E então o que o Ivo me diz é: “Okay, vamos discutir isso com o Sr. Mário Silva”. Eu disse: “Okay, posso ter essa discussão, mas não sei por que vou fazê-lo com ele, mas ...”
Depois de interrompido pelo investigador holandês que lhe perguntou se queria água, Raikundalia continuou com aquilo que alegadamente ouvira do diretor da PwC: “Então ele disse: “(…) é o único que está a ajudar a Isabel a montar e a recrutar uma equipa” e eu disse: “Okay. Então, se eu tiver de falar com ele, falarei com ele”, mas este é um assunto muito sensível. Foi quando conheci o Sr. Mário naquela época.”
O que fazia Isabel nas reuniões
Assim, entre abril e maio de 2016, Raikundalia terá reunido com o então braço direito de Isabel dos Santos. “Então, eu disse ao Sr. Mário, “não sei se você está ciente, mas há vários atos de corrupção na Sonangol, sabe, em termos de processo de licitação e assim por diante”, tendo o auditor garantido que explicou a Mário Leite da Silva que o processo de transformação da Sonangol – a reavaliação de todos os contratos e negócios com fornecedores – iria criar muitos inimigos. “Então, você precisa do patrocínio do Presidente nesse caso, não do conselho de administração da Sonangol, você precisa do patrocínio do Presidente de Angola, porque, em última instância, muitas pessoas do Partido [MPLA] serão afetadas pelo programa de transformação”, destacando que era urgente avançar com um plano “porque a Sonangol está falida. Certo?”
Van Andel (VA): “Você está a falar sobre corrupção no passado e o projeto que tinha de ser feito. Mas se você se juntasse como CFO à Sonangol, o que acabou acontecer, não era uma preocupação para você fazê-lo com a filha do Presidente, que seria a presidente do conselho da Sonangol?”
Sarju Raikundalia (SR): “Mário compartilhou comigo acho que dois ou quatro currículos para a administração, se não estou enganado (…), e depois perguntei-lhe: ‘Mas quem será o CEO ou o presidente?’ (…) Então, Mário diz: ‘você vai reportar à Sra. Isabel’. A minha primeira reação foi: ‘Ok, mas eu não conheço a Sra. Isabel. Sei que ela é uma grande investidora, mas ela não tem background em petróleo e gás. Então como posso reportar a uma pessoa que é filha do Presidente, como é que isso funciona?’”
VA: “Era essa a minha pergunta.”
SR: “Então, o que ele me explicou foi que havia vários problemas na Sonangol que eles queriam abordar e um era a falta de dinheiro na empresa. Então eles disseram: ‘ninguém entende por que não há dinheiro na Sonangol, porque, tendo uma receita de vários bilhões de dólares, a operação deveria gerar muito dinheiro’ (…) Foi por isso que eles queriam alguém também com formação em auditoria, que pudesse entender o fluxo do dinheiro e as transações. E ao mesmo tempo, o que ele disse foi que a única maneira de fazer isso acontecer era ter a filha do Presidente lá, porque o Presidente estava muito interessado nos resultados e era ela a pessoa em quem ele mais confiava. Então o papel dela, de acordo com o Sr. Mário, era por ser uma empresária e ter experiência em gerir equipas. (…) ela tem um histórico de sucesso em recrutar pessoas fortes. (…) isso eu sei, porque (…) muitos dos meus antigos colegas na PwC Angola foram recrutados para trabalhar nas empresas dela em Angola, e essas pessoas eram muito competentes tecnicamente.”
Durante a conversa, Van Andel quis saber como funcionava o conselho de administração da Sonangol e se Isabel dos Santos participava nas reuniões. Raikundalia garantiu-lhe que o Conselho tinha reuniões regulares e que lá estivera no início como membro não executivo. O investigador pareceu ficar surpreendido, o auditor frisou-lhe que já o tinha referido num depoimento escrito que lhe mandara, mas disse-lhe que também ele tinha estranhado. “Então, quando fui nomeado em junho, a 6 de junho, fui nomeado como membro não executivo do conselho, ok, o que foi muito estranho para mim, para ser honesto, porque naquela época eu perguntei: ‘O que está a acontecer?’ (…) Então, o que me disseram naquela época foi que havia um limite para o número de membros do conselho e, no meu caso, o que eles queriam fazer – a Sra. Isabel, como presidente, queria discutir com os demais diretores executivos para fazer uma delegação de autoridade para mim, para todas as áreas que compreendiam o papel executivo. Então, três dias após a minha nomeação, recebi uma delegação de competências do conselho de administração dizendo qual seria o meu papel a partir daquele momento.”
VA: “Então você era não executivo, mas tinha poderes sobre o executivo?”
Raikundalia confirmou e o investigador perguntou se ainda tinha o documento que lhe atribuíra as tais funções na Sonangol. O auditor referiu que achava que já o tinha remetido para o processo, mas poderia naturalmente enviá-lo por email a Van Andel. E acrescentou que queria continuar a falar para não se esquecer do que estava a dizer: “Então, basicamente, tínhamos reuniões regulares do conselho de administração com todos os executivos, incluindo eu mesmo, com a delegação de competências. Essas reuniões eram muito regulares. Em algumas a Sra. Isabel estava presente fisicamente, e em outras, ela participava por videoconferência, porque estava em viagem para algum lugar ou algo assim. E houve um período em que ela estava grávida, então ela estava...”
O investigador quis saber o que é que a filha do Presidente de Angola fazia exatamente nas reuniões porque “você já disse que ela não tinha muita experiência nos setores do petróleo e do gás”. Raikundalia ficou um pouco atrapalhado, começou por destacar a “inteligência” de Isabel dos Santos e disse: “Ela era muito ativa nas reuniões, nos assuntos que deviam ser discutidos e nas perguntas. Mas quando a equipa entrava nos aspetos técnicos, em termos da indústria de petróleo e gás (…), então podia-se ver que para ela era um pouco difícil acompanhar o ritmo.”
As mortes muito suspeitas
Sarju Raikundalia acabou por estar cerca de um ano e meio na Sonangol e foi ele que também terá autorizado dezenas de pagamentos de muitos milhões de euros a alegados consultores externos da empresa. Consultadorias que tinham uma empresa intermediária, a Matter, uma entidade controlada por Paula Oliveira, uma das amigas de Isabel dos Santos – de resto, a Matter chegou a chamar-se Wise, esta sim detida diretamente por Isabel dos Santos e que foi uma das prestadoras de serviços à Sonangol antes da filha de Eduardo dos Santos ser escolhida para presidir à maior empresa angolana.
Sobre os pagamentos aos consultores e a forma como foram feitos (até já depois da demissão de Isabel dos Santos) através de transferências internacionais a partir do Eurobic, em Lisboa, o investigador dos Países Baixos perguntou a Sarju Raikundalia se conhecera um alto quadro daquele banco controlado em Portugal por Isabel dos Santos e pelo banqueiro Fernando Telles. O nome? Nuno Ribeiro da Cunha. Raikundalia disse-lhe que sim e que também sabia que esse diretor do banco tinha morrido pouco depois de serem feitas as transferências ordenadas pela Sonangol que estão sob investigação em Angola, Portugal e nos Países Baixos. Van Andel questionou se Raikundalia via alguma ligação entre a morte e o caso. “Há uma ligação, sim”, respondeu-lhe de imediato o ex-gestor da Sonangol.
Van Andel (VA): “Sim? Qual é a ligação, sabe?”
Sarju Raikundalia (SR): “O que posso dizer é que ao longo do mandato na Sonangol, onde estive durante 18 meses, recebi ameaças de morte de forma muito regular, incluindo para os meus filhos, que estavam em Portugal.”
VA: “Ameaças de morte?”
SR: “Sim e ainda recebo.”
VA: “Quem o ameaçou?”
SR: “Recebo mensagens de pessoas que…”
VA: “Está a dizer que recebe mensagens de pessoas que corromperam na Sonangol antes de junho de 2016 e que, através do seu trabalho como CFO, se sentiram ameaçadas?
SR: “Sim (…) mesmo o meu CEO, o Sr. Paulino Jerónimo, dizia-me ‘Estou a receber mensagens do partido e do bureau político de que tu, como CFO, estás a trabalhar demasiado. Estás a trabalhar muitas horas. Deves diminuir. Não trabalhes tanto.’ O que é que acha disto?”
VA: “Não sei.”
SR: “Através de telefonemas ou de mensagens algumas pessoas diziam que conseguiam ver os meus filhos a saírem da escola em Portugal.”
O investigador foi deixando falar Raikundalia, que chegou a garantir que um dia iria escrever um livro “baseado em provas”, dando a entender que teria documentação que o ilibava de tudo e que comprometia outros por atos corruptos na Sonangol. Depois, Van Andel voltou à questão da morte do diretor do Eurobic que em Portugal chegou a ser investigada pela PJ, mas que foi considerada um suicídio. “Não tenho evidências do que lhe sucedeu, mas sei o que passei. Por isso não me surpreende que o que aconteceu esteja ligado a isto. Quem fez ou porque razão, não faço ideia”, respondeu Raikundalia.
Andel estava prestes a mudar de tema quando o interlocutor o interrompeu: “Mas é estranho que algumas pessoas tenham morrido, certo? Essa pessoa morreu, o Sr. Sindika [Dokolo, marido de Isabel dos Santos] morreu [considerado um acidente de mergulho], tens a Sra. Eunice de Carvalho que morreu.”
VA: “Essa senhora é quem?”
SR: “A Senhora Eunice de Carvalho era membro do conselho [administração da Sonangol]. Ela também morreu em Angola.”
VA: “Ok.”
SR: “Então, tens muitas pessoas a morrerem de repente e do conselho de administração ou relacionadas com ele. Não acredito em coincidências.”
Mais adiante na longa inquirição no hotel do Porto, Raikundalia chegou a dizer ao investigador que as alegadas pressões que sofrera incluíram ser expulso de Angola.
VA: “Quando?”
SR: “Fui demitido e expulsaram-me do país porque…”
VA: “Imediatamente?”
SR: “Não, eles disseram: ‘Você terá que sair da sua casa porque vamos cancelar o seu visto de trabalho.’”
VA: “Ah, entendi. Então você voltou para Portugal.”
SR: “Não (…) Na tarde de 16 de novembro [2017], depois da cerimónia onde tomaram posse os novos membros da Administração da Sonangol (…), fomos todos para a sala do conselho, os antigos diretores e os novos, com o ministro do Petróleo e o secretário de Estado do Petróleo, porque eles queriam planear a transição.”
VA: “O Presidente de Angola [João Lourenço] não estava lá?”
SR: “Não, o Presidente não estava presente. Ele delegou no ministro do Petróleo, que é o ministro responsável pela supervisão da Sonangol no primeiro nível. Nesta reunião, com base nas instruções do ministro, concordámos todos que tínhamos cerca de, se não estou enganado, uma ou duas semanas no máximo para concluir a transição das nossas responsabilidades, com todas as informações, todos os assuntos significativos, e assim por diante. Então, no final de novembro, recebi uma mensagem do novo conselho a dizer que eu tinha de sair do meu apartamento imediatamente e também tinha de sair do país, porque iriam cancelar o meu visto de trabalho. Eu era estrangeiro, então tinha um visto de trabalho.
VA: “Hum, hum.”
SR: “Então vim para Portugal.”
O investigador quis então saber se Sarju Raikundalia não tinha recebido qualquer indemnização da Sonangol, afinal tinha prescindido de um bom cargo na PwC antes de entrar na empresa angolana. O gestor disse que o contrato, mesmo em caso de demissão, previa uma indemnização equivalente a dois anos de salário para não competir na indústria do petróleo e do gás com a Sonangol. Só que não recebera nada. Van Andel perguntou a Raikundalia se se tinha conformado com isso e este respondeu-lhe: “Eu paguei a vários advogados angolanos, que tiveram várias reuniões com a Sonangol, que sempre se recusou a pagar. Disseram que eu posso ir a um tribunal angolano para resolver o litígio.”
VA: “Hum, hum.”
SR: “O mais estranho é que Angola diz que eu desapareci desde o dia em que fui demitido, embora tenha viajado frequentemente para Angola depois de ser demitido e os meus advogados estiveram sempre em contacto com eles. Mas insistem que eu desapareci do mundo e isso passou para as notícias, para a TV.”
VA: “Mas você está aqui, eu e a Eveline podemos confirmar que você não desapareceu do mundo.”
SR: “(...) coloquei-me totalmente à disposição deles, mas não querem falar comigo, o que é estranho.”
A decisão foi da Presidente
Depois de ter sido demitido da Sonangol e de uma pequena pausa “para estar em família”, em abril de 2018, Raikundalia foi contratado pela Santoro, a empresa que chegou a ter uma importante participação no banco BPI. “A Sra. Isabel dos Santos aproximou-se de mim dizendo que precisava da minha ajuda, ok, porque ela queria que eu fizesse planos de recuperação e reestruturasse algumas de suas empresas, alguns de seus ativos em Angola. Então ela contratou-me em junho de 2018, mas depois renunciei ao meu cargo em abril de 2020.”
Raikundalia desabafou que desde essa altura “estava a lutar” para se erguer. “Eu não posso abrir uma única conta bancária em qualquer lugar do mundo. E todas as minhas contas estão congeladas, incluindo as de meus filhos, que tinham apenas mil euros, então…”
VA: “Isso é em Portugal, aqui.”
SR: “Sim. Além disso, tentei candidatar-me a empregos e todas as empresas adoram o meu perfil, mas não querem contratar-me por questões de conformidade.”
VA: “Porque, quando se pesquisa ‘Raikundalia’, encontra-se o seu nome associado a…”
SR: “Sim, dizem todas essas coisas boas sobre mim. O que fiz foi, se ninguém me contrata, então vou trabalhar por conta própria. Abri uma empresa aqui em Portugal em fevereiro do ano passado [2021], mas então fui tentar abrir uma conta bancária para essa empresa e todos os bancos recusaram. Com base nas leis portuguesas, você não pode ter uma empresa sem uma conta bancária, então, embora a empresa esteja constituída, está inativa. Então fui para o Dubai, primeiro, porque era muito difícil para mim viver aqui diariamente, já que há muita ‘porcaria’ sobre mim. Em segundo lugar, porque no Médio Oriente tenho uma enorme rede de pessoas que conheço porque trabalham em empresas de petróleo e gás. Eles disseram-me ‘vem para o Dubai, nós vamos ajudar-te.’”
VA: “Ok.”
SR: “(…) mas, às vezes, oiço as pessoas comentarem: ‘Se estás no Dubai é porque já levas uma vida boa’, e isso não é verdade.”
Porventura a associação ao Dubai levou Van Andel a querer saber se Raikundalia ainda mantinha contacto com a antiga patroa Isabel dos Santos. “Tenho contactos regulares, a cada três meses, mais ou menos”, respondeu o gestor especificando que Isabel dos Santos – então ainda sem mandado de captura internacional – passava muito tempo entre o Dubai e Londres, cidades onde tinha vários negócios e luxuosos imóveis.
VA: “Culpa-a de alguma coisa?”
SR: “É difícil dizer. Por um lado, eu acho que, e disse-lhe isso, toda esta situação poderia ter sido tratada de maneira diferente, porque no caso das transferências, os consultores da Matter, a minha opinião é que não se devia pagar. Cabia ao novo conselho da Sonangol avaliar se deveriam pagar.”
VA: “Então porque é que você fez isso?”
SR: “Porque foi uma decisão da presidente.”
VA: “Você tem de fazer isso, é assim? Você tem a sua própria responsabilidade.”
SR: “Não foi minha a decisão, foi da presidente. E nenhum dos membros do conselho se opôs a isso. Eu fui o único que disse: ‘Olhe, porque é que devemos pagar isso, porque não é o nosso...’ Mas ela disse: ‘Não, é minha decisão. Sou a presidente.’”
A longa conversa estava a chegar ao fim. Raikundalia deixou alguns documentos em papel ao investigador, prometeu que iria ver se tinha emails relacionados com o caso dos milhões que saíram do grupo Sonangol, algo que Van Andel desejava bastante. Antes de se despedirem, Raikundalia ainda se queixou que ninguém parecia muito interessado em ouvir a sua versão do que se passara, inclusive a garantia que só conhecera Isabel dos Santos praticamente quando fora nomeado. Apesar disso, segundo referiu, a filha do Presidente Eduardo dos Santos continuava com muita boa impressão profissional dele.
Aproveitando a deixa o investigador disse a Raikundalia que gostaria de falar com Isabel dos Santos, mas que não conseguia sequer contactá-la. “Tem certeza?”, questionou o gestor que depois se prontificou a ajudar: “Eu tenho o número dela. E como me encontro com ela de três em três meses, se quiser, posso passar a mensagem de que você quer falar-lhe.”
VA: “Fico-lhe agradecido se puder passar essa mensagem.”
SR: “Ok.”
VA: “Talvez você possa dizer que sou apenas [inaudível devido à sobreposição de vozes].”
SR: “Vou-lhe dizer que você só quer fazer o seu trabalho.”
O investigador nunca conseguiu o encontro presencial com Isabel dos Santos e fechou a investigação uns meses depois da inquirição a Raikundalia, em outubro de 2022, com um relatório devastador de 181 páginas para Isabel, Mário Leite da Silva e o próprio Raikundalia. O relatório mencionou e reproduziu dezenas de documentos bancários, emails e testemunhos com vista a reconstituir o que se terá passado nas horas em que foram tomadas as decisões de transferir muitos milhões da Esperaza/Sonangol para a Exem, controlada por Isabel e o marido Sindika, bem como outras movimentações financeiras, apressadas e igualmente com cifras elevadas, ocorridas imediatamente após Isabel dos Santos ter sido demitida em novembro de 2017 de presidente da Sonangol. Revista SÁBADO
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