QUANDO A VINGANÇA NÃO CASA COM A JUSTIÇA (I)



"A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”

(Ruy Barbosa de Oliveira (5 de Novembro de 1849 a 1 de Março de 192399, polimata brasileiro que se destacou como  jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador).  

“Isca” eleitoral na campanha de 2017, reanimada em 2022, João Lourenço transformou, desde os seus primeiros momentos, a dita cruzada contra a corrupção num instrumento de vingança e de perseguição a alvos previamente marcados.

A caminho do sétimo ano no poder, o Presidente João Lourenço e todo o aparelho de justiça, que comanda com mão de ferro, não levou à barra do tribunal qualquer corrupto ou corruptor produzido na chamada nova Angola. Embora abundem provas e evidências de um cada vez mais desenfreado assalto ao erário, as poucas acções que o Presidente da República designa como combate à corrupção reportam-se ao passado. É essa fixação ao passado e a alvos preferencialmente identificados com o seu antecessor que dão de João Lourenço a imagem de vingador selectivo.


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O conhecido processo dos 500 milhões de dólares, envolvendo José Filomeno dos Santos (Zenu), primogénito do falecido Presidente José Eduardo dos Santos, Valter Filipe, antigo governador do Banco Nacional de Angola, e o empresário Jorge Gaudens Sebastião configura um exemplo acabado de vingança, movido por razões estritamente pessoais. 

A breve reconstituição do processo, que aqui se faz, deixa completamente desamparada a ideia de que o combate à corrupção, à impunidade ou a malversação de dinheiro público é estritamente movido pelo interesse de punir quem, de facto, assaltou o erário. Várias vezes revisitado, vale a pena fazê-lo mais uma vez para que a totalidade dos angolanos saiba separar o trigo do joio, ou seja, que não tome como justiça a vingança e a perseguição a pessoas indesejadas.

Os factos:

José Filomeno dos Santos, Valter Filipe e Jorge Gaudens Sebastião foram constituídos arguidos em 2018 sob a acusação de haverem urdido um esquema que, no limite, custaria ao erário angolano qualquer coisa como 30 biliões de dólares. Um ano depois foram a julgamento sob a acusação de haverem transferido ilicitamente 500 milhões de dólares para uma conta domiciliada em Londres. Segundo a acusação, tal operação teria sido autorizada pelo anterior Presidente da República. 

Profusamente citado no processo como tendo sido enganado, em Dezembro de 2020 José Eduardo dos Santos dirigiu uma primeira carta ao Procurador Geral da República, Hélder Pitta Gróz, a quem se oferece para ser ouvido em virtude de “várias imputações de presumíveis actos ilícitos criminais” dirigidas a alguns dos seus ex-colaboradores directos, “nas quais de forma directa ou indirecta também são imputados factos ofensivos ao meu bom-nome, honra e consideração”. 

Nessa carta, o antigo Presidente da República confirma ter autorizado a operação, assegurando que fê-lo visando a criação de uma fonte de financiamento que seria deixada à disposição do futuro Presidente da República. No mesmo documento, José Eduardo dos Santos assegura que o seu sucessor toi posto a par de todos os contornos da operação. José Eduardo dos Santos revelou que a operação para a obtenção de um financiamento de 30 biliões de dólares começou a ser estruturada em 2016 e que nessa altura chamou ao palácio presidencial não apenas Valter Filipe, Zenu dos Santos e Jorge Gaudens como Manuel Júnior, então secretário do Bureau Político para a Esfera Económica e futuro coordenador da equipa económica do Executivo de João Lourenço. Por orientação de José Eduardo dos Santos, Presidente da República e do MPLA, Valter Filipe deslocar-se-ia, dias depois, à sede do MPLA para entregar, em mão, todo o dossier a Manuel Júnior.

Num primeiro momento, o Ministério Público, autor da acção penal, não reagiu ao testemunho escrito de José Eduardo dos Santos.

A Sala Criminal do Tribunal Supremo ignorou a instrução contraditória e marcou o julgamento dos três arguidos.

Já na fase de julgamento e sob forte pressão da defesa, o Tribunal “condescendeu”, solicitando aos defensores que o ajudassem a fazer chegar a José Eduardo dos Santos um questionário, cujas respostas seriam importantes para o bom andamento do julgamento. Estranhamente, o Tribunal ignorou a carta em que JES chamou a si a autorização para a operação de captação do financiamento. 

O Procurador Geral da República não reagiu a nenhuma das cartas do antigo Presidente da República.

Cabalmente atendido, o Tribunal acabaria, porém, por desvalorizar os respostas de José Eduardo ao questionário que lhe foi dirigido sob a alegação de que as respostas poderiam ter sido forjadas, uma vez que, no essencial, coincidiam com os argumentos que o advogado Sérgio Raimundo esgrimia. 

Desafiado pela defesa a criar condições para ouvir directamente o antigo Presidente, já que este estava vivo e em condições de falar de viva voz, o Tribunal e o Ministério Público ignoraram completamente o pedido.

No dia 8 de Novembro de 2021, José Eduardo dos Santos enviou outra carta ao Procurador Geral da República na qual lhe roga o direito de exercer o seu direito constitucional de se defender em processos em que o seu nome foi envolvido.

Nessa carta, diz que “com o desígnio único e exclusivo de contribuir para a descoberta da verdade material e para a realização efectiva dos mais elementares ideais da justiça e, na qualidade de cidadão da República de Angola” reafirma “ o interesse de exercer o seu direito de defesa da sua integridade moral, do seu bom nome, honra e consideração (…) rogando obséquio (…) de em sede das instituições competentes do Estado angolano encarregues da administração da justiça (…) prestar os devidos esclarecimentos em forma de declarações (…)”.

Desesperado, JES adverte que, se não lhe fosse permitido “prestar os devidos esclarecimentos dentro de um prazo razoável”, ver-se-ia obrigado a “fazê-los publicamente, em conferência de imprensa, para que, desta forma, pouco desejada pelo Requerente, prestar os devidos esclarecimentos à Nação”. 

Nem o Procurador Geral da República, nem as restantes entidades a quem remeteu cópias da carta, nomeadamente os Presidentes da República, da Assembleia Nacional e dos Tribunais Constitucional e Supremo, Provedoria da República e ainda às Igrejas reconhecidas e Partidos Políticos com assento no Parlamento

 pareceram recear a ameaça do antigo Presidente de expor em praça pública o que ele queria somente dizer em fórum próprio.

José Eduardo dos Santos morreu a 8 de Julho de 2022, no mesmo dia em que a sua segunda carta a Hélder Fernando Pitta Grós completou exactos 8 meses. Morreu sem que a Procuradoria Geral da República lhe aceitasse o direito à defesa do seu bom-nome.

Correio Angolense 

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