No passado dia 20 de Dezembro, o juiz Robert Bright, do Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e do País de Gales, concedeu uma ordem mundial de congelamento de bens contra Isabel dos Santos. Em causa está uma dívida da Unitel International Holdings (holandesa), propriedade exclusiva de Isabel dos Santos, à Unitel (Angola), cujo montante pode ir até 580 milhões de libras.
No passado dia 20 de Dezembro de 2023, o juiz Robert Bright, do Tribunal Superior de Justiça de Inglaterra e do País de Gales (Secção Comercial), concedeu uma ordem mundial de congelamento de bens contra Isabel dos Santos a favor da Unitel.
A Vidatel, de Isabel dos Santos, detinha 25 por cento do capital da Unitel desde a sua fundação até 2022, altura em que o presidente João Lourenço nacionalizou tal participação societária, assim como os 25 por cento que pertenciam à GENI S.A, então controlada pelo general Leopoldino Fragoso do Nascimento. A Sonangol, petrolífera estatal, é accionista com 50 por cento do capital. Com essa medida, o Estado angolano passou a controlar a totalidade do capital da Unitel.
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A ordem do tribunal britânico resulta de um pedido da Unitel (Angola), que alegou ter emprestado à sociedade holandesa Unitel International Holdings B.V. (UIH), propriedade exclusiva de Isabel dos Santos, um total de 323 milhões de euros e 43 milhões de dólares. A Unitel (Angola) entende que as condições destes empréstimos não eram comerciais, na medida em que estes foram concedidos a taxas de juros injustificadamente baixas e sem qualquer garantia significativa. Segundo a Unitel, Isabel dos Santos obteve os empréstimos através da empresa holandesa para seu benefício pessoal. Além disso, a Unitel clarificou que Isabel dos Santos, sendo simultaneamente administradora da Unitel (Angola), violou os deveres de diligência, cuidado e lealdade para com a Unitel (Angola). Ainda de acordo com a Unitel (Angola), a Unitel International Holdings B.V. deixou de pagar quaisquer juros sobre vários contratos a partir do final de 2019/ início de 2020.
Com esse argumento, a principal operadora de telefonia móvel do país solicita uma indemnização, incluindo juros, no valor de 580 milhões de libras esterlinas (740 milhões de dólares), através de uma ordem de congelamento contra Isabel dos Santos.
Em causa está uma dívida da Unitel International Holdings (holandesa), propriedade exclusiva de Isabel dos Santos, à Unitel (Angola), cujo montante pode ir até 580 milhões de libras. Devido a essa dívida, pede-se o congelamento (arresto, na linguagem legal lusófona) de bens de Isabel dos Santos em todo o mundo.
O caso da Unitel explica-se de forma simples. Enquanto administradora da Unitel (Angola), Isabel dos Santos obteve empréstimos desta empresa para outra empresa também chamada Unitel, mas sediada na Holanda, que controlava inteiramente. Esses empréstimos não tinham garantias adequadas e a taxas de juros eram diminutas. Até ao momento, não foram pagos. Na prática, Isabel dos Santos fez sair dinheiro da Unitel (Angola) para a Unitel (Holanda) num valor superior a 300 milhões de dólares e nunca pagou esse dinheiro. Este é o argumento da Unitel (Angola).
Obviamente, e de forma contundente, Isabel dos Santos contesta esta narrativa, invocando que o conselho de administração e os accionistas da Unitel (Angola) aprovaram as transacções, e enfatizando o ponto essencial da sua defesa, segundo o qual este processo, como muitos outros, apenas resulta de uma campanha política contra si, movida por instigação do actual governo de Angola.
A decisão do juiz Bright não se debruça sobre a substância da matéria. À semelhança das providências cautelares no direito angolano, as ordens de congelamento inglesas não são decisões finais, mas, apenas cautelas provisórias tomadas antes da decisão do processo de fundo.
Para emitir a ordem de congelamento, o juiz tem de considerar três pontos:
i) Se existe um caso com um bom argumento quanto ao mérito.
ii) Se há risco real, avaliado objectivamente, de que uma decisão judicial futura não seja cumprida devido a uma dissipação injustificada de activos.
iii) Que seja justo e conveniente, em todas as circunstâncias, conceder a ordem de congelamento.
No fundo, bem se vê que os critérios não são muito diferentes daqueles que existem para a concessão de providências cautelares no direito angolano, que como se sabe assentam no fumus boni iuris e no periculum in mora, sendo que a primeira expressão se refere ao sinal de bom direito ou aparência de bom direito e a segunda ao perigo de dissipação de bens.
No caso concreto, o juiz inglês ocupa uma boa parte da sua argumentação com a discussão acerca do significado de um caso com um bom argumento material, detalhando as mais recentes decisões judiciais inglesas sobre o conceito. Depois de definir o que entende ser um caso com um bom argumento material nos termos do direito inglês, o juiz dedica-se a analisar a lei material angolana, designadamente, o artigo 80.º da Lei das Sociedades Comerciais Angolanas, que se refere às acções de indemnização contra sócios de uma sociedade. O interessante desta parte da argumentação é que ambas as partes apresentaram pareceres de académicos que servem de orientação para o juiz.
Do lado da Unitel, está um parecer do professor Dário Moura Vicente, professor catedrático português da Universidade de Lisboa que cultiva o direito comercial internacional. Do lado de Isabel dos Santos, surge um parecer da professora Maria de Fátima Ribeiro, professora associada portuguesa da Universidade Católica de Lisboa, especializada em direito empresarial.
O curioso a anotar é que temos três pessoas a opinar e a decidir sobre o direito angolano, e nenhuma delas é angolana nem sequer tem um trabalho académico permanentemente dedicada a Angola. O juiz é inglês, e faz um esforço meritório para perceber os detalhes da lei angolana, e os dois peritos são distintos professores de universidades portuguesas. Não haveria nenhum professor de uma universidade angolana disponível para fazer os pareceres para as partes? Continuará o direito angolano a ser menorizado desta forma pelos angolanos?
Na sua decisão, o juiz considera que os argumentos da Unitel e do professor Moura Vicente são bons, concluindo que “a Unitel tem uma base probatória plausível (embora contestada) para o seu caso”. A primeira condição para a concessão da ordem do congelamento fica, portanto, verificada.
Sobre o risco de dissipação, o juiz refere que nem sequer foi contestado por Isabel dos Santos, portanto, claramente existe. Além do mais, o juiz refere, com preocupação referente aos actos de Isabel dos Santos, o acórdão do Tribunal de Recurso de Amesterdão sobre o caso Esperaza Holding B.V. que envolve Isabel dos Santos, que comprovou e explica em detalhe que Isabel dos Santos “utilizou, consciente e deliberadamente, documentos falsos para extorquir quantias muito substanciais de dinheiro à Esperaza, a título de pagamento de dividendos”.
Finalmente, o juiz declara parecer-lhe “altamente desejável que [Isabel] dos Santos seja agora intimada a revelar os seus bens, numa situação em que a Unitel não sabe quais são os seus bens, se é que os tem, que não estão abrangidos pelas outras ordens de congelamento já existentes”, preenchendo, assim, o terceiro requisito para conceder a ordem de congelamento.
Consequentemente, a ordem de congelamento, que pode abranger bens imobiliários no Reino Unido que se diz valerem até 33,5 milhões de libras, bens imobiliários no Mónaco no valor de 55 milhões de dólares e bens imobiliários no Dubai no valor de 40 milhões de dólares, é concedida pelo juiz, que alarga a ordem a todo o mundo, afirmando “ser um caso óbvio para uma ordem de congelamento mundial”.
Aqui está o essencial da decisão do caso da Unitel contra Isabel dos Santos decidido em Londres no passado mês de Dezembro.
Há algumas observações curtas que se podem ainda fazer. A primeira é sobre o juiz. É sempre interessante ver a meticulosidade das decisões dos juízes ingleses, que não existe em muitas outras jurisdições, em que muitas vezes temos decisões abstractas, generalistas e pouco cuidadas. Talvez a formação própria dos juízes ingleses explique esse cuidado. O juiz Bright apenas entrou neste tribunal em 2023. A sua carreira foi essencialmente como advogado. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Oxford, começou a advogar em 1987. Em 2006 foi designado Queen’s Counsel (QC), uma espécie de mais alto grau da advocacia. Só em 2018, depois de uma longa carreira na barra, se tornou juiz. Primeiro num tribunal criminal de primeira instância, e agora num tribunal superior.
Há medida que o tempo passa, cada vez me parece melhor que a carreira de juiz não seja algo de independente e fechado que se começa aos vinte e poucos anos, mas sim o resultado de uma razoável experiência como advogado ou professor de Direito, indo-se buscar abertamente os juízes à sociedade civil.
A segunda observação liga-se à inexistência de acusação em processo-crime em Angola contra Isabel dos Santos. Isso é inadmissível e retira força aos intentos de qualquer parte noutras jurisdições. O próprio juiz inglês anota que “ainda não foi instaurado qualquer processo penal ou civil contra a Sra. dos Santos em Angola”. É demasiado mau.
A terceira e última observação liga-se ao facto de os processos contra Isabel dos Santos terem uma vida própria que já ninguém controla. Podem estar parados em Portugal e Angola, mas avançam nos Países Baixos e em Inglaterra, e vão criando um manancial de factos provados que retiram margem de manobra quer a Isabel dos Santos, quer ao Estado.
Cada vez fica mais próximo o dia em que serão as jurisdições estrangeiras a definir os resultados referentes a Isabel dos Santos. Se o Dubai pode ignorar os pedidos de Angola, vamos ver o que faz quando lhe chegar uma ordem de congelamento mundial emitida por um tribunal inglês. É que – convém não esquecer – o Dubai pretende tornar-se uma verdadeira plataforma de negócios mundial, e para isso tem de imitar o direito inglês na área comercial.
Maka Angola
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