Só com uma orgânica nova, independente e com meios, assente num órgão especializado com flexibilidade de decisão, numa sociedade profissional de gestão e numa Alta Autoridade para a Prevenção, será possível corresponder às expectativas levantadas pelo anúncio do grande combate à corrupção. Propomos, para isso, criar de raiz um sistema jurídico relativo aos grandes crimes de natureza económico-financeira e de captura do Estado.
A propósito do Dia Internacional da Luta contra a Corrupção (9 de Dezembro), foram feitos vários balanços do combate à corrupção em Angola. Não vamos fazer o mesmo, pois consideramos que não há, ainda, um balanço a ser feito. Em vez disso, debruçamo-nos aqui sobre a perda de balanço desta luta no país.
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É sempre importante começar com aquilo que é óbvio, fundamental e positivo. A partir de 2017, o poder político assumiu na sua retórica a importância do combate à corrupção. Não se tratou de fazer referências vagas em discursos, mas de apresentar ao país uma vontade programática de encetar uma real luta contra a corrupção. Essa mensagem foi anunciada e passou para a comunidade.
Também é verdade que a legislação foi aperfeiçoada e actualizada. Entre outras, destacamos a Lei do Repatriamento de Recursos Financeiros, vulgo Lei do Repatriamento Voluntário (LRV), Lei n.º 9/18, de 26 de Junho, e a Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, vulgo Lei do Repatriamento Coercivo (LRC), Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro. A Assembleia Nacional aprovou um novo Código Penal e um novo Código de Processo Penal. Embora estas leis sejam estruturantes de todo o Estado e ordenamento jurídico, é de realçar que o Código Penal novo tem um capítulo específico sobre Crimes Cometidos no Exercício de Funções Públicas e em Prejuízo de Funções Públicas (art.os 357.º a 375.º) em que se inclui a corrupção (art.os 358.º a 361.º), o recebimento indevido de vantagens (art.º 357.º), o tráfico de influências (art.º 366.º) e o peculato (artigo 362.º), entre outros. Assim, toda a tipicidade sancionatória do direito penal foi revista e sistematizada para ser de mais fácil compreensão e adequação.
Finalmente, fruto da nova retórica política e da modernização da legislação, a opinião pública passou a discutir de forma aberta e sem medo de tribunais ou coacção, os efeitos negativos da corrupção e a necessidade de a combater. Portanto, é um facto que a luta contra a corrupção entrou no léxico quotidiano e foi assumida pela sociedade como um todo.
Se estes factos são notórios e evidentes, também é fácil concluir que estes seis anos redundam numa grande sensação de frustração ou de expectativas goradas.
A coreografia inicial, sumarizada pelo arranque da iniciativa contra Isabel dos Santos, foi épica e criou grandes esperanças. Contudo, o resultado a que hoje chegámos foi minúsculo.
Isabel dos Santos espraia livremente o seu charme digital no Dubai, Manuel Vicente nem sequer é alvo de qualquer inquérito – que se saiba. Os generais Kopelipa e Dino confrontam-se com processos em que a maior parte das acusações parece abrangida pelas Leis da Amnistia, e somente duas condenações relevantes com trânsito em julgado ocorreram (Augusto Tomás e Carlos São Vicente). Há outros processos e outras condenações, mas daquilo a que chamaríamos arraia-miúda (ex-governadores, administradores municipais, directores nacionais, etc.), que certamente não eram e não são a fonte principal da corrupção.
Há, assim, entre o momento em que saiu a bombarda contra Isabel dos Santos (Dezembro 2019/Janeiro 2020) e a actualidade, uma perda manifesta de balanço no combate à corrupção.
O poder judiciário (Polícias + PGR+ Poder Judicial) não esteve à altura do que se pedia. Uns dirão que a culpa foi da interferência do poder político, outros que o próprio judiciário foi conivente com a anterior corrupção e não tinha meios e vontade para concretizar o combate à corrupção, traindo os objectivos do poder político. Não entramos por ora nessa discussão, apenas anotamos as duas explicações sobre a perda de balanço.
O ponto essencial é que situações de corrupção muito grave que colocam em causa a viabilidade ou sobrevivência do Estado impõem soluções de combate que saem da esfera do sistema judiciário normal, que porventura estará também assolado pelos mesmos problemas de corrupção e “captura do Estado”.
A par dos resultados exíguos, temos um segundo problema derivado da luta contra a corrupção, que começa a ser nítido: a degradação dos activos apreendidos. É a Unitel que piora o serviço prestado, o Candando que se tornou uma sombra do que era, os hotéis de São Vicente que ficam sem portas, janelas e mobiliário. As histórias repetem-se, os activos desvalorizam-se, derretem-se nas mãos do Estado como um gelado em dia de calor.
Por último, um terceiro problema, que é o da corrupção actual. Não acreditamos que tenha havido um milagre através di qual toda a corrupção tenha acabado em 2017. No entanto, não se vê nenhuma investigação relevante a eventuais práticas actuais de corrupção. Os rumores abundam, novos jactos, mansões em Marbelha, apartamentos em Cascais, penthouses em Barcelona, mas o facto é que não se conhece nenhuma investigação. Mesmo a anterior presidente do Tribunal de Contas, Exalgina Gamboa, que foi afastada por suposto acto corrupto ou de desvio de fundos, parece imune a qualquer acusação ou investigação. Não se trata de afirmar que os actuais ministros são corruptos ou que apenas houve uma mudança de caras na corrupção, como muitos fazem. Trata-se tão-somente de observar que não parece existir um mecanismo real de prevenção e detenção da corrupção.
Face a este quadro de descompensação entre a retórica política e as intenções, por um lado, e os resultados, por outro, parece que apenas uma modificação estrutural dos instrumentos e meios para o combate à corrupção pode inverter o ciclo de degradação.
Há opções que devem ser tomadas. A primeira delas é entender que a actual prevalência dos meios judiciais ordinários para o combate à corrupção não resulta.
A solução estará na criação de um órgão específico, com leis e processo próprio, que detenha poderes legais para investigar e acusar com celeridade em tribunais adequados criados para o efeito e, simultaneamente, iguais poderes para chegar a acordos com os eventuais prevaricadores. Este novo órgão contra a corrupção poderia investigar, interrogar, apreender, fazer buscas e decretar medidas cautelares nos termos da lei e depois teria uma câmara para julgamentos ou remeteria directamente para uma nova câmara de crimes económicos junto do Tribunal Supremo. Operando no quadro constitucional e legal, este órgão seria um organismo específico para reprimir a corrupção, com competência exclusiva para todos os casos principais de corrupção, e faria os cruzamentos internacionais necessários.
Julgamos que em relação ao passado, quanto mais tempo passa, e mais Leis de Amnistia são aprovadas, cada vez é mais inútil levar os actores ao tribunal comum, onde se passarão anos até haver uma decisão. Mais prático e justo é chegar a um acordo global com cada um deles e, por via desse acordo, tudo o que é passado ficar resolvido. O acordo pode abranger ou não um tempo de prisão, a devolução efectiva de bens, a prestação de serviço a favor da comunidade. Mas seria judicialmente homologado e obrigatório.
A segunda medida a tomar é em relação aos activos apreendidos. Aí deve-se criar uma sociedade empresarial devidamente auditada por empresas especializadas e membros da sociedade civil, com poderes de gestão, entregue a gestores profissionais, que se encarregue da administração eficiente e racional desses activos.
Por último, em relação à prevenção e detecção da actual corrupção, ganhar-se-ia no estabelecimento de uma Alta Autoridade contra a Corrupção que procedesse quotidianamente à prevenção e detecção das práticas corruptivas e que, em caso comprovado, enviasse de imediato os factos e provas para o órgão anticorrupção acima mencionado, para acusação e julgamento.
Acreditamos que apenas com uma orgânica nova, independente e com meios, assente num órgão especializado com flexibilidade de decisão, numa sociedade profissional de gestão e numa Alta Autoridade para a prevenção, será possível corresponder às expectativas levantadas pelo anúncio do grande combate à corrupção. No fundo, a nossa proposta é simples e consiste na criação de raiz de um minissistema anticorrupção ou, mais precisamente, de um sistema jurídico relativo aos grandes crimes de natureza económico-financeira e de captura do Estado.
Não sendo assim, será mais uma oportunidade perdida, e daqui a uns anos o balanço do combate à corrupção será definitivamente negativo.
Maka Angola
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