Um país de doidos varridos



Quem tenha desembarcado pela primeira vez em Angola no final da semana passada, confrontou-se com, pelo menos, cinco interpretações desencontradas da Mensagem sobre o Estado da Nação, com a qual o Presidente da República abriu, no dia 16 de Outubro, o novo ano legislativo.

Do comunicólogo Rui Kandove, o imaginário visitante leu o seguinte:

“Terá sido, quanto a mim, a melhor performance do PR João Lourenço dos últimos anos”.

Rendido, o comunicólogo dividiu o discurso em dois momentos:

 “1- Proclamativo: dir-me-ão, foi um discurso de duas horas e meia, muito tempo. Claro que é muito tempo. Penso que era a mesma lógica de JES, ou seja o anúncio proclamativo de um conjunto de acções e os seus respectivos resultados. Regra geral faz-se uma espécie de balanço do desempenho dos diferentes departamentos ministeriais que compõem o executivo. Pôde-se melhorar o formato? Eventualmente, sim!


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2-  Analítico: é neste ponto que mais o Presidente terá sido eficaz, ao meu ver. João Lourenço fez uma tremenda partida (se estivéssemos a falar de futebol), diria eu. Com o declínio da sua popularidade cada vez mais acentuada, o Presidente tinha de construir uma narrativa apelativa, jogando até sem bola”.

Rui Kandove não nomeia os outros discursos de João Lourenço que tomou como referências para concluir que o Presidente da República teve no dia 16 de Outubro a sua “melhor performance”. 

Apesar dessa omissão, é possível concordar que o discurso de que se fala esteve uns furos acima daquele que João Lourenço proferiu em Ondjiva, na campanha para as eleições gerais de 2022, em que o então candidato induziu os militantes do MPLA a qualificarem como burros os seus adversários políticos.

Muito próximo da opinião do comunicólogo angolano, esteve a embaixadora de Moçambique em Angola.

Presumível membro da Frelimo, um partido que partilha o mesmo “fuso horário” com o MPLA, e cujo Presidente, Filipe Jacinto Nyusi, aplaudiu silenciosamente João Lourenço quando este, em Maputo, adjectivou como malandros os adversários políticos dos dois partidos., a senhora Osvalda Joana  “viu” no discurso do Chefe de Estado uma aula de sapiência, com impacto em todo o mundo.

O oficioso Jornal de Angola atribuiu à diplomata moçambicana a afirmação segundo a qual “é preciso perceber que no discurso de abertura do ano parlamentar, o estadista angolano deixou lições e recomendações para servir de reflexão para o mundo”.

 Osvalda Joana esteve muito próxima de recomendar a todos os estadistas do mundo a adoptarem o discurso de João Lourenço como livro de cabeceira…

Longe, muito longe do deslumbramento de Rui Kandove e de Osvalda Joana, esteve David Boio, para quem o discurso de João Lourenço é a mais acabada expressão do mundo de fantasia em que o Presidente da República vive.

Complacente, David Boio diz que João Lourenço não teve qualquer intenção de mentir aos angolanos. 

“O Presidente não mentiu”, e não mentiu “porque (ele) desconhece ou não tem noção real do país e da vida miserável de quase totalidade dos angolanos”. Essa falta de noção “é muito mais grave do que mentir”, explicou David Boio, um sociólogo de formação.

Boio, que é também docente universitário, entende que o mundo de fantasia em que o Presidente João Lourenço vive tranquilamente provoca-lhe danos na sua reputação interna e externa, além de que o empurra para decisões desajustadas com as necessidades e prioridades do país.  

Em suma, recomenda David Boio, “alguém devia dizer ao Presidente que as coisas não se tornam verdadeiras só porque queremos que sejam verdadeiras. Algo que é falso continua sendo falso mesmo que alguém se convença que seja verdadeiro”.

Ou seja, o país real não tem nenhum ponto de contacto com o país das maravilhas com aquele que o Presidente João Lourenço, travestido em Alice, retratou na sua Mensagem sobre o Estado da Nação.

Num post publicado naquele mesmo dia 16, o jornalista Ramiro Aleixo, manifestou profundo desejo de conhecer e viver no país que João Lourenço descreveu. 

“Fiquei sem perceber, se o país onde vivo e que se chama Angola, é a mesma Angola onde o Presidente João Lourenço vive”. E “se é verdade que o país dele está assim tão bome tão favorável,  porquê razão o meu tem tanta miséria, tanto desemprego, empresas na falência, alta de preços e depreciação da moeda? Não é justo! Também quero e tenho o direito de viver no país do Presidente João Lourenço”. 

Mas, em “Reflexões sobre o discurso O Estado da Nação”, a socióloga Cesaltina Abreu “aconselhou” o jornalista a poupar a sua inveja para situações que a justifiquem.

Na verdade, o país-maravilha em que João Lourenço acredita viver é uma fantasia. É, como canta Dom Caetano, pura “ficção de cinema”.

Cesaltina Abreu não encontrou uma única convergência entre a realidade e o país de abundantes “realizações” em que João Lourenço acredita viverem os angolanos.

Pedagógica, Cesaltina Abreu diz que o discurso sobre o Estado da Nação “não deveria ser um relatório descritivo cheio de números e de detalhes sobre acções planificadas, as poucas realizadas, as muitas viagens feitas, as algumas visitas recebidas, as inúmeras conferências participadas, os poucos benefícios das mesmas, para não falar das perseguições, intimidações, detenções, etc. Deveria ser um discurso de verdade! É incorrecto, indigno e desrespeitoso transformar o “Discurso do Estado da ‘Nação’” (que ainda não somos) num fastidioso relatório de actividades do chefe do poder executivo e dos seus auxiliares”. Pelo contrário, esse discurso “deveria ser a afirmação de uma liderança, resultante da habilidade de motivar, de influenciar, de inspirar e de orientar uma sociedade a fim de atingir objectivos comumente partilhados, o que pressupõe que tenham sido identificados e priorizados através de processos participativos. Não se trata, portanto, nem de chefatura nem de ordem superior. Traduz a capacidade de analisar o contexto actual, interno e externo, de decidir objectivos e vias para os alcançar, de aprender com as lições do exercício presente e de as incorporar nas acções de futuro para evitar repetir os mesmos erros, bem como de identificar os desafios e os riscos e como enfrentá-los. E gerar confiança: É possível! O discurso sobre o “estado da Nação” deveria, então, começar por lembrar quais eram as perspectivas da ‘Nação’ (ou para a ‘Nação’) no novo mandato 22/27. Quais os progressos a alcançar, os desafios / riscos identificados e como se previu fazer-lhes face; quais as dinâmicas políticas, sociais e económicas a promover para o alcance dos objectivos definidos. Qual era o objectivo específico para 2023? O que é que mudou de substantivo no contexto interno e internacional que possa ter influenciado os resultados alcançados? Onde nos encontramos em relação às perspectivas então traçadas? Que impactos é que se registaram na vida das pessoas, suas comunidades e da sociedade angolana em geral? Quais os constrangimentos identificados? Em que é que errámos e porquê? O que é que aprendemos em 2023, como usar estas lições para não só progredirmos em 2024, mas também não repetirmos os mesmos erros? Quais os impactos – positivos e negativos – dos resultados alcançados no objectivo último de qualquer acção de governação: o bem-estar e o progresso social do seu povo? Quais as medidas de política para corrigir os erros, quais as acções para mitigar os impactos negativos? Como está Angola em relação aos compromissos assumidos a nível continental e internacional (…)”.

No país cor de rosa em que o Presidente da República julga que vive, entre 2017 e 2022  “a esperança média de vida dos angolanos aumentou quatro anos, tendo passado de 58 para 62 anos”.


No país real em que a professora Cesaltina e a maioria dos angolanos vivem, o relatório do Índice de Desenvolvimento Humano de  2022 “sinaliza que desde 2019 a esperança de vida de cada angolano tem vindo a cair. Nesse ano a média que era de 62,4 anos, em 2020, caiu para 62,3 e 2021/2022 cada angolano passou a ter uma esperança de vida inferior em sete meses, para 61,6 anos. Os três últimos anos contrariam a tendência crescente desde 2002”, ano em que terminou a guerra civil no país. 

No discurso, João Lourenço disse-se, também, defensor da democracia e promotor da estabilidade e bem estar de todos os angolanos. 

O Índice de Democracia 2022 desmente o Presidente angolano. 

Criado em 2006 pela revista “The Economist” para examinar o estado da democracia em 167 países, o IdD do ano passado atribuiu ao nosso país a pontuação de 3,96, o que coloca Angola no topo da lista dos países governados por Regimes Autoritários. Uma façanha que Angola deve, sem dúvida, ao seu Presidente da República.

Engenheiro agrónomo, também Fernando Pacheco não viu “piada” alguma no monólogo do Presidente.

Como muitos, ele diz que do “ponto de vista metodológico e comunicacional, o discurso enferma dos mesmos erros anteriores. Indiferente aos sinais e críticas da sociedade, voltou a ser longo, fastidioso, excessivamente detalhado e por vezes com falta de rigor ou inverdades – vimo-las sobre a evolução da esperança de vida, os números sobre o sector da educação (…) O foco continuou a ser a enumeração de acções e projectos, sem referência às implicações na vida real e dos cidadãos, e não a análise e enunciação de políticas e estratégias. Se os objectivos específicos para o período em análise nunca estão explicitados ou claros, não poderão nunca poderão ser avaliados. Esses erros são bem uma evidência da fragilidade institucional que tenho vindo a denunciar como uma das razões do estado de crise que nos aflige há muito”. 

No discurso, João Lourenço disse-se fiel ao compromisso da institucionalização do poder autárquico “nos moldes em que vier a ser negociado pelos deputados da Assembleia Nacional” e que o “Executivo há muito que cumpriu com a sua parte, a da elaboração e apresentação à Assembleia Nacional das propostas de leis que conformam o chamado pacote legislativo autárquico. 

Sabemos que se está à procura do maior consenso possível à volta desta matéria de interesse nacional, situação que como sabemos se arrasta há anos, embora para a aprovação dessas leis não seja exigida a maioria qualificada de 2/3 dos votos dos deputados, bastando para tal que acolham o voto favorável de uma maioria absoluta dos votos dos deputados”.

Incomodado com a evidente falta de seriedade do Presidente da República, Fernando Pacheco aconselha:

“Se o Presidente não quer eleições autárquicas, seria mais avisado permanecer em silêncio sobre o assunto, pois as justificações dadas para o congelamento do pacote legislativo são um insulto à inteligência dos angolanos”.

Combinadas, as interpretações de David Boio, Ramiro Aleixo, Cesaltina Abreu e Fernando Pacheco podem levar-nos à perturbadora suspeita de que o Presidente da República pode padecer, também, de daltonismo, naquele grau em que já não consegue distinguir cores fortes como o vermelho e o preto.

No sábado, 21, milhares de angolanos viram a sua rotina alterada porque hordas ensandecidas do MPLA ocuparam e impediram o trânsito em vias importantes das principais cidades do país. Ululantes, as “anêmonas” saíram às ruas para se repetirem em desconexas e injustificadas hosanas ao discurso de um líder com o qual muitas delas entraram em irreversível ruptura mal o homem pôs os pés no terceiro ano do seu primeiro mandato. 

A arrastar-se melancolicamente para o fim, o segundo mandato tem exposto de maneira muito explícita o fosso entre a locomotiva e as carruagens. Imagens captadas por câmaras das televisões públicas que transmitiram o discurso do Presidente da República em directo surpreenderam o Procurador-Geral da República e a Vice-Presidente da República não em leves e breves cochilos, mas tomados por sono profundo. Um microfone próximo teria certamente captado o ronco dos dois. O que demonstra que até mesmo na “roda” do Presidente é crescente o desinteresse pelas suas  enfadonhas pregações

De modo que, confrontado com as múltiplas e díspares reacções ao discurso do afamado discurso, o imaginário duvidaria da sua própria sanidade mental. Olhando para as “anêmonas” que se manifestaram ruidosamente pelas ruas do país, o confundido visitante perguntar-se-ia, inevitavelmente: o quê é que essa gente festeja?

Angola está a dar de si a imagem de um país de doidos varridos.

O Presidente da República é surpreendido a espancar a verdade, a rosear a dura realidade dos angolanos mas, ainda assim, alguns milhares se prestam a lamber-lhe as botas.

Correio Angolense 

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