O tempo e o bom senso- Jacques dos Santos



INSISTINDO - 1


Confesso que por várias razões, e sobretudo pelas atitudes negativas de muitos dos nossos compatriotas, nomeadamente dos que assu- mem e exercem cargos políticos e governati- vos, associo ao meu desencanto permanente um bom pedaço de vergonha.


As pessoas da minha idade e algu- mas das anteriores gerações devem recordar-se perfeitamente. Para alguns de nós, na primeira metade da década de sessenta do século passado, tornou-se obri- gatório escutarmos às dezanove horas, a emissão em português da Rádio Brazzaville, nem sempre captada nas melhores condi- ções de escuta. Às escondidas, por razões óbvias, realizávamos uma obrigação quase sagrada. Todo o angolano que se prezasse, tinha que estar ao corrente do desenvolvi- mento da luta armada de libertação nacionalNo princípio, o programa "Angola Combaten- te" era difundido em emissões trissemanais, mas a partir do dia 1 de Outubro de 1969, passaram a ser diárias.


Trago este facto à lembrança sempre que nos dias de hoje, me planto à frente do tele- visor, esperando pelas mesmas dezanove horas de todos os dias para, agora através do ecrã da TPA, ficar informado sobre o an- damento de uma outra luta da qual não se tem sequer ideia do tempo de duração, uma difícil batalha contra a morte, de cariz bem diferente da outra que se travou nas matas e chanas, onde todos lutaram pelo objectivo supremo da conquista da liberdade. Naquele longinquo tempo não se perspectivaram pandemias, os vírus conhecidos e os mais perigosos inimigos eram identificados com o colonialismo e com o imperialismo internaci- onal, assim nos ensinavam os nossos mes- tresPensava-se em tréguas e negociaçõessituações que infelizmente estão distantes nesta luta contra o coronavírus. Apesar das naturais dificuldades da época, as notícias assinalavam o sucesso da luta e a força da guerrilha. Entusiasmavam-se e conscienciali- zavam-se os compatriotas do interior, estes submetidos ao jugo colonial, despertando-os para a luta pela independência de Angola. Hoje, às dezanove horas de todos os dias, aguardo que a televisão me mostre um alto representante do Ministério da Saúde a infor- mar sobre o rescaldo do dia em termos da Covid-19. E fico a saber quantos angolanos morreram, quantos foram infectados, quan- tos estão em situação crítica e quantos foram recuperados. Fico também, todos os dias, com a certeza da enorme fragilidade, nos seus diferentes aspectos, do sector da saúde e da assistência e segurança social na República de Angola.




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2 Confesso que tenho dificuldades de me explicar em relação a isto. Não sei se terei ainda a oportunidade de viver no país há muito sonhado porque, em boa verdade, não tenho referências sobre os ali- cerces em que está a ser ou vai ser implan- tado o país com que sonhamos, nós e os das outras gerações, anteriores e posteriores à minha, e com que sonham os das gerações actuais e futuras. O tal país que pretende- mos que surjanos surpreenda e nos propor- cione enfim a vida boa, simples e segura, com saúde, escola e trabalho garantidos, em que se possa viver tranquilamente, sem sen- tir a dolorosa sensação de que se está a ser roubado e enganado a toda a hora, de que os seus direitos estão a ser usurpados, onde o cidadão normal sai do trabalho e vai com a família ao teatro, a um bom concerto musical ou ao cinema, onde se organiza para acom- panhar o seu clube de futebol ou de outras modalidades, a sua associação, o seu gru- po, em excursões pelo país e pelo estrangei- ro, onde acompanha os filhos e netos a um museu, a um jardim ou a um espectáculo para crianças, sem que seja necessária a chamada de um génio que transforme em normais as coisas que hoje nos parecem má- gicas, que a vida nos possa transmitir uma relaxada sensação de naturalidade em tudo quanto possamos fazer, e não sejam consi- deradas impossíveis as coisas mais banais desta vida.


Confesso que por várias razões, e sobretudo pelas atitudes negativas de muitos dos nos- sos compatriotas, nomeadamente dos que assumem e exercem cargos políticos e go- vernativos, associo ao meu desencanto per- manente um bom pedaço de vergonha. Sinto essas sensações quando me vejo impedido de apontar com exactidão, aonde fica situa- do na verdade o nosso país, no mapa limpo da vida, onde se plantam os países decen- tes, onde a ladroagem é castigada. É com uma mágoa profunda que sou obrigado a reconhecer que o nosso país fica a muitos quilómetros de distância, está na rectaguar- da dessa fila. E nessa perspectiva observo que isso aconteceu porque na época antiga da luta inicial em que idealizámos o país mas adivinhar o futuro era proibido, já se robuste- cia um regime nascido e criado sem o escru- tínio rigoroso dos erros que se cometiam, e da identificação daqueles que se opunham aos princípios que levaram ao nascimento do amplo movimento e vaticinaram um país bom para se viver. Não fossem esses "defeitos de fabrico" que nos transportaram à falsa ideia de que o país era destinado apenas a uma parte de nós todos, não teríamos chegado aos tempos de hoje, desiludidos e a lamentar constantemente o modo fácil e negligente com que se destruiu o pensamento da base económica e social de um país portentoso, colocando-o na posição deplorável que co- nhecemos.


É esta, quanto a mim, a triste verdade. Negli- genciou-se claramente a ciência que é sem- pre indispensável aos projectos, quaisquer que eles sejam, de dimensão incomensurá- vel, quando o projecto é o da Nação: a ciên- cia da estratégia! Foi aí que se errou e se tem errado rotundamente, na falta de estraté- gia. Não se podem conquistar êxitos sem que sejam definidas estratégias. Podem ser muitas as batalhas que se vençam, mas se as estratégias não se mostrarem eficazes em relação aos alvos a serem atingidos, na es- colha dos melhores aliados para desenvolver o modelo de vida mais adequado às preten- sões de todo um povo; se a estratégia nacio- nal de combate à corrupção, se a transpa- rência dos actos e integridade não tivessem chegado como chegaram com muitos anos de atraso e sem estratégia. Se acaso a estra- tégia tivesse sido estudada correctamente enquanto se lutava de armas nas mãos, te- ríamos provavelmente hoje um país diferente, distante da sociedade que pretendemos mo- derna porém, infelizmente uma sociedade podre, cheia de elementos perigosos. São eles aliados da corrupção, inimigos do seu combate, contrários à corporização de mu- danças, adeptos da arrogância, do poder absoluto e dos mais variados vícios, sabota- dores declarados de projectos que defen- dam a mudança, inaptos nas demonstrações das suas ideias, usuários de uma forma de- sastrada de fazer política, mascarando o dis- tanciamento do real e verdadeiro regime de- mocrático e de direito que todos os angola- nos de bem aplaudem e perseguem.


PS. Os leitores atentos terão certamente notado que o texto que segue à epígrafe, foi assinado a partir de Lis- boa, em outubro de 2020. Vivíamos o tempo da pandemia. Achei não ser descabido recordar agora o que então es- crevi. Sem qualquer emenda, esta e outras narrativas de JACQUES TOU AQUI! passarão temporária mas semanal- mente, a preencher este espaço. O objectivo é simples- mente o de contribuir para a reflexão que o tempo e a vida nos exigem sobre o actual estado da Nação, sobre as perspectivas do nosso adiado futuro.


Luanda, 23 de Julho de 2023


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