Em qualquer Estado de direito, onde não se misturam alhos com bugalhos, o exercício de funções judiciais é a linha vermelha para a militância partidária, sobretudo quando acompanhada com funções de direcção nos órgãos de cúpula.
No dia 19 de Agosto de 2021, quando a nomeou para presidir o Tribunal Constitucional, aparentemente só uma entidade, o Presidente da República, sabia que Laurinda Cardoso, membro do Bureau Político do MPLA, tinha pedido a suspensão da sua militância.
O secretariado do Bureau Político do MPLA disse ter tomado ciência do pedido de Laurinda Cardoso de suspender a sua militância partidária apenas no dia 20 de Agosto daquele ano, um dia depois da sua nomeação para presidir o Tribunal Constitucional. Mas, nada disse sobre se anuiu ou não ao pedido.
O Presidente da República, que nomeou a presidente do Tribunal Constitucional é, também, o presidente do MPLA, aparentemente a única pessoa que teve prévio conhecimento do pedido de Laurinda Cardoso, mas não partilhou a informação com o secretariado do Bureau Político, cujas reuniões convoca e preside.
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Embora não se acredite que ela tenha efectivamente rompido os laços “umbilicais” com o MPLA – até porque o secretariado do Bureau Político designa a decisão de Laurinda como suspensão e não rompimento, o simples pedido de suspensão da sua militância fez de conta que a presidente do Tribunal Constitucional tornou-se apartidária.
Agora que vai tomando consciência de que a generalidade dos angolanos são pacíficos, mas não diminuídos mentais, o Presidente da República deixou-se de disfarces e passou a fazer muita coisa às claras: a Manuel da Cruz Neto, a quem empossou no dia 19 de Junho como um dos novos juízes conselheiros do Tribunal de Contas, João Lourenço não exigiu prévia suspensão ou renúncia da sua qualidade de membro do Comité Central do MPLA.
Cruz Neto é, neste momento, caso único nos tribunais superiores angolanos. Trata-se, até prova em contrário, do único juiz conselheiro que é, simultaneamente, dirigente de um partido.
Não havendo, aparentemente, nenhuma barreira legal para o acesso de Cruz Neto ao exercício de actividade judicial, a ética, contudo, cobre esse vazio.
Na “participação contra ilegalidade praticada pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial e pelo Presidente da República”, subjacente, segundo sustenta, na nomeação de Carlos Cavuquila como juiz conselheiro do Tribunal Supremo, o jornalista e activista Rafael diz que o histórico do antigo administrador de Cacuaco sugere que ele não sobreviveria a um teste de idoneidade cívica e moral.
Tal como em Carlos Cavuquila, há também em Cruz Neto elementos que ameaçam a integridade, imparcialidade, independência e competência exigidas a um juiz.
Cruz Neto tem uma extensa folha de serviço público, indissociável da sua condição de membro do MPLA.
Licenciado em Economia, exerceu funções como as de vice-ministro do Comércio, secretário geral do Presidente da República, ministro e chefe da Casa Civil do Presidente da República e deputado à Assembleia Nacional, a cuja 6ª Comissão (Saúde Educação, Ensino Superior, Ciências e Tecnologia) presidiu na IV legislatura (2017-2022).
Na longa trajectória de serviço público, Cruz Neto “tropeçou” com algumas suspeitas de corrupção.
Em 2017, por exemplo, o jornal El Mundo disse que uma empresa pública espanhola, a Mercasa, teria subornado a novíssimo juiz conselheiro do Tribunal de Contas “com caixas de bolachas cheias de notas de dinheiro para garantir o contrato para a construção de um mercado de abastecimento em Luanda”.
O jornal citou fontes da Operação Trajano, investigada pela Procuradoria Anti-Corrupção da Espanha.
Anos mais tarde, o nome de Manuel da Cruz Neto voltou à baila e não pelas melhores razões. Ele seria accionista da Mais Financial Services S.A., empresa responsável pela transferência, considerada ilegal pelo Ministério Público, de 500 milhões de dólares para Londres.
Mesmo que em nenhum dos casos Cruz Neto tenha sido julgado e condenado, a sua ligação a dois escândalos e, sobretudo, a sua qualidade de membro do Comité Central do MPLA, o partido governante, enfraquecem a sua imagem junto da opinião pública.
Aos cidadãos angolanos, Manuel da Cruz Neto não dá garantias de capacidade de decidir com a requerida imparcialidade e competência processos envolvendo seus camaradas de partido.
Embora se tenha comprometido com o primado de um Estado de Direito, o Presidente da República persiste em misturar alhos com bugalhos. Resiste à despartidarização das instituições públicas.
Apesar de reclamar o pioneirismo no combate à corrupção e à impunidade em Angola, o Presidente João Lourenço continua a “empestar” a administração pública com indivíduos suspeitos de terem as mãos e unhas manchadas…
Correio Angolense
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