O caso poderá envolver o próprio governante, os dois filhos e um sobrinho. Uma denúncia apontou às autoridades contratos de prestação de serviços com empresas chinesas e portuguesas e a compra de imóveis e carros de luxo em Cascais e no Porto. Os negócios envolveram milhões de euros que circularam por várias empresas e contas bancárias no Dubai e em Lisboa.
O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), o órgão do Ministério Público (MP) especializado em criminalidade complexa, está a investigar Ana Paula Borges, uma luso-angolana de 62 anos que é casada com João Baptista Borges, o ministro da Energia e das Águas do Governo angolano liderado por João Lourenço. O processo, iniciado o ano passado e que está a ser tramitado pelo juiz de instrução João Bártolo no Tribunal Central de Instrução Criminal, visa a eventual prática de crimes de branqueamento de capitais.
A confirmação consta na resposta oficial que o Ministério Público deu às perguntas da SÁBADO: “Quanto à cidadã Ana Paula Cabral Borges (…) é suspeita no inquérito – NUIPC 70/21.8TELSB, aberto no DCIAP, relativo a crime de branqueamento.” A procuradora que dirige o inquérito, Joana César de Campos (uma das magistradas que investiga o célebre processo Cartão Vermelho), esclareceu ainda que a investigação que visa Ana Paula Borges não tem arguidos constituídos, encontrando-se desde 14 de fevereiro passado em segredo de justiça externo. “Nestes termos, não determino o levantamento do segredo de justiça e indefiro o requerido acesso aos autos por parte do senhor jornalista”, concluiu a procuradora na resposta ao pedido de consulta do processo feito pela SÁBADO.
A mulher do ministro e o próprio governante angolano, igualmente com dupla nacionalidade e que lidera a importante pasta da Energia desde 2011, terão um avultado património em dinheiro e aplicações em fundos imobiliários em várias contas bancárias em Portugal, nomeadamente nos bancos Millennium bcp e no BPI. Também os dois filhos e um sobrinho têm realizado nos últimos anos vários negócios em Lisboa, Cascais e no Porto, onde adquiriram, por exemplo, um terreno na Aroeira, um apartamento de luxo em Cascais, um prédio no Porto e viaturas da marca McLaren, Range Rover e Bentley, tudo avaliado em vários milhões de euros.
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O casal luso-angolano, casado em comunhão de geral de bens, e os familiares mais diretos também já foram denunciados de forma anónima ao MP, segundo vários documentos a que a SÁBADO acedeu. “Todos os rendimentos que João Baptista Borges e os seus familiares obtêm são provenientes de branqueamento de capitais, corrupção de titular de cargo político e evasão fiscal. Sendo posteriormente branqueados em Portugal e nos Emirados Árabes Unidos em aquisições de imóveis, viaturas de luxo de alta cilindrada, arte e aplicações financeiras, e investimentos em fundos imobiliários que ultrapassam os €80 milhões”, refere a denúncia, que garante que na origem do dinheiro suspeito estarão “negócios simulados com empresas” anteriormente contratadas pelo Ministério da Energia e Águas de Angola, bem como por outros ministérios do Governo angolano e por empresas públicas daquele país.
Especificando que estará em causa uma espécie de rede familiar e empresarial com alegados testas de ferro controlados pelo ministro angolano, a denúncia salienta que as sociedades com intervenção nos negócios com Angola e com empresas chinesas, portuguesas e brasileiras – que por sua vez terão negócios com o Estado angolano – “não possuem quadro de trabalhadores, nem exercem qualquer atividade profissional que justifique a celebração daqueles contratos de prestação de serviços em empreitadas de obras públicas e por montantes substancialmente inflacionados.” Finalmente, a denúncia conclui que o alegado esquema terá a participação de “sociedades que se limitam a gerir fluxos financeiros provenientes de atos ilícitos, autênticas lavandarias de dinheiro que tem como destino final Portugal”.
Apesar de também visar a mulher de João Baptista Borges, o alvo principal desta denúncia é o governante angolano, um antigo quadro da empresa pública de eletricidade, a EDEL. Licenciado em 1991 em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade Agostinho Neto, João Borges já exerce funções no Governo angolano no setor da energia desde 2008, primeiro como vice-ministro, depois como secretário de Estado e finalmente como ministro da Energia e das Águas. Foi também em 2011, o ano em que foi escolhido pela primeira vez por José Eduardo dos Santos para integrar o executivo, que Borges concluiu o mestrado na mesma área na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Em 2022, após as últimas eleições, o Presidente João Lourenço voltou a escolhê-lo para integrar o Governo angolano.
Contactado para o email oficial do Governo de Angola e para o email privado, João Borges não respondeu às perguntas da SÁBADO até ao fecho desta edição, a 18 de outubro. Na impossibilidade de outra forma de contacto, enviámos também para os mesmos emails um conjunto de questões para a mulher do ministro, os dois filhos e o sobrinho, solicitando que fossem encaminhadas para as respetivas pessoas. Também não recebemos qualquer resposta ou comentário à investigação em curso do MP português e ao conteúdo da denúncia remetida às autoridades.
Os negócios com o primo
Segundo os documentos que chegaram ao Ministério Público, Ana Paula Borges será titular de uma conta no BPI desde 2010, onde terá aplicações no Fundo de Investimento Imobiliário Fechado TDF. Constituído em 1992, trata-se de um fundo com um capital de cerca de €91,3 milhões (dados de final de 2020) e que é gerido desde 2017 pela Interfundos, Sociedade Gestora de Organismos de Investimento. O relatório e contas de 2020 do TDF não identifica os detentores das unidades de participação, mas revela que o fundo tem ativos avaliados em €180,6 milhões, entre imóveis, saldos bancários e outros ativos. Os imóveis repartem-se por terrenos, estacionamentos, armazéns, lojas e apartamentos localizados em Lisboa, Benfica, Cascais, Amadora, São Domingos de Rana, Oeiras, Palmela e Funchal.
A mulher do ministro esteve também durante anos ligada a uma empresa angolana do setor da energia. Segundo os documentos da Conservatória do Registo Notarial de Luanda a que a SÁBADO teve acesso, a Megawatt, Lda. foi constituída em 2005 e tinha como objeto social consultoria, assessoria, gestão, manutenção de sistemas de energia, projetos de redes elétricas de baixa e média tensão e a gestão e fiscalização de centrais termoelétricas. O capital social de 81 mil kwanzas (cerca de €188 ao câmbio atual) estava repartido em partes iguais por três sócias. Uma era precisamente Ana Borges, cujo marido tinha sido recentemente nomeado presidente do Conselho de Administração da EDEL, a empresa pública de distribuição de eletricidade de Angola onde já tinha sido administrador e feito carreira desde que entrara como técnico em 1989.
As outras duas sócias da Megawatt eram Telma Tiago e Efigénia Gonçalves, então ainda solteiras e que viriam a ser as mulheres de dois irmãos ligados ao partido do poder, o MPLA, e a pastas governamentais, José Maria e Adriano Vasconcelos. O primeiro foi ministro dos Petróleos e o segundo deputado e depois conselheiro de Estado do Presidente de Angola. E a ligação entre o ministro João Borges e os primos Vasconcelos é realmente muito próxima e antiga. Por exemplo, o primo Adriano escreveu um email em novembro de 2013 ao já então ministro da Energia a dar-lhe uma boa notícia sobre uma eventual parceria de negócios com investidores portugueses: “Caro primo, vamos ter 15% de participação nessa sociedade, tanto em Angola como em Portugal. Os processos estão a ser preparados pelos advogados e a Kikinha poderá ser a nossa representante. Temos já terreno na Zona Industrial Viana para edificar a fábrica, processo já em curso.”
Depois, Adriano Vasconcelos especificou o que era necessário fazer: “Temos a lista de produtos prioritários apontados por ti, devemos agora termos os canais de venda às empresas do Ministério.” Antes de se despedir “com estima” e assinar “Ninano”, ainda insistiu que se devia avançar rapidamente, referindo-se a um eventual projeto de contadores pré-pagos de eletricidade para várias zonas de Angola: “Com quem podemos falar e marcar o respetivo encontro para formalizar esse interesse e possível acordo?”
Cerca de quatro anos antes deste email, em dezembro de 2009, e de acordo com os documentos da Conservatória do Registo Comercial de Luanda, a Megawatt das três primas já tinha comprado 30% do capital de uma empresa fundada por duas sociedades com ligações a Portugal, a Ambergol, Ambiente e Energia de Angola, Lda. A parceria durou até ao último dia de outubro de 2018 quando as três mulheres cederam a quota à própria Ambergol. Durante o período em que vigorou a sociedade, cerca de nove anos, a empresa fez vários contratos públicos e também transferências para a Megawatt detida pelas três mulheres. Por exemplo, em fevereiro de 2013, a Ambergol deu ordens ao Banco de Poupança e Crédito para transferir quase 53 milhões de kwanzas (cerca de €123 mil ao câmbio atual) para a conta da Megawatt no Banco Angolano de Investimentos. A justificação? Um “pagamento a fornecedor”.
As ligações da família Borges à Ambergol não se esgotam aqui. Uma outra sociedade, a Plurienergia SU, Lda., constituída em Angola em março de 2016 por um sobrinho de Ana Paula e do ministro da Energia, também fez negócios com a empresa que integra atualmente o grupo francês Eiffage. Registada inicialmente com a mesma morada de outra empresa (a Mundideias, Lda.) detida por Ana Paula e os filhos Fábio e Paulo Borges, a Plurienergia terá assinado, segundo a denúncia feita ao MP português, “vários contratos de empreitada/subempreitada de obras públicas com o Ministério da Energia, entidades por este supervisionadas e empreiteiros locais”.
Por sua vez, a Ambergol também fez pagamentos à Plurienergia através de transferências para a conta desta última empresa no BPI. Numa das faturas datada de setembro de 2017, a que a SÁBADO teve acesso, o pagamento de 126 mil dólares (hoje quase €130 mil) foi justificado pela “coordenação, gestão, fiscalização e acompanhamento dos trabalhos de construção civil e eletricidade”, com o documento a concretizar assim o tipo de serviços: “Mobilização das equipas (25%).” A Plurienergia Angola terá mantido também negócios – a denúncia garante tratar-se de “acordos simulados para a prestação de serviços” – com empresas da China, Brasil, Sérvia, Portugal e Angola (ver infografia).
As empresas do sobrinho
Ricardo Dias Borges tem 40 anos, também dupla nacionalidade angolana e portuguesa, reside no Dubai, em Lisboa e Angola, é engenheiro civil e sobretudo um homem de negócios da máxima confiança dos tios e dos primos Borges. Foi, de resto, Ricardo que em 2019 se apresentou num notário de Cascais para realizar um negócio imobiliário em representação do primo Paulo Borges, de 33 anos, um funcionário da empresa Unitel que concluiu em 2015 o mestrado em Engenharia das Telecomunicações e Informática no Instituto Superior Técnico, em Lisboa. Antes disso, em 2013 e 2014, o filho mais novo do ministro da Energia já se tornara acionista de um offshore registado nas Ilhas Virgens Britânicas e com morada num 5º andar de uma rua de Luanda, a Valoris International Services and Consulting Limited (referida no caso dos Panama Papers), precisamente a morada onde estavam registadas as já referidas Plurienergia e Mundideias – esta última tem uma espécie de empresa-espelho, a Mundideias Consultant and Projets Limited, sediada nas Seicheles e registada pelo irmão mais velho de Paulo, Fábio Borges, 36 anos, que chegou a ter morada na Cova da Piedade, em Almada.
Voltando ao imóvel de Cascais, a 16 de setembro de 2019, Ricardo Borges representou como procurador o primo Paulo Borges na aquisição de um apartamento de luxo no Bairro do Rosário. De acordo com a escritura pública de compra e venda a que a SÁBADO acedeu, o T3, dois lugares de estacionamento e uma arrecadação, custaram €1,25 milhões. O pagamento do imóvel no edifício Scala Cascais foi feito sem recurso a crédito bancário, pois o filho do ministro usou duas transferências e um cheque (contas no Abanca e no BPI) para concluir a transação mediada pela imobiliária Porta da Frente. Ainda segundo o documento oficial do negócio registado num notário de Cascais, Paulo Borges deu como morada um 14º andar localizado no Campo Pequeno, em Lisboa.
Na denúncia que chegou às autoridades portuguesas são referidos vários alegados negócios do sobrinho do ministro da Energia de Angola. Por exemplo, que Ricardo Borges constituiu em 2017 e 2018 outras duas Plurienergia, a DWC LLC e a LTD, ambas sediadas no Dubai. E que também terá passado a deter nos Emirados Árabes Unidos uma outra sociedade constituída em 2015 pelos primos Paulo e Fábio Borges, a Boxinvest, Ltd. De acordo com um documento a que a SÁBADO acedeu, este último offshore terá assinado um contrato de prestação de serviços de cerca de 16 milhões de dólares (quase €16,5 milhões ao câmbio atual) com a China Machinery Engineering Corporation (CMEC), a empresa chinesa contratada em 2014 pelo governo angolano para construir a Central de Ciclo Combinado do Soyo.
Segundo o despacho presidencial 154/14, de 11 de agosto, o contrato previa um investimento de 985,2 milhões de dólares (€742 milhões à época), na modalidade “chave na mão”, a assinar entre o Ministério da Energia e Águas, liderado por João Borges, e os chineses da CMEC. Na altura, Eduardo dos Santos destacou a “importância fundamental” da construção desta central no Norte de Angola destinada a produzir eletricidade a partir de gás natural.
Outra das empresas controlada por Ricardo Borges é a Diverminds, que tem dois braços discretos empresariais, de novo um no Dubai (com uma LTD) e outro em Portugal (uma sociedade unipessoal). A primeira empresa possuiu contas no banco Emirates NBD e no Mashreq Bank (Ricardo abriu até em 2019 em nome pessoal uma conta no Bank Audi, um banco suíço onde deu como morada oficial um apartamento no Dubai) e terá feito contratos de prestação de serviços de muitos milhões de euros com empresas chinesas como a Hongkong Yonda Holding Co. Já a segunda Diverminds, em Portugal, servirá para parquear objetos de luxo como carros das marcas McLaren 570, Bentley e Land Rover e negócios como a compra de um terreno de 1.414 m2 na Herdade da Aroeira, no distrito de Setúbal, ou um prédio na Rua D. Manuel II, na freguesia de Miragaia, no Porto.
O enigma do prédio do Porto
De acordo com o contrato de promessa de compra e venda do imóvel do Porto, o negócio foi formalizado a 10 de setembro de 2018. A Diverminds e Ricardo Borges comprometeram-se a pagar €1,4 milhões às sociedades Freigest, Gestão de Investimentos Associados e à Martins da Cruz & Cruz II, Metalomecânica. Os pagamentos foram feitos da seguinte forma: €420 mil repartidos em dois cheques iguais do Santander-Totta endossados aos vendedores, e os remanescentes €980 mil (igualmente divididos em duas partes iguais) na celebração definitiva da escritura, que teria de ocorrer até 12 de novembro de 2018.
O negócio imobiliário concretizou-se e previa também um investimento posterior para recuperar o edifício que fica no centro histórico do Porto, uma zona de especial proteção devido à proximidade do Palácio das Carrancas e do Museu Soares dos Reis. O projeto arquitetónico chegou a ser aprovado na Câmara do Porto e a Remax tratou logo de montar a logística para vender o “edifício dos sonhos”, cujo projeto previa oito unidades de alojamento local, cada uma com uma área média de 20 m2 (em três anexos ao edifício principal) e outros oito apartamentos T0, cada um com 40 m2.
Segundo os documentos do processo do imóvel aprovados na Direção Municipal de Urbanismo da autarquia portuense, o projeto de recuperação e adaptação pretendia “repor algumas das características arquitetónicas do edifício, reinterpretando os valores do passado e adaptando-os às novas exigências de conforto, funcionalidade e vivência”. Entre as ideias do gabinete de arquitetura contratado para tratar do edifício datado do início do século XX , o Art’Cittá, constava a recuperação das varandas e de um varandim na cobertura para servir de miradouro para a cidade. Pretendia-se ainda instalar um elevador panorâmico no edifício de cinco andares. Segundo referiu à SÁBADO uma fonte com intervenção neste negócio imobiliário, o custo das obras poderia chegar a €5,6 milhões. Ou seja, o valor total do negócio do edifício ficaria nos €7 milhões.
Mas pouco ou nada terá avançado desde que a denúncia entrou no Ministério Público. O imóvel voltou até a ser posto à venda pela Remax por um valor de €1,68 milhões. Na denúncia já se alertava para o facto de que poderia estar em curso uma tentativa de “dissipar o património existente para entidades terceiras”.
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