O «RECOLHER» MAIS LONGO DA HISTÓRIA



Tal como o resto do território nacional, Luanda viveu 14 anos sob recolher obrigatório, eventualmente o mais longo da história mundial moderna, não podendo por isso deixar de ser um marco importante dos anais da cidade.

Decretado a 27 de Maio de 1977, na sequência da alegada tentativa de golpe de estado que Nito Alves teria empreendido contra Agostinho Neto, ao longo da madrugada e manhã desse dia, este período de excepção haveria de se prolongar até pouco depois da assinatura dos acordos de paz de Bicesse, em Maio de 1991.

O entendimento, entre o governo do MPLA, então presidido por José Eduardo dos Santos, e a UNITA de Jonas Savimbi, possibilitaria o fim (provisório) da guerra civil e a conversão do país à democracia, o que retiraria às autoridades a argumentação que sustentava a manutenção do longo confinamento intermitente a que os cidadãos estavam raivosamente sujeitos.



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Tendo chegado a nove horas por dia (entre as 20 e as 05), a proibição de circulação nas ruas haveria de diminuir progressivamente até se fixar em cinco (entre as 00 e as 05). Só determinadas classes de profissionais, como médicos e enfermeiros, jornalistas e todos os outros civis que trabalhavam em turnos, estavam autorizados a andar durante o «recolher», mas mediante a apresentação dum «livre-trânsito» emitido por autoridade policial ou militar competente. No entanto, determinadas circunstâncias emergenciais, como a busca de cuidados médicos, eram merecedoras da condescendência das patrulhas, que passaram a estar sob subordinação de um célebre Posto de Comando Único (PCU).

Nos primeiros tempos, a violação do recolher obrigatório terá custado a vida a muito boa gente, já que os patrulheiros, entre policiais, militares e operativos da secreta, não tinham problemas em atirar a matar contra quem ousasse fugir a uma interpelação sua. No fundo, tudo dependia da sorte de cada um.

Geralmente, quem não tentasse fugir e acabasse por chegar vivo à unidade policial ou militar que lhe calhasse, o máximo que lhe acontecia era dar uma de faxineiro do local, antes de ser libertado. Ao que consta, mais tarde, já cá para o fim, o castigo para quem violasse o «recolher» passou a ser o pagamento de uma multa, sob pena de prisão.

Ainda assim, a vida nocturna resistiu, não obstante o confinamento. Foi só uma questão de adaptação. Os horários das nossas festas e batidas em discotecas, coisos e tais tiveram de ser ajustados aos extremos do «recolher». Ninguém em pleno uso das suas faculdades mentais programaria o fim dalgum desses eventos para depois da meia-noite ou antes das cinco da manhã, sendo que entre os convivas mais impulsivos ou teimosos, que bazavam sem querer saber dos riscos, muitos chegavam a apanhar o que era bom para a tosse.

Havia, entretanto, quem acabasse por se especializar no «drible» aos patrulheiros, após ganhar conhecimento das «rotas de fuga», que lhe permitiam, por exemplo, sair do Bungo até ao «Nelito Soares» sem ser molestado.

O eventualmente mais longo «recolher obrigatório» da história mundial saiu de cena já há 31 anos, mas alguns dos seus estigmas continuam a incomodar muitas famílias: por exemplo, há cidadãos que não conseguem pregar o olho, sendo que haverá mesmo quem entre em pânico, enquanto alguém de casa estiver na rua para além da meia-noite. Eu sou um deles.

......


QUAL LIVRE-TRÂNSITO QUAL QUÊ?


Por força das funções profissionais que exercia entre 1979 e 1981, em plena vigência do «recolher obrigatório», beneficiei durante este lapso do documento mais importante para quem fosse interpelado por alguma patrulha militar, policial ou mista, entre a meia-noite e as cinco da manhã: o livre-trânsito! 

Eu era «revisor de página» do Jornal de Angola, uma espécie de editor final, que cuidava superiormente da publicação entre o fecho da redacção e a ida do material para a impressão. Tinha direito a tal documento, não propriamente pela importância das funções que exercia, que até eram altas demais para um fedelho da minha idade, mas sim por trabalhar essencialmente à madrugada.

Ainda assim, banga era banga. Em diversas ocasiões, já cheguei a sair de bodas em horas proibidas, só para mostrar aos meus amigos, mais ainda quando houvesse mulheres na plateia, quão «figura importante» eu era no país.

Mas, num dia desses, dados patrulheiros do PCU me tiraram a banga toda, como sói dizer-se. Vinha duma kizombada da casa dos velhos do Isaac Júnior, o Kambolo, um gajo que deu o lengueno para a Hungria, depois de se fartar do país, ainda nos anos 80. Era ali na interseção da rua que sai do Cassequel com a Machado Saldanha. Eram duas e tais. Precisava de chegar à casa, para que o motorista, o saudoso velho Bexiga, me apanhasse para mais uma jornada laboral.

Não cheguei a andar 500 metros, quando sou interpelado por uma patrulha do PCU mista, que tinha de tudo, polícias, tropas e secretas. Não sei o que é que lhes disse, se calhar bem achado com o meu livre-trânsito, só sei que, quando assustei, já estava bem zangulado, tendo os fidamãe acabado de reconhecer a validade do documento apenas depois de me aplicarem um bom «enxugo». 

Olha, nunca mais me achei com o tal de livre-trânsito, preferindo passar a encarar o «recolher obrigatório» como se não o tivesse. Desde então, a não ser que fosse dentro do carro de serviço, na rua entre a meia-noite e as cinco da manhã, ninguém me apanhava.


Salas Neto 



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