O momento presente vai definir o mandato de João Lourenço e a luta contra a corrupção. Ao reconduzir o procurador-geral da República, general Hélder Pitta Groz, que se mostrou demasiado incompetente, lento e receoso, criando omissões inexplicáveis, o presidente assume esse passivo. Agora, já não tem a desculpa do pessoal que herdou da anterior Presidência. O falhanço do PGR será o falhanço de João Lourenço.
Há momentos que definem um mandato. O momento presente vai definir o mandato de João Lourenço e a luta contra a corrupção. Ao reconduzir o procurador-geral da República (PGR), general Hélder Pitta Groz, que se mostrou demasiado incompetente, lento e receoso, criando omissões inexplicáveis, João Lourenço assume esse passivo. Agora, já não se poderá justificar com a incapacidade do pessoal herdado do anterior presidente da República. O falhanço do PGR será o falhanço de João Lourenço – os dois generais ficarão indelevelmente ligados.
O que está em causa nesta situação concreta não são as pessoas, mas o não seguimento do devido processo legal (“due process”). O Estado de Direito assenta na obediência aos pressupostos e requisitos legais e não à vontade das pessoas. A lei justa deve prevalecer. Para existir um Estado de Direito, o fundamental são os princípios, regras e a sua aplicação.
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Ora, quer os relatos de fontes próximas da deliberação do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público (CSMMP) de 16 de Dezembro de 2022, que propõe a recondução de Hélder Pitta Groz como PGR, quer a documentação disponível indicam que os processos legais foram barbaramente violados na produção dessa deliberação.
A reunião do CSMMP de 16 de Dezembro de 2022 foi presidida pelo PGR em exercício, Pitta Groz. Este terá anunciado aos conselheiros ser a sua recondução um desejo expresso do presidente da República, como também o afastamento do vice-PGR, Mouta Liz. Feito esse anúncio, o CSMMP não teve margem para qualquer discussão, a não ser cumprir com os desejos do presidente da República transmitidos pela boca do PGR.
Se este é o relato que nos chegou de fontes próximas do acto, a verdade é que o documento público emitido, designado “Plenário do CSMMP: Deliberações n.º 2/22”, parece confirmar esta versão dos acontecimentos. Na realidade, no seu n.º 1 lê-se que o Conselho deliberou propor ao presidente da República a recondução do PGR. Esta afirmação aparece desprovida de mais informação. Pelo documento, não sabemos quem propôs, intuindo-se, no entanto, que foi o próprio Hélder Pitta Groz a autopropor-se. Também não sabemos quem estava presente, nem quem votou a deliberação. É uma deliberação no vácuo. Recorde-se que a Lei n.º 15/11, de 18 de Março, “Lei do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público”, dispõe no seu artigo 23.º, n.º 1 que as deliberações do Conselho respeitantes à nomeação do PGR e do vice-PGR são tomadas por maioria de dois terços dos membros em pleno exercício de funções. Desconhecemos se este quórum foi respeitado ou não.
Também é curioso que o n.º 2 da dita deliberação assuma que foi o PGR que propôs todas as indicações para vice-PGR e excluiu deliberadamente outras. Obviamente, deveria ter havido um processo deliberativo prévio, com possibilidade de candidaturas espontâneas.
Conclui-se, então, da leitura do documento, que a reunião do Conselho foi comandada pelo PGR com vista à sua própria recondução. Não se sabe quem votou, se houve quórum, e se a maioria dos dois terços foi respeitada.
Se o processo de deliberação é obscuro, o seu resultado é ilegal. Dito de forma muito simples: é ilegal o CSMMPP propor ao presidente da República “apenas” a recondução do PGR.
Há um problema adicional. O PGR é o garante constitucional da legalidade, do respeito pela lei. Quando o seu suposto guardião permite violações tão matumbas, é a própria defesa da Constituição que fica em causa. No fim de contas, como se pode confiar no PGR para salvaguardar a Constituição?
O sistema constitucional angolano, apesar das habilidades jurídicas que contém com vista ao reforço do poder presidencial, assenta na separação e no controlo de poderes, dividindo, em muitos casos, competências e processos de decisão.
É o caso da nomeação do PGR, em que intervêm dois órgãos: o presidente da República e o CSMMP.
Em termos constitucionais, diz-se que o CSMMP tem o poder de iniciativa, e o presidente da República, o poder de decisão. Nem o presidente da República pode ter o poder de iniciativa, isto é, não pode propor ou sugerir ao CSMMP quem deve ser indicado (a acontecer, essa prática é inconstitucional), nem o CSMMP pode limitar o poder de decisão do presidente da República, limitando-lhe as hipóteses de escolha. Cada um deve estar no seu sítio e exercer os seus poderes.
A Lei n.º 22/12, de 14 de Agosto, “Lei Orgânica da Procuradoria-Geral e do Ministério Público”, concretizando o dispositivo constitucional acerca da designação do PGR (artigo 189.º, n.º 4 Constituição), determina no seu artigo 135.º n.º 1 que o CSMMP indicará ao presidente da República “três candidatos” a PGR, cabendo ao presidente escolher um deles.
Quer isto dizer que é dever legal do CSMMP remeter ao presidente três nomes e não apenas um, deixando depois completa liberdade de escolha ao chefe de Estado. É esta separação de funções constitucionais que foi violada no presente procedimento: nem o presidente da República pode sugerir ao Conselho que indique determinada pessoa, nem o Conselho pode indicar uma única pessoa para nomeação, mesmo que essa pessoa seja o PGR em exercício. O CSMMP tem de indicar três pessoas: uma para recondução e duas para o caso de o presidente não querer reconduzir.
Por desrespeitar os princípios de separação de poderes, designadamente o poder de iniciativa e de escolha, a presente indicação de recondução do PGR é simplesmente ilegal.
Obviamente, temos aqui um problema muito grave, com dois potenciais impactos extremamente negativos ao nível da aproximação aos Estados Unidos e do processo de extradição de Isabel dos Santos.
Em termos de política externa, enquanto este tipo de abusos, anormalidades e ilegalidades perdurar nas magistraturas, ninguém levará Angola e o seu presidente a sério. Em concreto, os Estados Unidos têm como pilar da sua política externa e da sua identificação o Estado de Direito e a independência de um poderoso sistema judicial. Por muito que aprecie a aproximação de João Lourenço, os EUA não lhe vão dar crédito enquanto houver graves atropelos ao devido processo em situações judiciais. Para os americanos, a força dos tribunais, a sua tentativa imparcialidade, e a capacidade de executar decisões são aspectos fundamentais para a respeitabilidade de um país.
A existência de histórias como esta da recondução de Pitta Groz não é meramente um problema doméstico, é uma questão da mais alta importância nas relações internacionais que Angola pretende desenvolver.
Além do mais, rumores de interferência presidencial nos conselhos judiciários, supostamente veiculados por fontes internas ou mesmo anunciados publicamente pelo próprio PGR, Hélder Pitta Groz, garantem antecipadamente a vitória de Isabel dos Santos num qualquer processo de extradição, visto que não há separação de poderes em Angola.
Consequentemente, a gravidade da falta de respeito pelas formas legais não é um problema de intriga palaciana ou de desencontro de personalidades. É a base da extrema desorganização do Estado no país.
Ora, a questão fundamental para a organização do Estado e para o seu normal funcionamento é sobretudo o respeito pelas leis por parte do presidente da República, do PGR, dos titulares de cargos públicos e dos funcionários públicos. Esse objectivo tem sido sempre atropelado.
Só com um Estado organizado e funcional Angola poderá combater com sucesso a corrupção e afirmar-se com respeitabilidade a nível internacional.
A escolha e a decisão são só de João Lourenço e de mais ninguém. É ele, e só ele, que tem nas mãos a credibilidade da justiça e do país. Também é ele que pode deixar a justiça afundar-se e afogar-se por arrasto com ela. É por essa ruela perigosa que caminha todo o legado de Lourenço.
Maka Angola
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