MEMÓRIA: O Mito Kassanji permanece vivo 47 anos depois, Comandante do MPLA desapareceu durante o recuo de Novo Redondo no dia 13/11/1975- Jaime Azulay



A necessidade histórica de se trazer luz sobre a morte de Herculano kassanji Delfino, o “Fundanga”, em 1975


     A caminho de meio século da ocorrência do seu desaparecimento, durante o recuo das forças do MPLA da cidade de Novo Redondo (Sumbe) em direção ao rio Keve, perante a invasão sul-africana, novamente o “mito” Kassanji volta teimosamente a emergir das brumas. Desta feita, trazendo  a premente necessidade de uma vez por todas, serem esclarecidas as circunstâncias da sua morte, envolvida em mistério e as mais incríveis especulações, diga-se.

     Acho que não devemos cair na tentação inquisitoria e de transformar o debate num tribunal e arranjar culpados, com o devido respeito. 

      Porque permanece vivo o “ mito” Kassanji? A omissão, na altura , de se comunicar oficialmente o falecimento do comandante Kassanji, por parte da direção do MPLA e do comando das FAPLA deu azo a especulações de vária ordem, que foram surgindo na sociedade. 

        Partindo dos factos irrefutáveis apresentados pelo general MBeto Traça, de  que  Kassanji foi efectivamente morto em combate e que a família reclama legitimamente pela exumação dos seus restos mortais e a realização de funerais condignos. Sem esquecer  o facto que em Benguela o maior liceu da província e a maior avenida da cidade tem o nome de Herculano Delfino Kassanji.

          A minha luta ao longo das últimas duas décadas, e, sempre com a devida anuência da família, numa primeira fase, está focada em três pontos essenciais:

           i) Localização, exumação e identificação forense dos restos mortais do comandante Kassanji, no Morro do Chingo, no Sumbe, onde encontrou a morte debaixo de um bombardeamento sul-africano no dia 13 de Novembro de 1975.



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           ii) Realização de funerais condignos e a observância das devidas honras militares em vigor no Procolo das Forças Armadas Angolanas.

            iii) Outorga,  à título póstumo, do grau militar que lhe corresponde e consequente inscrição como antigo combatente e veterano de guerra, bem como pensionista da caixa social das FAA, cujos benefícios recairam para os seus familiares na devida proporção da sua linha sucessória.  

             Tenho a agradecer a todos os amigos que deram o seu contributo neste nobre debate e termino a minha intervenção por aqui, na certeza que voltarei se houver  novidade superveniente com relevância. 

Apelamos com humildade a atenção das autoridades angolanas e a direcção do MPLA que o assunto  “Comandante Kassanji”corresponde aos anseios nobres e genuínos da sua família, dos seus antigos companheiros e da sociedade em geral.


KASSANJI RECLAMA O SEU LUGAR NA. HISTÓRIA 


PARTE II


      A conquista da Independência de Angola, constituiu uma das mais notáveis epopeias da libertação de África. A vitória alcançada  em 1975, deveu-se, sem dúvidas,  a que nos momentos decisivos tinhamos na vanguarda os melhores. Tratavam-se de verdadeiros homens de têmpera, combatentes destemidos, que tudo deram para que a Pátria nos embalasse a todos no seu regaço, como angolanos livres e dignos. Pelo menos foi isso o prometido. Desses homens tenho a honra e a oportunidade de falar e escrever sobre Herculano Delfino “Kassanji “.

       A morte do Comandante Kassanji ocorreu provavelmente no dia 13 de Novembro de 1975, durante as tentativas das FAPLA de travarem os sul-africanos na cidade de Novo Redondo. Sobre esses factos tenho a impressionante depoimento do general na reforma M'Beto Traça numa mensagem que me enviou em 2012, onde ele descreve as circunstâncias da morte de "Fundanga" que na altura chefiava  a primeira delegação do MPLA em Benguela. Imediatamente, quando iniciou a guerra,  foi nomeado comissário politico da Frente Militar Centro que era constituído pelos comandantes Monty (comandante) Ngakumona (Logistico) Basovava (Chefe das Operações)e Mbeto Traça que respondia pelo então distrito do Kwanza Sul. 

        Em Novembro de 1975, por muitos círculos correu a notícia de que Kassanji tinha sido responsabilizado pela derrota do MPLA em  Benguela e a destruição do paiol, onde o movimento tinha as suas reservas logísticas e de armamento, na cidade de Benguela. 

     Na sequência, sustentou-se que  Kassanji teria sido submetido a um julgamento marcial clandestino no qual se decidiu pelo seu fuzilamento.

        No depoimento que me enviou, o general Mbeto Traça, que era na altura o delegado do MPLA no Kwanza Sul desmente categoricamente tal hipótese e relata como sucederam os eventos.

     Kassanji tinha completado 26 anos quando morreu e transformou-se num verdadeiro mito. Nasceu no Andulo, no centro de Angola e era primo de pessoas que se destacaram no exército criado pela UNITA, as FALA (Forças Armadas de Libertação de Angola), estou a falar do lendário general Arlindo Chenda Pena (Ben-Ben) e por via disso tinha laços familiares com o Dr. Savimbi, então líder da UNITA. 

Kassanji não deixou filhos, mas tinha uma companheira que sempre o acompanhou, a guerrilheira Chinda, que ainda hoje vive. Tem também alguns irmãos. A família até hoje reclama a exumação dos seus restos mortais para realizar um funeral condigno bem com o seu reconhecimento como comandante no exercito do MPLA e a consequente atribuição do grau militar que lhe corresponde.

47 anos depois,  a figura do comandante Kassanji retorna para ocupar o seu lugar na História.


PARTE III


A Carta do general  MBeto Traça: “ O Kassanji morreu a combater”


A seguir, a transcrição da carta que me foi enviada pelo general MBeto Traça:


“ Caro Jaime Azulay . Se te escrevo estas linhas não é para provocar qualquer tipo de polémica, até porque não há lugar para tal, mas para te dar algumas informações complementares e fazer certas precisões.

     Conheci bem o Herculano Delfino Kassanji, de seu nome de guerra “Fundanga”. (Obrigado por me dares a conhecer o nome completo). Só começamos a conviver depois de ter sido nomeado Comissário Politico da Frente Centro, cujo Estado-Maior estava em Benguela e que integravam também o Monty, Comandante, o Ngakumona, Logístico e o Basovava, chefe das operações.

     O Kassanji era um personagem cativante. Acreditava com força na Revolução e daquilo que faríamos no país. Estava disposto a ir até ao fim, o que demonstrou em Novembro da nossa independencia. O seu entusiasmo exuberante era contagiante. São as recordações que tenho de uma longa conversa tida uma noite em Benguela, em Setembro de 1975, onde me desloquei depois dos combates contra a FNLA e a UNITA, em que o reforço enviado pelo Kwanza Sul, comandado pelo “Defunto” Faceira, foi decisivo. 

     Para enviar essa força para Benguela, de cerca 70 homens, desguarnecemos a Cela (actual Waku Kungo) que no seguimento caiu nas mãos da UNITA e assim se manteve até à invasão sul-africana. 

     Como se teriam passado as coisas se a Cela, que fica na margem norte do rio Keve, estivesse em nosso poder? Todas as pontes do rio Keve haviam sido destruídas: primeiro foi a de S. Joaquim, que dá acesso a Porto Amboim; depois a das Cachoeiras, que dá acesso à Gabela e finalmente as Sete pontes, à caminho da Conda!

     Será que os carcamanos sul-africanos teriam conseguido atingir a margem Norte? Será que a invasão pararia aí? Será que a Batalha do Ebo não teria tido lugar? Será que um dia os historiadores abordarão estas e outras questões sobre a guerra?

     No fim da tarde de 11 de Novembro, já com Angola independente, saí de Novo Redondo para Luanda, no meu Mercedes com volante à direita. Ao volante ia o Juca (Necas Moreso), actualmente Brigadeiro das FAA, e o Arrasta, um jovem combatente. Chegados a Luanda, já com a noite avançada dirigi-me para o Palácio da Cidade Alta onde estava a decorrer a recepção oficial, oferecida pelo Presidente da Republica Popular de Angola (RPA). Com muita dificuldade consegui falar com o camarada Presidente Neto que me mandou comparecer no Futungo no dia seguinte, de manhã cedo.

     Na manhã do dia 12 de Novembro, muito cedo, compareci no Futungo mas só por volta do meio-dia fui recebido pelo Presidente Neto, por que um guarda me quis demonstrar quem mandava ali. Levei uns bafos do camarada presidente pelo atraso! As instruções do camarada Neto foram breves e precisas. Continuar a tentar travar por todos meios o avanço sul-africano que agora, como país independente, íamos receber ajuda.

     Sem voltar à cidade , rumamos para o Sumbe pela marginal. À saída da cidade encontrámos um jovem branco envergando uma farda castanha soviética que usávamos, incluindo o chapéu. Perguntamos o que fazia ali e respondeu que ia para o Kwanza Sul combater. Era o Eduardo Kropotkine “Tubia”. Foi das FAPLA e acho que passou à reserva, como capitão, em 1990. Seguiu connosco.

     Perto da ponte do Rio Longa ultrapassamos um lança-foguetes BM-21 (quarenta bocas), que se dirigia para Sul, não sem manifestarmos efusivamente a nossa alegria.

     Quando chegamos a Porto Amboim estavam já a chegar viaturas que tinham começado a recuar de Novo Redondo. Seguimos de imediato para Novo Redondo, onde ainda chegamos com luz do dia. Fomos à Delegação do MPLA onde retiramos alguns dossiers. Pusemos fogo ao resto da papelada. A cidade estava deserta mas sentia-se que por detrás das janelas apagadas havia gente.

     Já era noite cerrada quando o Monty, o Kassanji, o Ngakumono, eu e outros camaradas nos sentámos no Morro do Chingo. Estávamos a conjecturar sobre o inimigo quando vimos os faróis de uma coluna de carros sair de Novo Redondo. Ainda pensamos poderem ser os sul-africanos, mas não. Eram sobretudo portugueses que não quiseram seguir o MPLA no recuo e optaram ficar e, naquele momento, dirigiam-se para a Pescaria do Madureira.

     Seguimos para Porto Amboim onde chegamos debaixo de chuva intensa o que era bom. O terreno argiloso empapado iria impossibilitar o avanço sul-africano se este optasse abandonar o asfalto. 

     Já altas horas da noite o Comandante Arguelles, com outros oficiais cubanos, vieram a nossa casa para avaliação a situação e tomada de decisões. Presentes também os membros do Estado-maior da Frente Centro. Eu já não dormia há duas noites, razão porque tive dificuldade em manter-me acordado e não me lembro muito bem o que foi dito.

     Logo que me levantei na manhã de 13 de Novembro fui informado que o Monty e o Ngakumono tinham partido para Luanda, pela calada da noite e sem se despedir, e que o Kassanji tinha ido para a zona das pescarias, onde estava alojado o pessoal que recuara, incluindo os militares. Por volta das 10 horas dirigi-me a Novo Redondo, com o Juca, Tubia e Arrasta. Novo Redondo estava deserta mas havia ainda gente a abandonar a cidade. 

     Dirigimo-nos à Cadeia comarcã, que fica no limite da cidade na saída para o Lobito, onde tínhamos presos da FNLA. Mandei libertá-los e ordenar-lhes que se apresentassem em Porto- Amboim. O armamento e outros equipamentos lá armazenados foram evacuados num camião basculante “Scania” da JAEA. 

     Quando íamos a regressar ao centro passou um mini-jeep, em direcção à saída da cidade, com quatro jovens fardados. Estávamos nas imediações do Centro Social quando um obus de “mwana kaxito” (Grad-1p) foi disparado frente ao mercado. Quem o disparou não foi o Kassanji, mas o Rui Graça “Lupuka”, também, “camusumbe”, que fora guerrilheiro na 2ª Região.

     Quando chegamos ao Morro do Chingo encontramo-nos com o Comandante Raúl Diaz Arguelles com quem comentamos a situação. Informou-nos que ia partir para a zona do Condé (comuna situada entre a Gabela e a Kibala), onde se estavam a concentrar os reforços cubanos. Estávamos a observar com binóculos uma coluna de fumo negro na zona da cadeia, quando ouvimos o silvar do primeiro obus de 8-8, que atingiu a encosta do morro. Já estávamos dentro do carro quando que o segundo obus rebentou para além da estrada. O Mercedes, que era diesel, tinha dificuldade em desenvolver, por estarmos numa subida, para desespero do Juca, que tinha o acelerador ao fundo e, claro está, para todos nós. A artilharia sul-africana estava a instalada na saída da cidade para o Lobito. 

     Rumámos para Porto Amboim. Na zona da Gangula encontramos uma coluna de combatentes a pé dirigindo-se para Novo Redondo. A frente vinha o Kassanji. Desci do carro e conversámos. Contei-lhe o que passáramos momentos antes. Expliquei-lhe a situação. Que uma tropa de infantaria, sem apoio de artilharia, nada conseguiria fazer. Não o consegui convencer ou talvez ele soubesse já o que ia encontrar. Talvez não quisesse o seu nome associado ao dos seus colegas do EM da Frente Centro que, pela calada da noite abandonaram a Frente e os seus homens para se refugiarem em Luanda.

     Kassanji pediu-me o meu cantil. Dei-lhe. Lembro-me que levava ao pescoço um lenço creme. O Tubia pediu-me para ir com o Kassanji. Autorizei. Foi a ultima vez que vi o Kassanji com vida. Segui para Porto Amboim.

     Nessa tarde quando nos preparávamos para destruir a ponte de S. Joaquim começaram a chegar os sobreviventes que nos contaram que a artilharia os dizimaram quando tentavam descer o Morro do Chingo. O Kassanji e muitos outros não regressaram. 

     A Bela Russa, a menina-combatente de 14 anos regressou. Um cancro venceu a nossa guerrilheira em 2006, em Lisboa.

     Em Fevereiro de 1976 dirigi-me ao alto do Morro do Chingo com vários camaradas. Encontramos varias ossadas dispersas num perímetro bastante grande. Creio ter reconhecido os restos mortais do Kassanji pela farda e pelo lenço creme que levava ao pescoço. Tirei fotografias, que ainda conservo, e enterramos todas ossadas in loco, em conjunto. Quem eram aqueles camaradas que tombaram com o Kassanji a defender esta Pátria? Alguém alguma vez os mencionou? Onde e quando?

     Jaime, só são algumas notas que fui rebuscar na minha memória e que achei que era melhor as partilhar, depois de ler o teu artigo.


Recebe um forte abraço do

Mbeto Traça

In tempo: Não era minha intenção escrever tanto. Desculpa se for fastidioso ler.”




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