A liberdade de imprensa tem vindo a ser escrutinada pelos tribunais angolanos. E se Tânia de Carvalho foi absolvida no caso da queixa do presidente do BAI, menos sorte teve Carlos Alberto, condenado a uma pena suspensa de contornos inusitados. A decisão do Supremo, neste caso, não está livre de críticas.
Há uma boa nova e uma má notícia para as liberdades de imprensa e de expressão. A boa notícia é a absolvição da comentarista televisiva Tânia de Carvalho, pelo Tribunal Provincial de Luanda, no caso da queixa apresentada pelo presidente do Banco Angolano de Investimentos (BAI), José Carlos Paiva. Tânia de Carvalho denunciou, com recurso a provas convincentes, os eventuais negócios corruptos de Paiva, que por sua vez decidiu apresentar queixa. Felizmente, neste caso, a justiça funcionou.
Má notícia é a condenação do jornalista Carlos Alberto, gestor do website A Denúncia: a 23 de Junho passado, três juízes conselheiros da 1.ª secção da câmara criminal do Tribunal Supremo condenaram Carlos Alberto a uma pena de prisão de três anos, sujeita a suspensão. Segundo a deliberação dos magistrados João Pedro Kinkani Fuantoni, Daniel Modesto e Aurélio Simba, a pena fica suspensa caso o condenado apresente, no prazo de 20 dias, um pedido de desculpas aos ofendidos, sendo o principal Luís de Assunção Pedro da Mouta Liz, vice-procurador-geral da República.
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Dita a sentença que o jornalista use o seu website, A Denúncia, e a sua página do Facebook, durante um período de 60 dias, para pedir desculpas de forma consecutiva, de 10 em 10 dias. O condenado estará obrigado a começar tal tarefa no prazo de 20 dias; se assim não for, a pena de prisão será imediatamente executada.
Carlos Alberto é condenado também a pagar uma indemnização ao ofendido Mouta Liz, no valor de um milhão e quinhentos mil kwanzas, além de uma indemnização, mais reduzida, a outros ofendidos. O portal A Denúncia é condenado a pena de multa.
A condenação do jornalista Carlos Alberto resulta da prática de três crimes de calúnia, três crimes de difamação e um crime de abuso de liberdade de imprensa.
Esta decisão resulta do recurso de uma sentença de primeira instância. Inicialmente, Carlos Alberto foi condenado a uma pena única de dois anos de pena suspensa, com a condição de, no prazo de 20 dias, apresentar um pedido de desculpas públicas ao vice-procurador-geral da República, por difamação, denúncia caluniosa e abuso da liberdade de imprensa. Nessa altura, a indemnização arbitrada pelo tribunal foi de 100 milhões de kwanzas, equivalente a 230 mil dólares.
Em seguida, o Tribunal Supremo subiu a pena de prisão suspensa em um ano, passando-a de dois para três anos, e baixou radicalmente a indemnização, de 100 milhões para 1,5 milhões, equivalente a pouco mais de 3460 dólares.
O que deu origem ao processo judicial foram as denúncias escritas por Carlos Alberto acerca do vice-procurador-geral da República, que aliás já tinham sido abordadas no Maka Angola em 2018. Aí contava-se a história de um suposto esbulho de terreno por parte de Mouta Liz. Carlos Alberto bombardeou o vice-procurador com outras versões do mesmo tema.
Os juízes entenderam que o grau de ilicitude da suposta ofensa a um vice-procurador é mais elevado do que aquele que aconteceria a um comum cidadão. E aqui abre-se espaço para uma crítica à argumentação dos juízes do Supremo. Precisamente, talvez o contrário seja mais válido. Qualquer ocupante de cargo público deve ter uma margem de “contestabilidade” maior do que a do cidadão comum, e só quando essa margem for ultrapassada deverá a lei agir através da punição penal.
Quer isto dizer que devem ser os mais fracos a estar mais protegidos pela lei, e não os mais fortes.
É sempre bom lembrar que as primeiras leis escritas que acabaram por inspirar os sistemas actuais do Estado de Direito – quer fosse o código de Hammurabi, quer as adaptações que o rei dos reis da Pérsia, Dário, fez do Direito mesopotâmico – tinham sempre em mente que as leis serviam para proteger os mais fracos, para que os fortes não os atacassem. Ora, este princípio imemorial das leis é invertido pelos venerandos conselheiros, ao atribuírem uma protecção mais vigorosa a um vice-procurador-geral.
Uma outra crítica que o acórdão merece é a desconsideração no que respeita às questões que se colocam entre as fronteiras da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, por um lado, e o direito ao bom nome, por outro.
Aflorando este tema, os juízes rapidamente afastam qualquer consideração, citando os portugueses Gomes Canotilho e Vital Moreira, no sentido de que ambos os direitos em colisão – liberdade de expressão e direito à consideração e honra – devem sofrer limitações de modo que se respeite o conteúdo essencial de cada um deles.
Na verdade, não faz sentido citar os mestres portugueses e não retirar uma espécie de lição para o caso concreto, averiguando qual a medida da compressão que esses direitos podem sofrer e como se resolvem, na prática, estas situações.
O recurso sistemático à doutrina portuguesa não ajuda, já que esta é bastante pobre em matéria de liberdade de expressão e informação, tendo o país sido condenado algumas vezes pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
A magistratura angolana deve, em definitivo, procurar doutrinas mais ricas e imensas, a começar na África do Sul e a terminar na Alemanha.
Discorda-se vivamente da aproximação interpretativa do Tribunal Supremo relativamente à colisão da liberdade de expressão com o direito ao bom nome.
No nosso entendimento, a liberdade de expressão, numa sociedade democrática, afigura-se como uma regra prevalecente, embora deva ser afastada em casos de manifesta gravidade, sobretudo quando as afirmações difamatórias não estão sustentadas em qualquer prova.
Em termos de liberdade de expressão, cabe ao ofendido provar, para além de qualquer dúvida, de que modo o seu bom nome é afectado e, ademais, que o arguido teve uma intenção relevante e maliciosa em denegri-lo, sem qualquer prova dos factos alegados. Portanto, não temos uma verdadeira colisão de direitos, mas sim uma adequação prática.
Considerados os pontos críticos do acórdão, é necessária uma regulamentação o mais clara possível acerca dos limites e dos excessos. A prevalência, na liberdade de expressão, não pode querer dizer que qualquer afirmação é admitida, sobretudo neste tempo de intolerância e enxovalhamento nas redes sociais. Nota-se que existe, de resto, uma preocupação oficial de sujeitar as redes sociais a escrutínio judicial; e claro que as afirmações que ultrapassem as “linhas vermelhas” devem ser escrutinadas pelo direito.
Neste aspecto, no caso que estamos a analisar, o tribunal aferiu que o jornalista Carlos Alberto foi incapaz de provar as suas afirmações, apesar de terem sido admitidos vários meios para tal.
De acordo com a deliberação do Tribunal Supremo e as normas do jornalismo, não se podem fazer afirmações difamatórias sem um elemento de prova bastante. O falar por falar, lançar a calúnia por lançar, não tem prevalência. Os tribunais têm sempre de instar os arguidos a demonstrar as razões em que se basearam para fazerem as afirmações que ofendem.
Finalmente, é fundamental referir a parte da pena segundo a qual o arguido é obrigado a repetir, de 10 em 10 dias, o pedido de desculpas na página do Facebook e no jornal digital A Denúncia. Parece uma medida desproporcionada, além de um pouco confusa. Bastaria um pedido de desculpas que permanecesse durante um período determinado de tempo na página. Assim, parece mais um castigo humilhante para o arguido.
Infelizmente, esta decisão do Tribunal Supremo, ao contrário de algumas decisões de primeira instância, não nos descansa no que diz respeito à liberdade de expressão.
O Tribunal Supremo não cria um quadro manifesto e uma geometria de aplicação da lei perceptível por todos. Se, em termos de indemnização, a decisão parece razoável, já em relação à possível pena de prisão afigura-se excessiva.
Maka Angola
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