Análises informadas levadas a cabo em círculos intelectuais e políticos e até entre figuras do inne circle do poder angolano consideram que o regime do Presidente João Lourenço executa uma agenda paralela de controlo da justiça especificamente com fins eleitoralistas.
Essas leituras são sustentadas, sobretudo, em várias decisões consideradas inconsistentes e contraditórias sobre alguns processos mediáticos que envolvem altas figuras do Estado, do tempo de José Eduardo dos Santos. Informações reservadas expõem também pormenores das fases de negociação de alguns processos que confirmam a instrumentalização da justiça a pensar nas eleições já marcadas para 24 de Agosto deste ano.
Higino Carneiro, um influente general da guerrilha que assumiu várias funções governativas com o ex-Presidente, conseguiu encerrar um monumentoso processo de desvios de fundos públicos movido contra si, alegadamente a troco do seu silêncio sobre os crimes eleitorais no pleito de 2017 em que João Lourenço se elegeu Presidente. A Carneiro são atribuídos comentários, dirigidos aos procuradores da Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP), de que os magistrados deveriam perguntar antes a João Lourenço como se tornou Presidente da República. Enquanto isso, José Filomeno dos Santos ‘Zenu’, filho varão de José Eduardo dos Santos, e o ex-governador do Banco Nacional de Angola (BNA), Valter Filipe, foram condenados num processo em que o Tribunal Supremo não conseguiu provar a tese do Ministério Público da alegada tentativa de desvio de 500 milhões de dólares do banco central. Dados nunca trazidos a público mostram, entretanto, como João Lourenço, com o apoio crucial da secreta, se serviu especificamente deste caso como uma poderosa arma de chantagem contra o seu antecessor. O objectivo concreto da transformação do caso 500 milhões em processo-crime era o de obrigar José Eduardo dos Santos a remeter-se ao silêncio em relação a quaisquer informações que pudessem comprometer a governação actual e, particularmente, favorecer a UNITA no combate eleitoral. Conversas gravadas e emails trocados, entre 2017 e 2018, entre o cidadão holandês Hugo Onderwater e o escritório de advogados Norton Rose Fulbright, através do seu advogado Michael Godden, revelam que operativos do SINSE, a mando do general Fernando Garcia Miala, deram garantias em Londres de que o encerramento do processo dos 500 milhões estava apenas dependente da realização do congresso do MPLA em Setembro desse mesmo ano. Hugo Onderwater é o empresário que liderava a operação de investimento que resultou na transferência dos 500 milhões de dólares, ao passo que a Norton Rose é o escritório de advogados que representa a generalidade dos processos do Estado angolano na Inglaterra, incluindo o caso dos 500 milhões. Em duas ocasiões distintas, os operativos do SINSE deslocaram-se a Londres e a Lisboa para pressionar a devolução dos 500 milhões de dólares antes da assinatura do acordo de consenso, com a promessa de que nenhum processo-crime seria movido em Angola. A decisão política de encerramento do processo, segundo o SINSE, estava apenas à espera da conclusão do congresso em que José Eduardo dos Santos passaria o comando do partido a João Lourenço. Nos emails trocados entre Hugo Onderwater e Michael Godden, o advogado do governo angolano, o pocesso judicial dos 500 milhões é descrito como “o pau atrás da porta”, o que, em tradução livre, significa uma avassaladora arma de arremesso de João Lourenço contra José Eduardo dos Santos.
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Violação de acordos e atropelos à Constituição
Depois de ter assinado o acordo de consenso que permitiu o regresso dos 500 milhões de dólares e em que se comprometeu prescindir de qualquer indemnização, o Governo angolano instruiu a Procuradoria-Geral da República a abrir o processo-crime que evoluiu para uma acusação e posterior condenação de todos os réus pelo Tribunal Supremo. Além da exigência de uma indeminização milionária, violando de forma flagrante o acordo de consenso, assinado em Londres, o julgamento ficou também marcado por uma série de atropelos à Constituição, incluindo uma recusa expressa do Tribunal em valorizar as declarações de José Eduardo dos Santos que assumiu ter orientado Valter Filipe a coordenar o projecto de criação de um Fundo de Investimentos Estratégico para o financiamento de infraestruturas públicas. Orientado a condenar todos os réus independentemente dos factos, o Tribunal ignorou os documentos que comprovavam o regresso dos 500 milhões, através de um acordo de consenso, e não por via de coação conforme defendia o Ministério Público. Declarações proferidas por testemunhas e funcionários do próprio Banco Nacional de Angola que davam conta de que a operação nunca poderia ter sido realizada de forma oculta, como argumentava o MP, também foram ignoradas pelo Tribunal.
Na carta enviada aos juízes do Supremo, José Eduardo dos Santos também garante que o projecto nunca poderia ter sido oculto uma vez que chegou a informar João Lourenço, ainda na qualidade de candidato do MPLA às eleições de 2017, sobre a operação que estava a ser coordenada pelo governador do BNA. Segundo consta, João Lourenço foi informado, num primeiro momento, na sede do MPLA, e posteriormente numa reunião no palácio, onde também estiveram presentes Valter Filipe e ‘Zenu’ dos Santos.
José Eduardo dos Santos detalha, na carta ao Tribunal Supremo, orientações específicas que teria dado a Valter Filipe para que entregasse todo o dossier a João Lourenço, mal tomasse posse como novo Presidente da República, e a Manuel Nunes Júnior, actual ministro de Estado e da Coordenação Económica. Manuel Nunes Júnior foi a figura máxima do actual governo que participou, em Setembro de 2017, numa reunião no palácio presidencial, convocada por José Eduardo dos Santos, para a recepção dos promotores internacionais da iniciativa. Convidado, na qualidade de testemunha, a explicar a sua presença na referida reunião, Nunes Júnior seguiu o guião que instruía a condenação dos réus, declarando em Tribunal que desconhecia a razão por que tinha sido convocado, apesar de ter assistido à reunião e trocado impressões na mesma oportunidade.
Outra nota dada como prova da actuação conspirativa das instituições do Estado para a condenação dos réus foi o papel crucial da Unidade de Informação Financeira (UIF), na altura dirigida por Francisca Massango de Brito, e que reportava para o então ministro das Finanças Árcher Mangueira, testemunha-chave do Ministério Público, no processo. Requisitada a esclarecer a transferência dos 500 milhões pela Nacional Crime Agency (NCA), do Reino Unido, a UIF escreveu ao departamento de operações bancárias do BNA que respondeu, no dia 22 de Setembro de 2017, que não havia registos da operação nos seus sistemas. É essa a resposta que a UIF acabou por enviar às autoridades britânicas, apesar do conhecimento que tinha de que, além do departamento de operações bancárias, existia outro departamento dentro do BNA que processava transferências. Em Tribunal, Valter Filipe e António Manuel explicaram que a transferência tinha sido realizada pelo departamento de gestão de reservas porque se tratava de uma garantia para uma operação de investimento e não de pagamentos correntes do tesouro, estas sim de competência do departamento de operações bancárias. Aliás, foi a carta enviada à UIF por António Manuel, então director do departamento de gestão de reservas do BNA, três semanas depois da resposta do departamento de operações bancárias, que abriu caminho para a Nacional Crime Agency da Inglaterra concluir que os 500 milhões de dólares se encontravam, de facto, na esfera patrimonial do Estado e que se tratava de uma operação legítima do Estado angolano, excluindo quaisquer indícios de crime. Em resumo, foi a carta que conduziu à assinatura do acordo de consenso, por vontade expressa dos réus, o que permitiu por consequência o regresso dos 500 milhões de dólares e dos demais recursos envolvidos na operação.
Sintomas de divisão no MPLA
Conscientes das possíveis consequências que o caso dos 500 milhões representa para a coesão do partido em fase eleitoral, alguns círculos no MPLA têm-se questionado sobre as motivações de João Lourenço em manter aceso um processo visto como um caso de perseguição pessoal contra o ex-Presidente do partido e da República. Em aparente resposta às vozes que apelavam para a desejada aproximação entre os dois presidentes, João Lourenço surpreendeu José Eduardo dos Santos, em Dezembro do ano passado, com uma visita inesperada à casa deste último, no Bairro Miramar em Luanda. Pessoas que acompanharam de perto a visita descreveram-na, entretanto, como um momento “estranho” que teve apenas como aparente objectivo juntar Lourenço e José Eduardo numa fotografia, para simular reaproximação e ludibriar a massa do MPLA, tendo em conta que o encontro não durou para lá de cinco minutos. Nos breves instantes em que se sentaram em sofás separados, José Eduardo dos Santos teria perguntado directamente a João Lourenço sobre a conclusão do caso 500 milhões, ao que este respondeu que já teria feito o que podia junto da Procuradoria-Geral da República. Passados poucos meses, o Plenário do Tribunal Supremo acabaria por manter as condenações de todos os réus, depois de analisar o recurso da defesa à sentença da primeira instância. Contundentemente contestada pela defesa, a decisão do Plenário do Supremo ficou marcada por uma forte divisão entre os juízes, tendo havido um empate técnico de 4-4 na votação, facto que levou o juiz-presidente do Supremo, Joel Leonardo, a votar duas vezes para produzir o desempate, um procedimento considerado ilegal e não previsto no regimento do Supremo, na apreciação de casos judiciais. Esgotados os recursos no Supremo, a defesa decidiu interpor um recurso ordinário de inconstitucionalidade ao Tribunal Constitucional, entretanto, não há conhecimento de o processo já tenha sido remetido a esta instância. Joel Leonardo é também visto como a figura que mantém cativos, de forma ilegal, os passaportes dos réus e que decidiu pela manutenção da interdição de viagens junto do Serviço de Migração e Estrangeiros, apesar de o próprio Tribunal ter extinguido justamente essas medidas de coação ainda em 2019.
Em tese, depois de João Lourenço ter usado o caso dos 500 milhões, entre outros, para pressionar a saída de José Eduardo dos Santos da direcção do MPLA, em 2018, e garantir a consolidação do seu poder pessoal sobre o partido e sobre o aparelho do Estado, continua agora a usá-lo para manter José Eduardo dos Santos em silêncio, em período eleitoral. No entanto, há receios dentro do próprio MPLA de que a contínua hostilização do ex-Presidente mantenha o partido dividido e produza efeitos perversos no combate eleitoral, considerando o vasto apoio de que José Eduardo dos Santos ainda conserva nas massas e entre as elites do partido dos ‘camaradas’, ainda que em surdina.
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