A comunicação do jurista Rui Verde apresentada no Congresso de Angolanística a decorrer em Lisboa analisa as transformações mais recentes no sistema judicial angolano: as novas funções, os impasses e o caminho para se sair dos aparentes becos sem saída e para se instituir um verdadeiro Estado de Direito no país, combatendo a corrupção e dotando a sociedade civil de espírito crítico e participativo.
Disseminou-se um mito segundo o qual o poder judicial é um corpo apolítico, que resolve as disputas que lhe são apresentadas de acordo com fórmulas técnico-legais.
Mas a realidade é bem diferente e muitas vezes assistimos aos tribunais a tomarem decisões e a dividirem-se nas mesmas linhas em que a população em geral o faz (Jeremy Waldron) , e também a tomarem decisões a que só podemos chamar políticas.
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Nesse sentido, não temos dúvidas em afirmar que o poder judicial, tal como os outros dois poderes, é parte integrante do poder político, embora com características próprias, já bem definidas por um dos Pais Fundadores norte-americanos, Alexander Hamilton, que descreveu o poder judicial como o ramo menos perigoso do Governo, já que não controlava exércitos, nem podia implementar impostos (Alexander Bickel) .
O papel do poder judicial e a sua intervenção política tornou-se um dos temas de destaque ao longo dos últimos anos em Angola, designadamente a partir da inauguração da presidência de João Lourenço .
Angola vive, em termos de poder judicial, aquilo a que chamaríamos de “activismo preambular”. Trata-se de uma nova postura activa dos tribunais, traçando um caminho rumo à possível construção de um Estado de Direito. Não se trata de uma mudança de atitude dos tribunais no quadro de uma situação constitucional estabilizada, como aconteceu com o activismo do Supremo Tribunal dos EUA nos anos 1950 (Warren Court) ou nos tribunais ingleses umas décadas mais tarde (“the judge over your shoulder”) .
Trata-se de uma modificação “top-down”. Isto é, não foram os tribunais que inovaram na jurisprudência, foi o presidente da República que colocou o foco nos tribunais, remetendo-lhes algumas das suas principais decisões políticas, como o combate à corrupção; e também os partidos políticos, sempre que discutiram os congressos no meio judicial .
De uma forma simplista, podemos afirmar que, enquanto os tribunais estavam no seu labor monótono e indiscernível, foram colocados por outras forças no olho do furacão.
Isto explica-se pelo papel preponderantemente desempenhado pelos juízes em Angola. Apesar de a maioria dos magistrados, actualmente, ter uma formação que assenta no modelo do Estado de Direito e separação de poderes, i.e., uma formação liberal constitucional, a verdade é que, estruturalmente, a magistratura angolana não foi desenhada nesse sentido, mas sim segundo um modelo a que chamaremos modelo chinês clássico (Fernanda Pirie) : a sua principal função é actuar como órgão disciplinador do Estado e da sociedade. A lei e o direito são um instrumento de poder e controlo, e não um projecto de justiça. Consequentemente, é neste contexto “chinês clássico” (à falta de melhor designação) que devemos perspectivar o “activismo preambular” dos tribunais angolanos.
Em termos concretos, os tribunais, nomeadamente, o Tribunal Supremo e o Tribunal Constitucional, foram interpelados para duas tarefas políticas: o combate à corrupção e o combate político-partidário.
Comecemos pela primeira. No que diz respeito ao combate à corrupção, o presidente da República optou por não tomar qualquer medida extraordinária fora do sistema judiciário normal em vigor, e remeteu os casos que lhe apareciam para o Ministério Público e tribunais comuns. Com esta prática, presume-se que quis transmitir uma imagem de normalidade e de funcionamento regular do Estado de Direito em Angola.
Esta opção, contudo, valeu-lhe várias acusações de selectividade. Na verdade, a partir do momento em que entra em acção um sistema judicial, é evidente que as decisões são tomadas caso a caso, não há lugar a massificação de julgamentos ou a julgamentos em massa. A judicialização do combate à corrupção implica naturalmente a selectividade. O problema não reside aí.
A visão que hoje se tem do combate à corrupção é que começou bem e com algumas iniciativas louváveis, mas, entretanto, perdeu alguma força e afrouxou.
Possivelmente, a principal explicação para essa perda de vigor é a falta de preparação do sistema judicial para estas novas funções. Trata-se de um sistema judicial que durante décadas foi conivente com a corrupção, fruto de um sistema hierarquizado de poderes, sem verdadeira independência. Não seria certamente em dois ou três anos que, por qualquer conversão damascena, reencarnaria num sistema moderno, eficiente e blindado ele próprio à corrupção.
A África do Sul seguiu outro modelo. Primeiro, criou uma comissão com amplos poderes, presidida por um juiz. Esta Comissão Zondo realizou um trabalho imenso de sistematização das acusações de corrupção e captura do Estado. Demorou alguns anos, mas, quando terminou, tudo estava pronto para avançar eficazmente no sistema judicial .
Este mês, os principais perpetradores da captura do Estado na África do Sul, os irmãos Gupta, foram presos no Dubai à ordem das autoridades sul-africanas.
Não quer isto dizer que o sistema sul-africano vá acabar melhor do que o angolano. A dada altura, o angolano parecia mais eficiente. Mas quer dizer, isso sim, que haverá alternativas em Angola, agora que parece existir um bloqueio no sistema judicial ordinário.
Temos defendido em vários textos anteriores a necessidade de criação de um sistema judicial anticorrupção próprio e independente em Angola: uma espécie de Direito Penal do Corrupto, emulando até certo ponto as ideias de Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) de Jakobs . Isto obrigaria provavelmente a uma revisão constitucional.
A segunda tarefa em que os tribunais têm sido interpelados diz respeito ao combate político-partidário. E aqui adquire mais relevo o Tribunal Constitucional. A sua decisão mais importante até ao momento foi a do famoso acórdão 700/21 , que declarou nulo o congresso da UNITA que elegeu Adalberto da Costa Júnior, devido a problemas com a sua dupla nacionalidade. Como é público, a UNITA acatou, e bem, essa decisão, e voltou depois a eleger Adalberto da Costa Júnior. Na altura, pareceu-nos que o Tribunal tinha andado bem e fundamentado adequadamente a sua decisão . Pensámos que era importante que um forte candidato à Presidência da República não surgisse com uma espécie de “pecado original” de dúvidas sobre a sua nacionalidade e, logo, sobre a sua elegibilidade. No entanto, esta intervenção do tribunal fez reflectir e passar a advogar, em termos de jurisprudência político-partidária, a jurisprudência da contenção; ou seja, o tribunal só deve anular deliberações partidárias em casos de flagrante incumprimento dos princípios constitucionais mais relevantes, de defesa dos direitos fundamentais e de violação das leis mais determinantes da República. De resto, é preferível que o tribunal adopte uma interpretação restritiva da lei, sempre que possível, e se abstenha de activismos, guardando-se para os momentos efectivamente importantes e deixando que os mecanismos autopoéticos (Teubner) do sistema político-partidário funcionem.
Em resumo, não há como evitar que os tribunais irrompam na arena política. A grande questão é como dotá-los dos mecanismos e instrumentos adequados para realizarem as funções que lhes são confiadas. E, no caso de Angola, modificar o paradigma estrutural do sistema judicial, abandonando o modelo chinês clássico e adoptando o modelo constitucional-liberal.
Maka Angola
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