Publicamos nesta edição o terceiro conjunto de depoimentos de sobreviventes e familiares de vítimas do 27 de maio, o movimento que há 40 anos marcou o início de dezenas de milhares de execuções. José Reis, José Fuso, Amadeu Amorim Neves “Dédé” e José Carrasquinha da Silva e Rocha, sobreviventes, contam a experiência que viveram na cadeia.
"O caldo entornou na madrugada do dia 27 de maio de 1977. No preciso instante em que, apavorado, entreabri a porta da minha casa, o mesmo aconteceu na da frente. O vizinho, amigo e meu camarada, copiava-me o gesto. Tropeçámos na cara um do outro, descobrimo-nos como que a olhar-nos ao espelho num momento de aflição. O pânico apoderara-se de nós. Abandonei o prédio assim que me foi possível e durante uns dias deambulei, sempre atiçado e enquanto mo permitiram, pelas ruas da cidade, até as barreiras militares começarem a tapar as saídas e a DISA, a maldita polícia, a bisbilhotar Luanda.
Afastei-me quanto pude de casa, da rua e do bairro, antes de me descobrir completamente cercado pelo poderoso dispositivo de homens armados, e só não me escapuli da cidade, e sei lá do país, também este já esquadrinhado e sitiado, por acabar recolhido em casa amiga, aonde me demorei protegido, enquanto a minha presença não causou apreensão. Dei por mim a andar a monte. A experiência não me agradou e, que se lixe, decidi voltar para casa e aí me deixar apanhar se assim tivesse que ser. (...)
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Regressei ao 4.º andar do n.º 35 da Praça José Anchieta quando encontrei uma brecha no cerco. Saltei da cama na manhã seguinte desperto por vigorosas batidas na porta. Na presença da súcia que me foi arrebatar de casa, sem o auxilio de alguma permissão emitida pela justiça, o que fez da detenção um ato ilegal, enquanto, sem dissimular, enfiavam as manápulas pelos livros que me preenchiam as prateleiras, pronunciando injuriosas censuras sempre que os títulos das obras ou os nomes dos seus autores lhes aguçava a fobia marxista, vesti-me, retirei do pulso o relógio que num gesto usual acabara segundos antes de colocar, confirmei a presença do cartão de membro do MPLA na carteira, qual fetiche da ventura, despedi-me fugazmente, para atenuar lembranças futuras à minha companheira e, sem oferecer a menor resistência, segui-os. Já do interior do elevador vi-a acenar dois maços de cigarros. Recusei a oferta. – Os mortos não fumam. – Respondi-lhe. (...)
Ao final da tarde desse inesquecível e longo dia, também ela, mais as outras companheiras dos que comigo foram raptados nessa manhã, acabaram por dar entrada nos calabouços da cadeia de São Paulo, da qual um mês depois, angolana por opção, mas portuguesa de nascimento, é expulsa para Portugal, sem culpa formada, tão-pouco incriminada do que quer que fosse.
Como troféus, assim fomos mostrados, depois de impetuoso despejo, a quem nos esperava no quintal das traseiras da tenebrosa “protetora” do estado, a DISA. Se até aqui o porte de quem mereceu a incumbência de nos ir arrebatar foi moderado, logo se desvaneceu, quando o anfitrião, Victor Jeitoeira (...), nos recebeu. Proferiu as mais cruéis e selváticas ameaças, escoltou-as de insultos e guarneceu-as de chapadas. Ordenou logo que nos despíssemos, só até às cuecas (...). Reviver o misterioso passo que dei aperreado para transpor as portas de São Paulo, é uma imagem que ainda hoje me indispõe. Cruzar os seus portões foi dos momentos de maior alvoroço que experimentei na vida, por pressentir precipitadamente que o fim se aproximava.(...).
O primeiro embate com o quotidiano prisional foi um mau prenúncio. Esbarrei com a violência desmedida, do insulto até à pancada, e presenciei de perto a morte. No dia seguinte fui conduzido à presença dos meus delatores.(...)
Henrique Beirão, João Beirão, José Guerreiro, Henrique Morais o Mário Duarte e alguns outros, não têm um gigantesco peso na consciência? (...).
A estadia na “automotora” aconteceu num momento precoce da clausura, cedo demais para eu conseguir juntar as pontas e entender o que estava realmente a acontecer. (...) Sem ter um crime para confessar, tão-pouco cúmplice para denunciar, como sobreviveria a tão visível embuste? Levar-me-iam à presença de um juiz? O direito à defesa estava garantido? Seria tratado com dignidade?
Para o efeito, ou talvez não, foi criado um “tribunal”, ao qual despudoradamente um dos seus jurados apelidou de «comissão da lágrima no olho» pela moleza com que nos afiança ter “julgado”. Tal comissão atuou à revelia dos mais singelos paradigmas da justiça. Abusou física e moralmente dos acusados, acabou por mandar muitos deles para a morte, sem lhes dar a mais pequena hipótese de defesa e tão-pouco lhes fazer justiça. Três dos seus “jurados” eram Fernando Costa Andrade, Manuel Rui Monteiro e Artur Pestana (vulgo Pepetela) (...)
Tudo se passou ao fim de uma manhã, por volta da hora da distribuição do “pitéu”. Como na ordem de chamada não foi pronunciada a derradeira sentença “arruma as coisas”, concluí, fruto de experiência adquirida, não ter chegado ainda o momento de embarcar na enigmática e sinistra ambulância do Pitôco, que tão vazia de esperanças partia à noite e tão repleta de dor regressava pela manhã. Tratava-se tão-somente de uma “visita” ao comando, lugar de onde por vezes se voltava mais morto que vivo mas, ainda assim, com o coração a bater. (...)
Provido de material “escolar”, um caderno da UNICEF – que ignomínia – de folhas pautadas, e uma Bic, foi-me ordenado que desse livre engenho à escrita. Confuso, ainda perguntei:
– Escrever? Mas escrever o quê?
– O que tu quiseres. Mas escreve! Ripostou colérico o Baião.
Forçado, encetei a prosa e ocorreu-me falar de mim. Contei como me inquietaram os atropelos coloniais, como despertei, ainda jovem de liceu, em Nova Lisboa, e de como firmei a minha repulsa já aluno da Faculdade de Medicina em Luanda. Divagava eu pela noite, o quanto me era permitido, quando a redação foi bruscamente interrompida. O comando foi invadido por um dos mais temidos carrascos, Carlos Jorge, seguido de uma outra não menos sinistra personagem, figura escanzelada e algo corcovada, de cognome “Cansado”. O fedor detetável a léguas, anunciava a dimensão da bebedeira. isca em vinha de alhos, avisava-me do número de rounds do iminente “combate”. Ia ser rápido. Levar-me-iam depressa ao tapete e com ligeireza arrebatariam o K.O. Assim foi. Pancada de três em pipa, incluindo uma barra de ferro, outrora cabeceira de uma cama, tudo serviu para surrar e voltar a surrar, sem outro fim que não fosse o de satisfazer instintos animalescos, amplamente publicitados e sobejamente demonstrados.A excitação da peleja foi tal que atiçou o apetite de outras feras. Surgem então, sabe-se lá de onde, novos verdugos, que de imediato, investem qual abutres famintos sobre a presa manietada e pronta a ser devorada. (...)
João Baião voltou a chamar-me ao seu “laboratório”. Desta vez adotou uma conduta mais sórdida, tinha o propósito de me obrigar a confessar passos que não dei, quiçá para se precaver, não fosse o diabo tecê-las, da não existência futura de uma elaborada nota de culpa. Para o conseguir, mandou-me prostrar no chão, de bruços e, nessa incómoda e humilhante postura, atou-me violentamente os cotovelos atrás das costas. Alguns minutos a penar nessa pose resultaram num corte da circulação sanguínea aos antebraços, as mãos incharam, e as pontas dos dedos perderam a sensibilidade. Afortunadamente o martírio foi breve, caso contrário não haveria retorno. Amansei os rompantes coléricos do Baião "confessando-lhe" ter sido a minha casa ponto de encontro e convívio de camaradas e amigos. (...) Este episódio sádico e doloroso, que me atirou para as cordas e a outros para outras variantes da tortura. (...)
O agente Baião ficou manifestamente satisfeito com o seu trabalho. Podia sossegar. Acabara de obter, após pungente “interrogatório”, a tão desejada confissão. Ao pretenso confesso estava destinada a transferência para nova morada, a cela “5”. (...)
Dormir foi coisa à qual me habituei a fazer diretamente no chão. A revista a que me sujeitaram à entrada para São Paulo não foi segura. Ao tato do apalpador de serviço, um tal “Alex”, escapou uma insignificância, que ficou a salvo no meu bolso das calças e que se tornou mais tarde, para desenrascar, objeto de grande utilidade. Já na cela, fragilizado e muito magro, senti necessidade de descansar. Deitei-me de lado no chão duro, mas, pela falta de substrato debaixo da pele, a anca esborrachou-se contra o solo de forma dolorosa. Virei-me ao contrário para dar folga àquele lado, queixou-se o outro. Pus-me de barriga para cima não tardou o sacro a protestar. Era um mal-estar aterrador tentar dormir e não conseguir pregar olho, ter que descansar e não o poder fazer. Encontrei a solução, para serenar o incómodo, no bolso das minhas calças. O lenço. O pequeno quadrado de pano, depois de dobrado e redobrado, transformou-se numa almofada que, interposta entre a dor e o chão, me consentia um tempo suplementar de apoio sobre o mesmo lado. Passava as noites numa constante inquietação, a mudar de posição. Ora vira para a esquerda, depois para a direita, barriga para cima, barriga para baixo, esquerda, direita...
Depois de acomodados para a noite e antes de alcançar a tranquilidade do repouso, para nos acalentarmos e enxotar maus agoiros, cantávamos (...) Entre nós, os da “automotora”, encontrámos a similitude e a aproximação nos temas da música popular brasileira. Cantávamos Tom Jobim, Chico Buarque e outros mais e, quando pulávamos de continente e pousávamos em Portugal, aí não esquecíamos o Zeca, o Adriano e o Fausto. (...)
Ao princípio da noite de um dia de Janeiro de 1979, a população prisional de São Paulo foi surpreendida por uma estranha movimentação de “conduzes”. De rompante, num lance ensaiado, invadiram as celas a vociferar os nomes arrolados para uma lista, aos quais, sempre que era encontrado o intimado, se lhes acrescentava a máxima outrora tão apregoada: “arruma as coisas”. (...)
Nascia o sol quando por fim chegámos ao campo de “reeducação” do Tari, com equimoses no corpo e o coração aos saltos. (...)
Outra das práticas usadas para fazer desaparecer indesejáveis, foi a de os enfiar num saco, embarcá-los num avião, e das alturas largá-los ao mar ou noutro qualquer lugar inóspito, dos tantos que Angola tem na sua imensidão. (...)
O Campo do Tari ficava perto da Quibala, na província do Kuanza-Sul (...) A nossa condição física passava por um momento de grande fragilidade. Tínhamos frio, passávamos fome, vivíamos na incerteza, a saudade morava connosco, a raiva era imensa e o medo teimoso.
Pela madrugada, com o sol ainda na preguiça, enfiados em toda a roupa que tínhamos, íamos para o campo da bola num passo acelerado, dar corpo a uma formatura de modelo militar e aí, em aprumado porte marcial, responder à chamada, não fosse alguém ter-se escapulido durante a noite. Na formatura ficava-se a saber da sorte que a cada um tocava nas fainas agendadas para o dia. (...). Despejavam-nos à porta das lavras de milho, batata, ginguba, produtos cujo enorme excedente, resultante do trabalho escravo, tinha destino e proveito dúbio; mandavam que as amanhássemos, vigiavam o empenho de cada um, e concluída a jorna regressávamos exaustos e a pé (...).
Em 1979, o dia 29 de Setembro foi a um sábado e desde a véspera que crescia a fé num mujimbo entusiasticamente espalhado, reputado de grande certeza, dizia-se, por proceder de fonte segura, chegou mesmo a garantir-se. Por ele, que falava da existência de uma “lista” e desta, pelo que o seu teor rezava, adivinhavam-se boas novas, quiçá em breve a liberdade. (...)
Acabada a cerimónia do adeus aos capatazes do campo, aceno a que acintosamente me escusei, saltei para a traseira de um jipe Land Rover, pertença da família de um dos companheiros que comigo deixava o campo, e encarrapitado entre os haveres de uns e o canastro de outros, encetámos o regresso a Luanda. (...) Voltava para o lar onde família não me esperava. O espaço, esse outrora pequeno mas afável, estava abusivamente ocupado. Acudiu-me o amparo dos amigos que restaram da refrega de 1977. (...)
Em meados de Janeiro de 1980, cidadão angolano por direito, muni-me do bilhete de identidade, do passaporte e de uma licença militar, não fosse a Pátria vir a requisitar os meus préstimos e fui comprar uma passagem de ida e volta para Portugal, na mira de descansar e re(a)ver a família.
Por cá me encontro, já lá vão quarenta anos, e ainda conservo o bilhete de volta. É improvável que o venha a utilizar.
Já perdeu a validade.”
JOSÉ FUSO
(ESTUDANTE DE ECONOMIA, ADERENTE DO MPLA)
“O objetivo do 27 de maio foi basicamente eliminar as esquerdas dentro do MPLA. É aquilo que passados 40 anos depois de muito ler, estudar e falar com muitas pessoas, percebo. Limparam todas as pessoas de esquerda, não sobrou ninguém. É a minha visão hoje.
Eu era aderente do MPLA e se me perguntassem se tinha simpatia pelo Nito Alves? Sim, tinha. Mas também tinha simpatia pelo Agostinho Neto. Estupidamente tinha. Só comecei a questionar o Neto no dia em que entrei na cadeia e percebi o que estava a acontecer. Até aí nunca imaginei sequer que o Nito Alves fosse substituir o Agostinho Neto. Para nós isso era pura ficção.No dia 27 de maio estava em casa. Quando comecei a ouvir o “Angola Combatente”, assustei-me e fui ter com uns amigos. Fiquei em pânico com o que estava a acontecer nas ruas. Era a completa anarquia.
Sou preso pelo general Ndosa, três dias depois, a 30 de maio, com o Jorge Fernandes, à porta da cantina da universidade. Eu já tinha sido acusado de ser fracionista nas reuniões entre 21 e 27 de maio. Fomos levados de jeep com várias chaimites militares. Pensei que me matavam na primeira curva, mas levaram-me para o ministério da defesa onde fui deixado num corredor. A maior parte das pessoas que lá estiveram e que eu não conhecia, morreram.
Fiquei nesse corredor uma noite. Estava na antecâmara da morte. Depois levaram-me para a cadeia de S. Paulo, onde encontrei muitas caras conhecidas, em pânico. Estava tudo calado, trocava-se olhares, não havia conversas. Os olhares diziam tudo.
Tiraram-me os pertences e fui levado para uma cela com mais de 100 pessoas. Nessa noite comecei a ouvir os gritos dos que estavam a ser torturados. Era horrível. Havia um consenso tácito de que ninguém respondia quando iam chamar às celas. Aprende-se logo a ficar calado. Havia alguns que nem sequer respondiam quando chamavam os nomes deles. Quando isso acontecia eles agarravam num qualquer. Era tão perigoso olhar como desviar o olhar.
Terei sido chamado a primeira vez quatro ou cinco dias depois de lá estar. Sou levado à presença de pessoas que eram do meu próprio grupo de ação. Começaram por dizer-me que estavam ali para ajudar a perceber o que é que se passou. Estavam a justificar a presença deles. Era a chamada Comissão das Lágrimas. E neste caso estou a falar do João Beirão, do Henrique Morais e do José Guerreiro. Pretendiam que eu confessasse que pertencia a uma organização clandestina. Neguei. Falei o menos possível. Ninguém tomou nota do que eu disse. Foi mais intimidatório do que um interrogatório.
Nessa altura já era casado com uma jovem de 18 anos que tinha ficado grávida e eu não sabia. Só soube já preso, através de uma “mucanda” (pequeno pedaço de papel escondido nas bainhas) que ela colocou numa peça de roupa.
Quando a minha filha nasceu, em janeiro de 1978, eu ainda estava preso. Fui interrogado várias vezes. Com tortura. Bateram-me com socos, pontapés, com paus na cabeça, mas o que me custou mais foi ter de presenciar os choques elétricos que davam nos genitais e nos mamilos de um amigo. Aí tive vontade de contar coisas inexistentes para pararem com aquilo. Chega uma altura em que já não sentimos nada. Entramos numa espécie de transe.
Depois fui transferido para “o comboio”. Era uma zona da cadeia que tem celas de um lado e do outro e a solitária com apenas 1m2, onde também estive uns dias. Fui para o fim do corredor do “comboio”, para um pequeno cubículo que ficava dentro da casa de banho e que estava sempre inundado. Estive aí seis meses terríveis com outra pessoa. A cela tinha duas lajes em cimento, tipo beliche, no chão havia uma latrina com dois sítios para colocar os pés. Para irmos buscar água era preciso ir lá abaixo ao cano do esgoto da latrina. Só tínhamos espaço para dar dois passos e eram dois passos em água. Fiquei doente com problemas respiratórios, que perduram até hoje.
Lembro-me que aproveitamos os restos do sabão azul e branco que ficavam no chão dos duches e construímos um jogo de xadrez, que nos ajudou um bocadinho a passar o tempo. Não tínhamos mais nada, nem cobertor nem colchão. Só ao fim de dois meses é que nos deram um colchão que dividíamos à semana.
Em 1978 levaram-me para o campo de produção e reeducação do Tari. Aquela partida a meio da noite foi estranha, parecia que estávamos a partir para a morte. E aconteceu um episódio interessante. Cada camioneta tinha apenas dois militares a escoltar-nos o que era pouco porque se quiséssemos conseguíamos dominá-los. O mais incrível é que no caminho um dos camiões despistou-se, virou e os outros presos que estavam nas outras camionetas desceram, foram ajudar, ninguém fugiu - e havia militares presos que sabiam mexer em armas -, entrou tudo outra vez nas camionetas e seguimos.
Quando cheguei ao campo foi uma sensação de alívio porque sai de uma cadeia onde quase não se vê a luz e passei a estar ao ar livre.
Dumilde Rangel (Nambi), chefe do campo, tinha sido meu colega na faculdade. Ele era da guarda presidencial do Agostinho Neto, a chamada 9ª Brigada, e num determinado momento até terá estado com os fracionistas, mas à última hora voltou à caserna. Puseram-me primeiro a partir pedra como os irmãos metralha, só não tinha era a bola com uma corrente amarrada ao pé. Como mal conseguia levantar a marreta, tiraram-me desse grupo e fui trabalhar na agricultura, basicamente no milho.
O meu pai andou sempre atrás de mim, não me deixou. Mas não falávamos nada de politica quando me visitava.
No Tari éramos uns 300. Dormia num barracão grande, que estava cheio de ratos que mais pareciam coelhos. À noite amarrávamos as calças com cordas para os ratos não entrarem. Dormíamos no chão. Era terrível.
Até que um dia voltei a ter medo e a pensar que ia morrer. Começaram a prender pessoas dentro do próprio campo. Cavaram uma vala dentro de um barracão, colocaram as pessoas lá dentro e taparam com um alçapão. Foram uns 15 ou 20 que foram acusados de estarem a planear uma rebelião no campo, com ligações à FNLA. Nessa altura ficamos todos em pânico, foi tudo feito à nossa frente.
Mas logo a seguir a isto sou transferido para outro campo, o do Muquitixe.
A 17 de agosto de 1979 estava a tomar banho no rio, quando me vieram dizer que ia ser transferido outra vez para o Tari. Já tínhamos ouvido um “mujimbo” (boato) de que havia qualquer coisa em curso. Quando chegamos ao Tari mandaram-nos formar. Separaram os presos do 27 de maio e disseram-nos que íamos embora para casa, por ordem do Presidente. Não esperei pelo transporte e nem fui buscar os meus pertences, como estava, saí. Aproveitei a boleia na carrinha do pai de um amigo, que tinha ido lá visitá-lo.
Fui dos primeiros presos a chegar a Luanda.
Entrei em Portugal definitivamente no dia 25 de fevereiro de 1983.
Só voltei a Angola, em 1992. Estive lá 10 dias. Eram para ser 15. Pressenti algo no ar. Vim embora uma semana antes de começarem os confrontos entre a UNITA e o MPLA. Aí sim quando o avião partiu tive a sensação de que não voltaria mais. Já lá vão 25 anos.”
AMADEU AMORIM NEVES “DÉDÉ”
(COMISSÁRIO POLÍTICO DAS FAPLA. ECONOMISTA E EX-VICE-MINISTRO DOS TRANSPORTES NO GOVERNO DE UNIDADE E RECONCILIAÇÃO NACIONAL)
“O meu 27 de Maio começou no dia 26 de Maio quando Bernardo Teixeira “Nado” me levou ao encontro de José Van-Duném num apartamento no Prenda onde mantivemos uma conversa que durou mais de uma hora.
O Zé Van-Duném defendia um levantamento popular para forçar a sua reintegração e a de Nito Alves no comité central do MPLA mas eu não estava ao corrente do fracasso da primeira tentativa de uma operação semelhante a 25 de Maio. O Zé Van-Duném pretendia medir a pulsação dos militares sobre a sua situação e a situação de Nito Alves por temer que seriam ambos presos e um deles fuzilado.
A minha oposição levou a que ele me omitisse os preparativos da intentona. Fui para a casa por volta das 21.00 e dormi tranquilamente a noite de 26 para 27 de Maio. Nesse dia, agentes da DISA foram a casa da minha mãe, perto do cinema Avis, a minha busca mas eu estava com o meu tio Amadeu Amorim a ver a manifestação de rua defronte a Rádio Nacional de Angola.
Por volta das 13.00 foram a minha casa num prédio situado no Kinaxixi onde fui preso por uma patrulha de militares chefiada por Getoeira, um famoso agente da DISA.
Alegavam que o comandante João Luís Neto “Xietu” pretendia falar comigo mas isso era apenas um pretexto para me amarrarem, espancarem e levaram as instalações da DISA para ser presente a João Lopes “Ludy”, o chefe supremo da policia política.
Dali fui encaminhado para o Ministério da Defesa onde encontrei o Monstro Imortal, o Sihanouk e mais 20 pessoas. Posteriormente fui para a cadeia de S. Paulo onde o meu processo de tortura estava a cargo Miguel de Carvalho “Wadjimbi” e Ludgero (Tino) Pelinganga, dois agentes da DISA muito temíveis.
Posteriormente fui enviado em Fevereiro para a Casa da Reclusão onde encontrei o Zé Van-Duném no sector de isolamento.
Em Janeiro de 1978 fui desterrado para o campo do Tari na Quibala onde eu e o Hochi Min éramos os únicos militares. Aqui vimos a morte por um fio. Sob as ordens de “Onambuwe”, um dos cérebros da DISA, tudo fora orquestrado poe Dumilde Rangel “Nambi” que depois de ter sido encarcerado foi transformado em chefe do campo.
Fomos para o correr da escuridão para sermos fuzilados sob o pretexto que pretendíamos fazer um levantamento e o que nos valeu foi a reação enérgica de Raquel Agostinho, mulher do José Agostinho, que veio disparada até Luanda para protestar junto de Ludy e Onambuwe.
De madrugada quando já estávamos diante do pelotão, a chefia do campo recebeu um telefonema de Luanda a mandar suspender o fuzilamento...
Vinte e dois meses da minha prisão eram finalmente libertado.”
JOSÉ CARRASQUINHA DA SILVA E ROCHA
(LOCUTOR DA RÁDIO NACIONAL DE ANGOLA)
“No dia 27 de Maio recebi um telefonema do José Matoso, então diretor da Rádio, que incumbiu a mim e ao Carlos Garcia, de fazer uma ronda pela cidade para saber o que se estava a passar. No regresso fomos intercetados no Largo das Heroínas e, impedidos de chegar até à estação, decidi ir para a casa (no bairro Sambizanga) onde estive durante dois dias sem que o carro da emissora, que todos os dias me apanhava, voltasse a fazer a tradicional recolha do pessoal. Pelo menos a mim não fizeram.
Esperei até ao dia 29 quando a minha casa foi cercada, fui preso e levado para a rádio onde fui inquirido pelo Ruy Carvalho, que me fez algumas perguntas insinuantes que não respondi.
Dormi a noite na rádio e depois fui enviado para uma célula na cadeia de S. Paulo onde já se encontravam presos elementos da revolta ativa como o Gentil Viana e os três irmãos Pinto de Andrade (Justino, Vicente e Memeco) e outros. Fiquei por lá uma semana e foi provavelmente por isso que não terei sido morto...
Mais tarde fui para a célula B no 1º andar onde fiquei até Novembro de 1977. A Casa Reclusão seria o mesmo destino seguinte. Lá encontrei o José (Zeca) Van-Duném, o Félix Matias “Felito” e outros. Ficamos no “corredor da morte”. Aí, sob o tenebroso olhar de Carlos Jorge, fui ameaçado de morte por um agente pidesco da DISA chamado Inácio. Éramos 44 e sobramos 22...
Em Janeiro de 1979 foi libertado sem culpa formada mas em vez de ser readmitido na Rádio Nacional, ao serviço do Ministério dos Transportes, fui deportado em Abril para o Kuando-Kubango onde voltei a encontrar o Zeca Van-Duném, o meu irmão mais velho Evaristo Silva e Rocha, o Piedade e outros ex-presos. Um dia chateei-me de lá estar, peguei nas minhas imbabas e vim para Luanda tratar da minha vida até hoje...
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