“Luanda ficou um edifício bonito, mas sem casa de banho, porque 'os hidráulicos' não são consultados”



Defende que a solução para o problema das inundações passa pela construção do  ‘rio Luanda’, mas alerta que “não é o fim, mas o princípio de uma revolução sanitária”. Lidera o Instituto Médio de Gestão de Águas  e Preservação Ambiental (Imenha), com esperança de que os técnicos sejam ouvidos. Crítico da actual gestão das águas, defende que deveria estar separada da energia, no Ministério, por estar "atrasada".


Como olha para a gestão da cidade de Luanda, quanto ao saneamento básico?


O quadro é catastrófico no que concerne ao abastecimento de água. Os esgotos estão a céu aberto e depositados em lagoas criadas não sei a partir de que princípios. A drenagem é feita aleatoriamente e as avenidas tornaram-se em autênticos rios.



Foi por isso que fundou o instituto de gestão de águas?


Sempre que chove, a minha área fica como se fosse uma casa sem dono. E penso no que posso fazer para mudar o quadro. Então, criámos esta escola para multiplicar o conhecimento, dando aulas naquilo que é necessário para o país, ou seja, técnicos para o sector do abastecimento de água, dos resíduos sólidos e dos esgotos.


Luanda não está a conseguir inverter as makas do saneamento?


Nós, como especialistas, temos uma solução que passa por estruturar isso.


Por onde começar?


Vamos por partes: em Luanda, não temos água, mas temos dois rios, o que significa haver potencial hídrico que pode ser transformado em disponibilidade hídrica. Ainda que não tivéssemos rios, estamos numa região de chuvas constantes.


Então sugere o aproveitamento da água das chuvas para abastecer a cidade?


Luanda, no período chuvoso, em uma hora de chuva, passa pela sua plataforma mais de 200 milhões de metros cúbicos de água. Se engendrarmos projectos estruturantes, a água das chuvas acaba por ser suficiente para abastecer a cidade. Mas vamos ignorar as chuvas e buscar o potencial hídrico que temos, ou seja, o Rio Kwanza que debita para o oceano cerca de um milhão de metros cúbicos de água por segundo e o rio Zenza, a Norte, que debita 450 metros cúbicos por segundo. Então, para transformar esse potencial hídrico em disponibilidade hídrica, temos de trazer esse manancial para dentro.


Daí o ‘Projecto do Rio Luanda’. Não é oneroso?


Se é oneroso não é um problema. Com as dificuldades por que passamos por falta de água perdemos muito mais do que isso. Aliás, acredito que  se lembra: o Cazenga era chamado zona industrial, o mesmo que Viana. Essas zonas industriais deixaram de existir por falta de água. Está a ver o que perdemos? Logo, as fábricas que estavam no Cazenga e na baixa transferiram-se todas para as margens do Rio Kwanza.


Para conferir melhor qualidade de vida...


Todas as cidades do mundo desenvolvem-se próximas de um manancial. Quando se projectou a cidade de Luanda, pensou-se na possibilidade de se ir buscar água destas fontes. Porém, uma vez que o Rio Kwanza fica muito longe e era necessário desenvolver a zona industrial de Viana e a zona agro-pecuária, trouxe-se um canal, o do Kikuxi, que terminava em Cacuaco e na 'ponte molhada' do Benfica. Como a zona de Viana e Cazenga, Cacuaco e Benfica eram igualmente industriais e agrícolas, havia muitas bacias de retenção e, quando caíssem as chuvas, o caudal das águas pluviométricas se dispersava para essas zonas, aproveitando-a para as fábricas e o gado. Com a ocupação desmedida da cidade, muitos desses cursos de água foram obstruídos e a água deixou de ir para lá. Como resultado, faz um retorno na bacia do Coelho e apanha a linha antiga, o chamado Rio Cambamba, muitas vezes, provocando inundações.


O que fazer?


Se queremos realmente desenvolver a cidade, temos de refundá-la. Começando pela estruturação do saneamento básico. Senão vejamos: estamos numa sala, mas, se o saneamento básico não for bem feito, ninguém fica nela. Luanda hoje ficou como um edifício bonito, mas sem casa de banho. Se não construíres no começo da obra a fossa, depois não terás espaço para construí-la. Aí, a casa perde valor.


Aí está a importância do saneamento básico. Temos prédios bonitos, do primeiro nível, mas, quando chegam as chuvas, perdem valor.


O Rio Luanda resolveria o problema das inundações?


Lógico, porque foi pensado por hidráulicos, pessoas que têm responsabilidades. E ele não é o fim da coisa, mas o princípio de uma revolução sanitária. Há um princípio básico a traduzir que as águas das chuvas não devem percorrer longas distâncias, porque depois criam o problema de inundações e alagamentos. Existe o que se chama microdrenagem a partir dos locais onde a água se forma, nos quintais e depois vai para as sarjetas e, por tubagem subterrânea, é encaminhada para outra rua. A partir desta, porque a tubulação é maior, começa a macrodrenagem. Mas é importante que essa água encontre uma bacia de retenção, próxima, onde descarregue. Quando esta encontra uma bacia de retenção, o tubo fica vazio e tem capacidade de receber outras águas. De acordo com o Projecto do Rio Luanda, podemos ter uma bacia em vários bairros, sendo preciso calcular o período de retornos, quando há chuvas de grande intensidade.  No Coelho, como não havia um dispositivo para esvaziar, a água transbordava, tornando a zona intransitável. Quando isso acontece, precisamos de unir várias bacias até chegar a um rio ou ao mar. Com os cálculos do volume de água, estaremos a fazer um rio seco que só funciona no período chuvoso, mas com a particularidade de que, quando as chuvas pararem, se fica com reservas de água. Era assim que as coisas funcionavam na época colonial.


Nessa altura, não havia muita gente em Luanda...


Acha que Luanda tem mais pessoas do que Nova Iorque, nos EUA? Não! O problema está apenas na estruturação da cidade.


Quer dizer que as infra-estruturas não acompanham o crescimento demográfico…


Porque os técnicos observam as coisas a andar, mas não intervêm. O próprio Estado perdeu autoridade. Podemos ver um cidadão a construir no meio da estrada e, às vezes, o administrador acha que o problema não é dele, que a resolução tem de vir de cima. Mas com isso estruturado, beneficia o cidadão. O que o Governo está a fazer é movimentar pessoas de zonas de perigo como na Boavista para uma urbanização no Malueke. Está a fazer bem ou mal?


O que pensa?


Acho que está a fazer muito bem, porque, no período de chuva, quantas pessoas perdem os bens, morrem electrocutadas e não conseguimos ir ao trabalho porque as ruas ficam intransitáveis, sabe quais os danos para a economia, para a saúde e para o 'stress'? Então isso não tem peso? É preciso acabar com essa anomalia recorrendo à estruturação da cidade. Veja que temos os bairros todos inundados. O que há em cada casa é uma fossa e um tanque de água. Já imaginou o problema de saúde pública se a água da chuva inundar a fossa e o tanque de água? Então os técnicos ligados a essa área não têm de pensar? Vamos falar só de dinheiro?


Porque a municipalidade  está em falta, daí as construções anárquicas que vemos…


Aqui, o problema é técnico. Os técnicos ligados a esta área têm a obrigação de auxiliar o Governo e este deve ter a sensibilidade de olhar onde pode vir a solução.


Mas os especialistas são ouvidos ou não pelo Governo?


Nós estamos habituados a comprar projectos. Muitos dos nossos projectistas não são daqui. Fazem os projectos num determinado pedaço de terra e quando chegam não estão articulados com outras zonas.


Ainda sobre o Rio Luanda, este também receberia as águas residuais, tornando-o pestilento, não?


Quem disse que as águas fecais vão ser canalizadas ao rio?


Não?


Angola está inserida em determinadas convenções internacionais. Uma delas estabelece metas no desenvolvimento humano até 2030 e ressalta que ‘temos de ter um saneamento seguro’. Infelizmente, não temos uma lei do saneamento básico. Temos apenas alguns decretos presidenciais, com determinadas obrigações. Mas as leis de alguns países preocupados com o ambiente exigem que as zonas urbanas e as indústrias não podem depositar águas residuais num corpo de água sem antes passarem por uma estação de tratamento. O decreto 261 fala um pouco disso, mas não define quem deve tratar. Portanto, se não tratarmos dos esgotos, estaremos a proliferar doenças.


Não tratamos dos esgotos, porque não damos valor aos técnicos desta área. Já viu o que se passa em Talatona, próximo da pastelaria ‘Vanan’, ou mesmo nas ditas centralidades? É um desastre!


Mas pensa que s técnicos também não se fazem sentir?


Eu sou um deles.


Sente-se marginalizado?


Começo a sentir-me incompreendido, mas sou fruto de uma bolsa de estudo do Estado. Só terminei o curso, porque gosto de saneamento. Mas note que os poucos quadros formados a esse nível, desanimados, preferiram trabalhar em outras instituições como petrolíferas, só para citar esse exemplo. Decidi dar continuidade ao que gosto de fazer e, por isso, investi na formação de técnicos em hidráulica para pô-los à disposição do país. Mas caminho para a reforma e também ficarei por cima do muro.


Voltemos à questão financeira. Admite que a construção do Rio Luanda implicaria investimentos avultados, certo?


Os custos não são mais do que as despesas que temos tido. E os ganhos estão numa melhor saúde pública, num maior desenvolvimento industrial, e numa maior felicidade das pessoas. O Rio Luanda já existe. O traçado já existe e termina no Kikuxi. A ocupação dos terrenos é que o desvirtuou. Então, nós queremos aumentar as suas 'performances', para servir de reserva de água, porque Luanda está a crescer muito. E não podemos sempre que precisamos de água na baixa ir buscá-la ao Kikuxi. Isso não é possível.


E quanto isso custa?


Digamos que seriam deslocadas cerca de oito mil casas, para as quais se gastaria, com o reassentamento das famílias, 500 milhões de dólares. Outros 500 milhões de dólares seriam para a construção do rio.


Mas deixe-me dar mais um exemplo. Luanda não tinha energia. Era um caos. O que o ministério de tutela fez foi construir a barragens no Rio Kwanza. Mas de Malanje ou Cambambe (Kwanza-Norte) para Luanda chega apenas energia bruta, porque os postos de transformação e distribuição estão aqui. Com a água, o processo é mais ou menos similar, ou seja, trazer água bruta à disposição nos bairros. Se surgir uma fábrica hoje vai buscar energia no cabo de alta tensão, não de baixa. Só que quando construímos estações de tratamento de água na periferia, e depois vamos colocar tubos para levar água, se de repente for erguido um novo prédio alto, o tubo que traz água já não terá capacidade de o abastecer.


Daí ser tratado como rio...


Precisamente! Estamos a chamá-lo por rio e não canal por causa da dimensão que pretendemos e a discussão está aberta porque ainda não concluímos o projecto. Hoje, o canal do Kikuxi debita 450 mil metros cúbicos de água por dia. Queremos chegar até um milhão de metros cúbicos de água por dia. Além disso, queremos construir o ‘Luanda’, em forma de reservatórios para acumular três milhões de metros cúbicos de água. De resto, reitero que o rio pode servir para o turismo, para fazer praias. Se surgir uma proposta neste sentido, não vamos cimentar em determinado troço, dependendo do tipo de solos e da envolvência. O rio pode servir de parque natural; aí criamos mata, ou ainda para embelezamento da cidade. São, portanto, ‘ene’ valências. Precisamos de falar com as entidades para darem a sua contribuição.


O que falta para esse diálogo com o Governo?


Algumas entidades têm-nos recebido.


E qual tem sido a resposta?


A maior dificuldade que temos no nosso trato é mesmo o sector das águas.


Refere-se ao Ministério da Energia e Águas?


Estou em crer que algumas entidades poderiam dar um contributo maior, mas estão apreensivas, porque o Ministério que devia ser o nosso trampolim de apoio é o que mais costas nos dá. Mas também não tem solução e nunca haverá, enquanto não estruturamos o saneamento e este, por sua vez, não se vai estruturar, enquanto não tivermos um corpo hídrico de grande dimensão, onde possamos encaminhar água rapidamente.


Hoje, na Europa, em função das mudanças climáticas, está a chover mais do que o previsto. Imagine que aconteça o mesmo aqui, em Angola. Será um caos. Logo, a função do rio é mesmo essa: evitar que as águas atinjam a baixa e ao mesmo tempo insuflar desenvolvimento. Nota-se, infelizmente, que se está a dar maior privilégio à construção de edificações do que de infraestruturas. Muitas vezes, chamei a atenção que determinados viadutos em Viana estavam a fechar linhas de água.


Foi ouvido?


Não. E, como resultado, temos o Zango 0 na condição em que se encontra.


Como está?


Acha que ali, naqueles prédios, há qualidade de vida? Quando os edifícios estão num ponto alto, mas não têm por onde escoar. É um grande problema.


Foram construídas bacias de retenção de águas fecais com processos de tratamento?


Aí é onde reside o problema: estas bacias foram mal pensadas e construídas.


Como devia ser?


Temos o Decreto Presidencial 261. Diz que as águas fecais não devem ser depositadas em centros urbanos. Mas infelizmente é o que está a acontecer. Como é que um depósito de águas fecais é colocado no meio de casas? Então o que deve haver é um projecto de tratamento de águas de esgoto. Em determinadas centralidades, como a do Kilamba, até existem. Será que funcionam? Não! Portanto, do nosso ponto de vista como técnicos, não passa só pela construção do Rio Luanda, mas pela oportunidade para discutir a problemática do saneamento básico. Se não servir para nós pelo menos estruturamos para que sirva às futuras gerações.


Mas o rio Cambamba também é parte do canal do Kikuxi e, além da água das chuvas, recebe a dos esgotos?


Isto acontece quando a sociedade não tem leis de protecção do ambiente, porque não há normas. O esgoto começa a ser tratado lá onde é produzido. Nos próprios edifícios, devíamos ter pontos de tratamento de águas residuais antes de serem colectadas para outros corpos maiores, onde também pode sofrer outra transformação e se possível ser reaproveitada para vários fins. Não podemos transformar o Kilamba nisto?


O que lhe parece?


Estamos a demorar muito a pensar. Está a ver ali no Vitória Garden, na via expressa, aquela água putrefacta? As pessoas usam esta água bruta dos esgotos que não se sabe se é da lavagem dos mortos e então estamos a consumir o tomate e a couve que vem dali sem sabermos da composição química. É um atentado à saúde pública.


O instituto tem quantos formados?


Este é o segundo ano com finalistas. No primeiro, tivemos 60 finalistas, neste segundo ano não fugimos muito deste número. O curso médio tem duração de cinco anos, mas os alunos adquirem valências para o autoemprego. Temos alunos que foram requisitados por algumas universidades, incluindo a UAN por causa do nosso perfil. Assim eles acabam por dar continuidade à sua formação. Mais ainda somos a única escola ligada ao saneamento básico em Angola, porém, a minha felicidade seria se a escola estivesse cheia, mas não.


Porquê?


Os pais não se sentem bem a mandar para aqui os seus filhos, porque acham que não dá lucro. Não há motivação, porque as empresas do saneamento básico não funcionam. Logo, quem deve olhar para nós é o sector público. Se não tivermos indivíduos virados para a área ambiental, a qualidade de vida vai-se degradando, por falta de  normas e legislação adequada. É já um pandemónio. A área do ambiente é muito importante e transversal, porque até a construção de estradas tem sido feita aleatoriamente e a requalificação urbana tem sido feita sem regras. Daí o motivo do nosso caos. É preciso respeitar a topografia e o estudo da hidrologia. Quando esquecemos isso, tornamos os assentamentos humanos em autênticos depósitos de água. Aliás, na maior parte da cidade de Luanda a estrada é construída ao nível da janela, fechando as linhas de água. Por não ter escapatória, acaba por inundar a casa do cidadão.


Teremos o metro de superfície numa cidade com problemas de saneamento…


Estou de acordo. Gosto destas grandes obras, mas uma atenção: não temos espaço estruturado de forma a garantir que o metro circule à vontade. No período chuvoso, como é que vou sair da minha casa aqui e apanhar o metro ali se tudo fica inundado? Primeiro, temos de pensar na macrodrenagem para não perigar o que pretendemos pôr à superfície.


Não há vontade de se fazer bem as coisas?


Quem se aproveita hoje da água do Kikuxi são os chineses, que montaram aí uma série de fábricas de engarrafamento de água mineral. Tem de haver leis que proíbam a utilização da água bruta, mas, para isso, é preciso dar alternativas. Porque a lei diz que temos de ter estações de tratamento de águas brutas e tem de haver fiscalização ambiental.


Mas há falhas na aplicação dos instrutivos...


Esse é o problema. Há pessoas, com determinadas posições, que querem falar em nome dos outros daquilo que não sabem.


Ou seja, o arquitecto idealiza, mas precisa que o engenheiro hidráulico estruture. Aqui, por falta de especialistas, pensamos que um indivíduo por ser engenheiro ou doutor sabe tudo, quando não é bem assim. Digo mesmo que o sector das águas está extremamente atrasado. É mais fácil, no âmbito do Ministério, formar técnicos em energia, mas, quanto às águas, não formamos ninguém. Por isso é que o sector das águas está limitado, por falta de pensamento. Como é que vamos crescer se há indivíduos que acham que o nosso pensamento do Rio Luanda é uma loucura? Não posso fazer irrigação com água potável, porque esta tem cloro que pode prejudicar as plantas. No meu ver, o sector das águas devia estar separado da energia porque está muito atrasado. Nesta lógica, teríamos um Ministério das Águas e Saneamento.


Perfil


Dedicação à engenharia hidráulica


Licenciado em Engenharia Hidráulica e Ambiental na Ucrânia, em 1996, Francisco Lopes dos Santos nasceu no Gulungo Alto, no Kwanza-Norte, em 1965. “Estou no sector há mais de mais de 25 anos e, por isso, poderia contribuir mais. Aliás, esta escola privada deve ser a única no país, mas seria bom se houvesse uma pública com esse perfil. Se o Governo quiser, estaremos aqui para ajudar”, destaca. É PCA da Kamaris, gestão de águas, empresa que detém, entre outros negócios, o Instituto Médio de Gestão de Águas  e Preservação Ambiental (Imenha).


Valor Econômico 



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