Membassoco: Aqui se decidiu a batalha do Huambo em 1993/ Jaime Azulay In Memórias



Dedicatória:


Em memória do malogrado major “Ngurra”. Os nossos caminhos nunca cruzaram naqueles tempos difíceis da guerra. Mas ouvi os seus feitos das bocas dos próprios soldados que ele comandou durante os 56 dias. Tombou no Huambo no cumprimento do dever sagrado. Para que a pátria nunca esqueça os seus filhos!


       Em 1993 os dias corriam pesados com o descompasso causado com os sucessivos avanços e recuos da guerra. De Norte a Sul e do mar ao Leste, várias localidades  sangravam com o matraquear das armas ligeiras, o voraz fogo dos canhões e os bombardeios dos aviões. Era um tempo em que sopravam os ventos do terror e do medo. Por todo o lado ecoavam os gritos ao desmembrarem-se implacavelmente milhares de famílias. Era também a época das grandes decisões da Historia de Angola, nas quais se destacaram homens de tempera e de excepcionais qualidades.              


   

       Desde o início de Janeiro, concretamente a partir do dia 9, depois de um Natal e fim de ano vividos na ansiedade e na angustia, a cidade do Huambo entrou num clima de ferro e fogo. Duas semanas de combate depois, as forcas do governo experimentavam serias dificuldades por falta de logística. Foi assim que se decidiu organizar uma coluna de abastecimento e reforços a partir da cidade de Benguela, no litoral centro do país. A coluna chegou a cidade ferroviária do Cubal com o mínimo de baixas.

          Ficamos alguns dias acampados no topo da pequena pista de aviação que corta a urbe, numa tenda onde estava instalado o major Camberra, um veterano das guerras dos anos oitenta no Kuando-Kubango. A uns trezentos metros estava uma posição de tiro de um lanca-fogutes BM-21 que ia vomitando as suas cargas mortíferas para leste no sentido que a coluna tomaria em direcção ao Huambo. 

          No final duma tarde chegamos ao pequeno aglomerado do Membassoco, comuna pertencente ao municipio do Cubal, uma antiga região de cultura do  sisal, situada a cerca de 160 quilómetros à Leste da cidade de Benguela. A nossa gigantesca caravana chefiada pelo comandante Lili-Vali e seu adjunto Victor  estacionou próximo à estação ferroviária, na estrada que liga ao Huambo, onde se combatia encarniçadamente dia e noite na conhecida Batalha dos 56 dias (a Unita disse terem sido 55 dias).

          Em 1991, o governo angolano tinha desmobilizado as FAPLA por força de acordo de Paz com a rebelião armada da UNITA assinado em Bicesse. À revelia do acordo, a UNITA escondera matreiramente o seu exército da supervisão da ONU e iniciou um ataque contra a capital do planalto central. No Huambo as coisas ficaram complicadas para o pequeno efectivo das forças governamentais que rapidamente foram confinadas para um pequeno reduto da parte alta da cidade. Os comandantes pediam desesperadamente reforços ao governo central, mas em nenhum lado havia tropas para enviar. Foi quando os generais Luís Faceira, Violência, Armando da Cruz, organizaram um contingente de antigos soldados das FAPLA e outros voluntários na província de Benguela. Viaturas civis foram adaptadas às pressas para o combate e uma logística foi carregada em camiões. A caravana saíu do quartel do CIRM em Benguela rumando inicialmente para Sul, em direcção à Katengue. Na estrada, a coluna começou a enfrentar guerrilheiros da Unita emboscados nos matagais e montanhas que ladeiam a via. 

          O destino traçado era o Huambo. Íamos nos juntar aos camaradas que lá estavam a lutar desde a tarde do dia 9 de Janeiro. A tropa chefiada pelos generais Ngueto e Sukissa batia-se para a cidade não ser tomada pela Unita que era comandada pessoalmente por Jonas Savimbi.

          No Cubal encontramos amigos jornalistas, o falecido Celestino Mota da RNA, o Aurélio Boaventura da TPA. Eles também queriam ir para o Huambo. Ficamos alojados na tenda do major Camberra, veterano da guerra do “Kapa-Kapa” dos anos oitenta. Voltara a envergar a farda para cumprir o seu dever como militar. Camberra viria a morrer semanas mais tarde, num triste episódio ocorrido em Caimbambo, quando travou um duelo com o seu guarda-costas por ciúmes. Ambos dispararam ao mesmo tempo e dias depois recebemos na pista da Catumbela os dois corpos embrulhados em cobertores, lado a lado. É um episódio incrivelmente dramático que contarei noutra ocasião.

          Na tenda do major Camberra, onde estávamos acampados no início do mês de Fevereiro de 1993, havia uma viola que ele nunca abandonava, conforme nos disseram os guardas. Depois do jantar, juntamo-nos e eu peguei na guitarra do major do Camberra. Tocámos canções patrióticas bonitas. Os colegas da TPA filmaram aquele momento incrível, mas as cassetes hoje já ninguém sabe onde elas estão. As fotos que sobreviveram foram tiradas pelo Marco Vercruysse que também ficou com alguns rolos meus. Como já se falava na sua evacuação, pedi-lhe que os deixasse no Jornal de Angola, o certo é que nunca mais os vi. Nos continuaríamos na coluna. Estávamos decididos a tudo para chegar ao planalto central. As canções que cantávamos levantavam o nosso moral. Com o som da viola do major Camberra,  os soldados começaram a bater com as mãos nas cartucheiras de peito e o chocalhar das balas fazia assim uma precursão de batuque e dikanza. Foi mesmo assim que tudo aconteceu. 

          Numa manhã cinzenta ouvimos o estrondo do BM-21 a disparar muito próximo de nós. Saí da tenda e olhei a posição dos canos da rampa que estava a lançar os foguetes. Calculei que, em linha recta, o alvo deveria estar a uns 10 ou 12 quilómetros do local em que estávamos. No decurso da guerra, a preparação de artilharia sempre precede uma movimentação de forças. Naquele dia não seria diferente. Não tardou para as coisas se precipitarem. Pouco tempo depois recebemos ordem para embarcar nos camiões e fomos nos juntar ao restante da caravana que estava a organizar-se na saída da estrada para a Ganda. Eram mais de uma centena de veículos com munições e logística diversa para reforçar as forças governamentais no Huambo. Acampamos um pouco depois de passarmos a vila ferroviária de Marco de Canavezes, num local chamado Membassoco. Eu sabia que neste local a UNITA tinha destruído a última composição do CFB que tentou atingir o Huambo no início dos anos oitenta. A partir desse dia o comboio nunca mais passou para o Huambo.

          As tropas fizeram um cordão de segurança dos dois lados da estrada. O comandante era o Primeiro Super-intendente Lili-Vali , um “kwanhama” de porte atlético e poucas falas. O segundo comandante era o Super-intendente Victor, um tropa simpático com barbicha farta e pernas arqueadas. Entregaram-nos ração fria e já não estava permitido fazer lume. Ouvíamos tiros esporádicos e rajadas de metralhadoras.

          Lá pela madrugada, inesperadamente começou a cacimbar. Era um cacimbo de aviso que o inimigo estava perto, conforme alertaram os tropas que conheciam os segredos da guerra. Mal despontaram os raios do amanhecer, a coluna começou a tocar (andar na linguagem militar). Como disse, estava connosco um jornalista belga, o Marco-Vercruysse. Os comandantes não queriam que o estrangeiro avançasse mais para o interior, por causa do perigo que havia nessa viagem. Entregaram-me um veiculo blindado BTR com uma guarnição para eu regressar com o belga para o Cubal, a fim de ele ser evacuado no primeiro helicóptero para Benguela.

          A coluna só andaria mais uns poucos quilómetros. Foi surpreendida por fogo de canhão B12 e um ataque de comandos. Iniciava assim o combate com forças da Unita emboscadas na zona do Calondende. Gerou-se um pandemônio danado. Os camiões articulados, Scania 111 da BCA ficaram atravessados na estrada abandonados pelos motoristas civis que ficaram assustados com as explosões e fugiram para o mato. A manobrabilidade dos veículos de escolta ficou comprometida. As viaturas blindadas com os AGS-17 e os camiões DAF com as super-metralhadoras ZU-23 ficaram impossibilitados de abrir fogo por falta de espaço de manobra. 

          De forma surpreendente, o comandante da coluna Lili-Vali é atingido à queima roupa por um comando da Unita e é deixado abandonado pelos seus guardas tomados pelo pânico. O meu companheiro Kito Neves consegue arrastar o corpo do Lili-Vali para dentro do BTR e de arma em punho obriga o condutor a manobrar o blindado para levar o comandante ferido para o Cubal. 

          Na coluna instalou-se o caos geral. Já havia soldados da UNITA a progredir no meio dos carros. O segundo comandante Victor que substitui o ferido Lili-Vali, encontra serias dificuldades em articular o seu pessoal com a força de vanguarda comandada pelo então major Ndalu (homem valente, hoje brigadeiro) que estava com 10 viaturas no reconhecimento combativo profundo. Ndalu abriu fogo cerrado provocando muitas baixas entre os atacantes. Ele tinha uma SVD russa nova em folha que mais tarde me ofereceu com o mesmo gesto fraterno como agora se oferece uma caneta ou uma gravata a um amigo no dia do seu aniversário. 

          A Unita apoderou-se de grande parte do equipamento, incluindo camiões totalmente carregados com logística da BCA, armas e milhões de munições. O que sobrou de homens e meios reagrupar-se-ia novamente no Cubal, mas já sem o poder combativo para enfrentar a UNITA no planalto central. Pouco tempo depois teríamos a UNITA a empurrar-nos do Cubal para Caimbambo. Havia muita desorganização e pânico e já não era possível aguentar a cidade sob controle para acolher o nosso pessoal do Huambo que estava a caminho após terem deixado a cidade nas mãos do Dr. Savimbi.

      Quando nos juntamos em Caimbambo a reavaliação da situação permitiu concluir que  pior foi o que aconteceu em Calondende e tal facto teve uma influência decisiva no desfecho da batalha do Huambo. Após ter capturado os nossos veículos na emboscada do Calondende, a UNITA rumaria imediatamente com eles para o Huambo e em poucas horas lá chegou. Os nossos combatentes do governo quando ouviram o ronco dos motores e viram a coluna a entrar pela Caála pensaram tratar-se dos reforços salvadores. Só deram conta da inesperada e trágica realidade quando viram as temíveis  ZU-23 e AGS-17 a vomitarem-lhes em cima o fogo mortal das suas entranhas. 

        Jonas Savimbi ganharia mais uma batalha no Huambo. Mas a guerra continuaria e após um ano completo de uma ofensiva de peripécias inenarráveis, o Vº Agrupamento das Forcas Armadas Angolanas comandada pelo então brigadeiro José Manuel de Sousa entrava vitoriosamente no Huambo. Era Novembro de 1994.




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