"Quando a revolução vingar
E as reformas se impuserem
Proletário povo de Angola
Avante! Avante!
Cultivar café
Algodão
E de Cabinda ao Cunene
Remover Montanhas
Florestas
Viva, viva, viva, viva!
Viva o MPLA!
Nem um ano tinha passado ainda da proclamação da independência nacional. Éramos jovens e destemidos. Pobres e sonhadores. Venerávamos os heróis tombados na luta de libertação e nos tornamos devotos seguidores do nosso presidente, o Dr. António Agostinho Neto. Numa palavra, sintetizávamos o combustivel ideal para avançar a máquina da revolução do poder popular que estava em curso. Mais uma vez, estávamos de mochilas às costas e novamente nos era pedido para avançar.
Os cafezáis nas encostas montanhosas que circundam a Chicuma, distante cerca de 70 quilómetros da cidade da Ganda, confinando com Caluquembe e Chilata, eram o nosso próximo destino.
Teríamos de atingir decididamente o nosso objectivo, fosse como fosse, ainda que tivéssemos de remover montanhas, como dizia a letra do nosso hino proletário. Durante certo tempo, viveríamos da mesma forma simples como viviam os camponeses explorados da Chicuma. Mostraríamos ao mundo a nossa incondicional devoção à causa revolucionária e, num extremo ritual de purificação, com as nossas próprias mãos, gretadas e dilaceradas, colheríamos os bagos vermelhos dos cafeeiros, isso seria o nosso contributo para ajudar a economia de Angola a reerguer-se e nos sentirmos revolucionários.
27 de Julho de 1976. Esse dia calhou numa terça-feira do calendário gregoriano. Recordo-me bem da data, porque acontecia nessa semana o matrimónio da mais alta individualidade da província de Benguela, o Comissário Estêvão Gungo Arão, acabado de ser nomeado pelo presidente Agostinho Neto. (Arão casava com uma prima minha). Do pouco que conheci, ele era um homem culto e bem parecido, quase sempre vestido com um bubú africano de tons vivos e alegres.
A primeira vez que vimos o nosso comissario provincial foi num comício, quando o apresentaram à população. Quem o acompanhou para Benguela, após a nomeação, foi o então ministro da Administração Interna, o comandante Nito Alves. Tínhamos sido mobilizados a partir das escolas. O que nos espantou, foi que Nito Alves, de forma inesperada, resolveu realizar o comicio no período da noite, o que não era normal. O habitual eram os atrasos nos horários para iniciarem as actividades revolucionárias.
Naqueles tempos, eu acreditava piamente que eram incontornaveis razões de segurança que levavam os chefes a sempre chegarem atrasados às actividades que eles próprios programavam. Com o mesmo desencanto de um garoto que vê quebrado o seu brinquedo de estimacao, só muito mais tarde é que descobriri que, enquanto as massas ficavam horas e horas esperando ao sol inclemente, os “muatas” estavam refastelados nas poltronas das salas de estar, gargalhando piadas de caserna e tomando do bom whisky escocês.
Após uma longa espera, vimos repentinamente Nito Alves assomar à varanda do edifício do palácio, ladeado pelo comissário Estevão Gungo Arão. O ministro cerrou os punhos para a multidão excitada e gritou com firmeza:-“Um só povo! Uma só Nação! A Luta Continua, a Vitória é Certa!”- de seguida desfiou um discurso flamejante, muito aplaudido pelo pessoal espalhado pelos jardins e relvados da antiga casa dos governadores coloniais do distrito de Benguela.
Um ano depois, estes dois homens partilhariam um trágico destino: em Maio de 1977, Nito Alves seria acusado de liderar, em Luanda, uma intentona golpista contra o presidente Agostinho Neto.
Durante a revolta, a radio nacional chegou a estar momentaneamente nas maos dos revoltosos mas tinha sido retomada com a intervenção de militares cubanos que se encontravam em Angola. A intentona fracassara mas o que se seguiu foi um autêntico banho de sangue. Na sequência de uma implacável purga interna no MPLA, Estêvão Gungo Arão seria igualmente detido e nunca mais a família o veria, nem vivo nem morto. Nito Alves, por seu lado, seria executado após ter estado a monte durante algum tempo nas matas à Norte de Luanda, onde estava instalada a Primeira Região da guerrilha anti-colonial do MPLA.
Naquela manhã cinzenta de Julho, típica da época de cacimbo, o comboio do CFB com as ruidosas brigadas de estudantes a bordo, partiu da velha estação, descreveu a curva do Quioche e cruzou a ponte do Cavaco. Durante 15 minutos a locomotiva diesel-eléctrica esgueirou-se por uma galeria entre o canavial da açucareira e a estrada asfaltada, ladeada de palmeiras de dendêm, até chegar ao nó da estação do Negrão.
Enquanto circulávamos pela zona do Capiandalo, o Pina disse-me ao ouvido que levava na bagagem uma lata de leite “Nido” abarrotada de apetitosos torresmos feitos por sua mãe e deu-me um a provar. Triturei a iguaria de uma dentada e deixei a prazerosa gordura desfazer-se lentamente na boca.
-Guarda bem isso rapaz, que vamos precisar nas emergências, disse-lhe ao que o Pina retorquiu com espanto:
-Emergências? Vamos ter emergências?- Depois da pergunta o Pina riu-se tentando adivinhar alguma premonição nas minhas palavras.
Em todas as carruagens o ambiente era de festa entre os brigadistas recrutados nas escolas. No entroncamento do Negrão, os maquinistas iniciaram as manobras. Após acoplar com outra composição oriunda do lobito e lotada com estudantes daquela cidade, o trem inicou então a viagem para Mariano Machado, à Leste, utilizando a nova ferrovia da Variante do Cubal.
Os tempos vividos naquela altura eram de autêntica euforia. A independência tinha sido proclamada poucos meses antes e o estribilho de que estava a ser forjado o paradigma de um Homem Novo em Angola espalhou-se por cidades e aldeias. Nós estávamos inseridos de corpo e alma no processo.
A participação de estudantes do secundário e dos liceus na campanha de colheita de café, pelo seu intrínseco simbolismo, funcionava como a confirmação de que um novo conceito de política havia- se incorporado na vida dos angolanos e ninguém podia distanciar-se dele. A divisa era clara nos discursos dos lideres da revolução do poder popular e nos slogans do movimento : -“quem não está connosco está contra nós”. Assim eram rotulados os contra-revolucionários, uma casta à qual era necessário dar combate já e agora.
Assim, fechava-se o espaço para aqueles que pretendiam manter uma neutralidade, de certo modo interesseira, pois, sempre dava jeito estar em cima do muro, caso ocorresse uma nova mudança no poder. No entanto, para estes, a cartilha marxista-leninista que nos era inculcada ate a exaustão, tinha uma resposta implacável: com o aprofundar das contradições resultantes da luta de classes, os indecisos não exitarão, mais tarde ou mais cedo, em juntar-se à contra-revolução interna e externa e virar as armas contra o nosso povo.
Os eventos sucediam-se com grande impacto sobre todos e sobre tudo. O acontecer nacional fervilhava, com a revolução a afirmar o seu carácter selectivo, rejeitando os que vacilavam em dar a sua contribuição no momento em que fossem solicitados pelas chefias e seus mandatários.
Ainda em Novembro de 1975 começaram as nacionalizações de tudo quanto o colono tinha deixado. O rol patrimonial ia desde as empresas, armazéns e lojas de bairro, até aos luxos imobiliários mais abastados, que rapidamente ficavam sob tutela dos comandantes e dos chefes revolucionários. Os legítimos representantes dos operários e camponeses não se faziam rogados em desfilar com os BMW, Mercedes, Audi, pertença dos odiados colonos em debandada.
Pelo que víamos, mas nao nos apercebíamos na altura, era que, neste capitulo, as preferencias de alguns dos comandantes revolucionários e dos contra-revolucionarios burgueses pelas mordomias materiais e outros luxos, não conflituavam entre si, aliás, na pratica pareciam coincidir plenamente .
Os proprietários que tinham optado por permanecer no país eram sistematicamente solicitados em “dar a sua contribuição”. À torto e a direito requisitavam-se compulsivamente viaturas particulares, quando fosse necessário cumprir qualquer tarefa politica, desde os intermináveis comícios, as buscas, as rusgas e as mais diversas campanhas, para as quais se tivesse de movimentar as massas proletárias.
AS PRIMEIRAS REVOLTAS
-“Camaradas, vamos mostrar aos contra-revolucionários e aos capitalistas a força da nossa juventude e o carácter socialista do nosso processo, com a consolidação da aliança operário-camponesa, como disse o camarada presidente”, gritou um responsável da JMPLA no rescaldo da primeira revolta estudantil junto à cozinha do acampamento, devido a falta de comida.
Na Chicuma, já há alguns dias, os armazéns de víveres estavam às moscas, em consequência, as panelas tinham ficado vazias. Milagrosamente, a lata de torresmos do Pina continuava apetrechada e com uma cotação bastante alta. Com os torresmos conseguíamos adquirir cigarros, pasta dentífrica ou umas colheres de açúcar. Certa vez, o Pina foi jogar batota às cartas e, em vez de dinheiro, propôs bancar na mesa de aposta os seus deliciosos torresmos. A proposta seria aceite, após uma prolongada discussão a fim de se atribuir uma cotação a cada torresmo, que, para complicar, não eram todos do mesmo tamanho.
Nesse dia da revolta, havia centenas de brigadistas enfileirados defronte à cozinha, com pratos e canecas a tilintar nas mãos. Rapidamente gerou-se um tumulto generalizado, que teve o condão de abrir a porta a outros que se seguiriam no aglomerado de edificações ajardinadas, com uma ampla piscina. A herdade pertencia a um abastado industrial alemão que tinha fugido da guerra e tudo tinha ficado abandonado.
O micro-clima da Ganda atraira desde os anos da década de 60 uma colónia alemã que se instalou na região criando extensas fazendas de café. Em 1973, Angola tinha sido o terceiro exportador mundial de café. A idéia dos lideres revolucionários, era de que se com o colono tinha-se atingido aquela cifra, agora, que trabalhávamos para nós próprios, poderiamos com muita facilidade pulverizar a producao conseguida pelos colonos portugueses.
Na revolução não havia meio-termo. Era época de tudo mudar, obsessivamente. Revirar tudo o que tinha sido herdado do colono, até a maneira de pensar das pessoas. A ninguem admirou que, no fervor da mudança radical do sistema, começaram a acumular-se erros atràs de erros. O movimento de rectificação lançado pelo movimento, por si só, não conseguia pôr cobro às correcções que se impunham. A própria abordagem da revolução, sobre as soluções a adoptar para solucionar os problemas políticos, económicos e sociais estava impregnado do espírito romântico e temerário trazido das matas pelos guerrilheiros barbudos.
A campanha do café na Chicuma e Babaera, para onde foram encaminhados milhares de estudantes em situação de segurança e logística periclitantes, viria a mostrar que não bastavam as nobres intenções dos líderes do país ou aspirantes a isso, para fazer avançar a economia e, por via disso, melhorar as condições de vida das pessoas. A reforma agrária dava mostras de sucumbir mesmo antes de ser parida. O que estava no papel discursivo dos chefes, não passaria disso mesmo. Na prática, revelavam-se acções atabalhoadas e paranóicas, visando supostamente revolucionar até a própria consciência nacional.
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