África do Sul e de todos os riscos- Jonuel Gonçalves



Responsáveis da Agência de Segurança do Estado, na África do Sul, afirmam que funcionários da própria agência, simpatizantes do ex- Presidente Jacob Zuma, podem estar envolvidos nos tumultos em curso no país ( https://www.publico.pt/2021/07/12/mundo/noticia/protestos-prisao-jacob-zuma-provocam-seis-mortos-1970127  ) . 

Esta afirmação revela a profundidade da fratura a vários níveis do Estado sul-africano adicionada a idêntica situação no ANC, onde vários dirigentes de topo – incluindo o secretário-geral – estão suspensos enquanto decorrem averiguações ou processos sobre alegados crimes financeiros.



A condenação e prisão de Jacob Zuma (https://www.publico.pt/2021/06/29/mundo/noticia/expresidente-africa-sul-condenado-15-meses- ), constituíram prova da independência e determinação do poder judicial, mas caíram num mau momento para

Cyril Ramaphosa pois adiciona mais um fator de confronto.

As províncias do Gauteng, sobretudo em Joanesburgo, e do Kwazulu-Natal (KZN), com maior incidência em Pietermaritzburgo e Durban, têm sido palco de manifestações, de média dimensão ou de pequenos grupos violentos, com efeitos devastadores em dois planos: saques de supermercados ou lojas e interrupção do tráfego em grandes estradas, incluindo incêndio de viaturas.



Apesar de centenas de detidos, o contexto mantém-se a tal ponto que o primeiro-ministro do Gauteng assinala barragens de estrada com capacidade para perturbar não apenas a circulação de mercadorias, mas também acesso de ambulâncias e camiões de oxigénio aos centros de saúde.


A multiplicação e alternância dos “pontos flash” revela um misto de espontaneidade e coordenação. Desde há bastante tempo se receava que um pequeno movimento de tumulto pudesse desencadear adesões em grande número, voltadas para ataques a grandes estabelecimentos comerciais, em virtude da pobreza atingir níveis desesperantes. Os roubos a nível individual, aliás, já estavam em alta e agora a possibilidade de assaltos em grupo funciona como atrativo mobilizador.


Por outro lado, a polícia assinala apelos à violência em mensagens do Twitter de uma das filhas de Zuma. Além disso, assinalam vigilância sobre uma dezena de sites ou internautas individuais na mesma linha. Porém, o número de mensagens com marcação de horas e locais de concentração é muito maior. Aparecem e desaparecem.

A aglomeração de partidários de Zuma junto à sua casa em Nkandla, nos dias anteriores à prisão, pode ter sido um momento de teste para os acontecimentos em curso, com destacado papel para grupos de veteranos do MK (antigo braço armado do ANC) cujo porta-voz marcou uma muito notada presença, por se tratar de Carl Niehauss, branco africâner e figura conhecida na política sul-africana. As declarações que fez no local valeram-lhe a suspensão como militante do ANC.


O Presidente Cyril Ramaphosa manteve-se em silêncio enquanto decorriam as negociações para que Jacob Zuma se entregasse, evitando um ataque policial a sua casa, mas a posterior intensidade dos tumultos obrigaram-no a intervir publicamente por duas vezes.


Na primeira, acusou a existência de “mobilização étnica”, apontando sem o dizer para a comunidade zulu, oriunda do Kwazulu-Natal, mas também muito presente em toda a área de Joanesburgo, consequência das décadas em que era uma das grandes bases de recrutamento para trabalho nas minas de ouro.

Durante a transição no final do apartheid, os hostels em que habitavam transformaram-se em centros de atuação do Inkhata, partido de Mangosouto Buthelezi, conhecido adversário do ANC. A posterior mudança de contexto e a mudança de geração, enfraqueceram muito o Inkhata e, graças em larga medida a Jacob Zuma, o ANC passou a ser a maior força política no Kwazulu-Natal, onde muitos dos seguidores do ex-Presidente acreditam que ele é perseguido por ser zulu. De facto a arma identitária tem sido muito usada.

Ainda assim, na província do Gauteng a mobilização já ultrapassa bastante as linhas étnicas, chegando aos grupos intermitentes mas poderosos de xenófobos, bem enraizados nas grandes townships, como Soweto, Alexandra, etc.

Não há indicações de que líderes do ANC suspensos por razões judiciais tenham algum papel na atual vaga de manifestações, assaltos ou bloqueios. Mas é grande o risco que partidários seus o façam, por exemplo, na província do Free State (entre o Gauteng e o Cabo Ocidental), da qual foi primeiro-ministro o hoje suspenso secretário-geral do ANC.


O Cabo Ocidental é a única província sul-africana não governada pelo ANC. É a opositora Aliança Democrática (DA) quem conduz a administração provincial. É a segunda província em termos de impacto económico e a sua capital, Cape Town, possui um dos maiores portos da África Austral e uma importante zona industrial, enquanto a sua agricultura é decisiva para manter a produção alimentar sul- africana com o peso atual, tanto para o mercado interno como para exportação.


Trata-se de uma província onde a maioria da população é soma de mestiços e brancos, elemento apontado muitas vezes como explicação para a hegemonia local da AD. Até aqui o Cabo Ocidental não tem registado incidentes como no Gauteng ou no KZN, embora a situação de muita pobreza também se verifique nas suas grandes townships, como Kaelitshya. A eventualidade de saques nesta província pode exacerbar os sentimentos de maior autonomia reclamados por parte do seu eleitorado. No entanto, um clima de insegurança prolongado e eventual maior capitalização pelos defensores de Zuma, pode obrigar a AD a aproximar-se de Ramaphosa.


O segundo discurso deste vai precisamente no sentido de restabelecer a segurança como requisito para recuperar a economia.



Resta saber como se conduzirá o EFF (Combatentes da Liberdade Económica), conduzido pelo ex chefe da juventude do ANC, Julius Malema, que dispõe de um importante grupo parlamentar. Malema e o seu partido são considerados sob várias designações - “radicais”, “patriotas”, “populistas”, “racialistas” - e têm mobilidade para vários tipos de aliança.



O choque no ANC dos processos contra a captura do Estado pela corrupção ou nepotismo, somado a um desemprego efetivo de mais de metade da população e agravado pelas restrições da pandemia, coloca a África do Sul numa atmosfera de todos os riscos. Em todo o mundo governar é gerir riscos, mas os níveis sul-africanos são particularmente elevados, até porque, ainda há pouco tempo era o país do arco-íris e das grandes esperanças. Era.



Lil Pasta News, nós não informamos, nós somos a informação 

Postar um comentário

0 Comentários