Advocacia, deontologia e patrocínio judiciário aos chamados “marimbondos” – Marcolino Moco



No âmbito do chamado “combate à corrupção”, foi criado pelo actual Presidente da República, certamente sem que tivesse previsto a repercussão, o meme “marimbondo” que, sendo um mero expediente de estigmatização de uma facção política, acabou por impor-se como uma categoria conceitual válida, senão exactamente no domínio jurídico-legal, mas ao menos – e isso não é menos perturbador –  nos campos ético e moral.


Neste sentido, tenho seguido com apreensão, as dúvidas de alguns, por vezes não tão leigos como isso em matéria do direito e da justiça, sobre eventual amoralidade de advogados que abraçam, a pedido de clientes, a defesa de chamados “marimbondos”, em processos judiciais em que são envolvidos.




Aliás, viu-se, ouviu-se e sentiu-se, mesmo de algumas faixas significativas da nossa magistratura judicial e do ministério público, nos períodos mais entusiastas de tal “combate”, algum palavreado e  gestual que pareciam invocar essa inusitada valoração supostamente jurídico-judicialista ou meramente ético-moralista. Numa altura em que uma das actividades que mais me preencherá o tempo será a advocacia, nos termos técnico-jurídicos regulados pelo nosso ordenamento jurídico, pareceu-me importante dizer algo sobre a matéria.


O direito e a justiça (sendo esta última o fim último do primeiro), não se podem compadecer com esse tipo de valoração de natureza política demagógico-populista e autoritária, num estdado proclamado “democrático  de direito” (v. art. 2º da Constituição). Tanto que é o próprio regime político que perante a dimensão e gravidade dos ilícitos, particularmente os de natureza económica contra o Estado, não quiz adoptar uma estratégia transicional de justiça, em que as questões de ordem ético-moral pudessem ser dilucidadas, para se descongestionar um ambiênte de administração da justiça que colapsou durante o consulado político anterior.


Assim sendo, o abraçar o patrocínio judiciário no âmbito desses processos não pode suscitar quaisquer dúvidas quanto ao carácter ético e moral, afastado, desde logo, qualquer problema de ordem jurídica, no sentido mais estrito, tanto em termos do ordenamento jurídico legislado como  em sede da doutrina. Mesmo que estivéssemos a laborar sob a égide de um direito e uma justiça do tipo anglo-saxónico, onde, como se sabe, predomina uma metologia judiciaria em que os juízes se sobrepõem demasiado aos advogados, na avaliação dos casos decidentos , não é de prever-se que o princípio da presunção de inocência e todo o normativo que regula qualquer processo judicial justo, possam permitir que indiciados de crimes, seja de que natureza for, possam ser deixados à deriva de certas ondas de vendeta social .


No campo da doutrina romano-germânica ou continental que sustenta maioritariamente as nossas posiões como direito e justiça angolanos,  a literatura é prenhe de afirmações que apelam para o dever do advogado aceitar a defesa de seus clientes, incluindo naturalmente os indiciados como criminosos, com todas as armas argumentativas a seu favor, dentro dos limites que salvaguardam a sua própria dignidade, sem ultrajar, no entanto, o princípio da salvaguarda da verdade. Verdade que não é algo tão simples que se possa apurar logo a partir das primeiras impressões pela acusação e ou pelo juíz da causa. Além disso, por mais que o essencial da verdade seja apurado desde as primeiras impressões, há sempre um enorme leque de circunstancialismos a volta de cada caso que o advogado deve explorar a favor do seu constituinte, no que a moderna administração da justiça se distingue da justiça vingativa pré-moderna. São, neste aspecto, muito significativas as palavras de António Arnaut, jurista e político português que dizia, na sequência da afirmação de que um advogado pode (deve) recusar-se a defender uma causa quando entenda que a lei que vai regular a causa é injusta:


Questão diferente é o dever de não aceitar uma causa injusta. Como, em qualquer processo, acontece em regra, que a uma das partes falece a razão, poderia obstemperar-se que o seu patrono está a violar um dever deontológico. Não é assim. Mesmo que o cliente não tenha razão, terá sempre algumas razões e merece ser defendido. O arguido que confessa um crime grave tem, obviamente, algumas atenuantes. Compete ao advogado explorar todos os caminhos legítimos a favor do seu constituinte. As dificuldades de patrocínio não podem ser motivo da recusa.  (…) De resto, a verdade nem sempre está dum único lado, embora não pareça.


O ordenamento jurídico angolano, tanto na decorrência das obrigações a que se submete, de forma genérica, o país, pela sua inserção jus-internacionais (v, artigos 13º da Constituição),  como por uma série de disposições constitucionais específicas (v. artigo 29º, nºs 2, 3, 4 do art. 67º, art. 193º, entre outras normas também da Constituição), não deixa nenhum espaço para esse tipo de especulação que pode pôr em choque o gozo pleno dos direitos, liberdades e garantias a que todos nacionais e não nacionais têm direito, dentro do território nacional.


Cabe referir, para terminar, que toda a regulação da actividade dos advogados, que se inspira nas linhas orientadoras da Constituição da República de Angola e nos princípios mais gerais que conformam o funcionamento dos Estados democráticos e de direito (referiremos, exemplificativamente, a Lei da Advocacia, o Estatuto da Ordem dos Advogados de Angola e o Código de Ética e Deontologia Profissional do Advogado), corroboram, como não podia deixar de ser, a posição que aqui deixamos defendida.



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