É urgente resolver a incompetência na administração do Estado e acabar com o vazio ideológico que a perpetua. Esta é a segunda parte de um ensaio sobre o modo como essa incompetência impede os angolanos de alcançarem a vida digna que merecem. Aqui serão apresentados os quatro pilares estruturantes que propomos para reformar a administração do Estado: conhecimento, solidariedade, funcionalidade e liberdade.
COMO MUDAR, REFORMAR E AVANÇAR?
Os angolanos, por via do debate público, devem formular uma agenda de princípios e valores comuns que sirvam para a organização da administração do Estado. Essa agenda deve estabelecer novos padrões de conduta para os servidores públicos, membros e militantes de partidos políticos e para a intervenção da sociedade civil organizada.
Na base dessa agenda orientadora da nação, deverão encontrar-se os quatro pilares estruturantes que já antes referimos. É neles que assenta a nossa proposta para reformar e reorganizar a administração do Estado, um ponto da viragem obrigatório para acabar com a confusão que assola a consciência social e política em Angola. Passaremos agora a explicar em que consistem esses pilares – conhecimento, solidariedade, funcionalidade e liberdade – cada um dos quais congrega vários valores e princípios.
O CONHECIMENTO
“O descalabro social é evidente, a pobreza das populações é extrema, o desespero começa a invadir muitos corações. É o momento da verdade. Os que falharam devem assumir modestamente os seus erros” – foi com estas palavras que José Eduardo dos Santos (JES) se dirigiu à nação em 1996. Nessa altura, JES enfatizava os falhanços do seu governo, em particular da equipa económica, e discorria sobre a necessidade de “ruptura com o actual modo de gestão económica e ineficácia governativa”.
Essa mea culpa de JES bem poderia ser sobre o momento actual. Nele se evoca a velha questão da falta de visão holística das lideranças políticas, seja por negligência, seja por desprezo do conhecimento, nomeadamente para se evitar os erros do passado. E o pior erro é apostar em pessoas que ao longo de décadas criaram um extenso currículo de rotação em cargos públicos e de vaidades, mas sem quaisquer realizações de sucesso para o bem da administração do Estado ou do povo.
Não se deve temer, menosprezar ou combater as pessoas que sabem do seu ofício. A confiança política em familiares, amigos e partidários, na administração do Estado, deve dar lugar à confiança no saber.
O conhecimento é a ferramenta mais eficaz na luta contra a incompetência. Por isso, estimulá-lo deve ser uma premissa essencial da acção do Estado e da estruturação da sociedade. A base do conhecimento é a educação. Em Angola, como nota um estudo do Banco Mundial, em oito anos de escolaridade, o aluno apenas aprende o equivalente a três anos. Ou seja, quem tem a 8ª Classe de papel passado apenas tem a 3ª Classe em termos de conhecimentos adquiridos.
A primazia do conhecimento gera a busca de competências e fomenta a meritocracia na materialização das acções do Estado e no fortalecimento das suas instituições. É preciso conhecimento e talentos individuais para organizar a administração do Estado, formar os funcionários para a sua boa administração e empreender acções para o desenvolvimento do país e o bem-estar comum.
Ademais, o conhecimento, entendido como consciência ou compreensão de algo ou alguém, é a base da estruturação (no sentido que Anthony Giddens dá ao termo) da sociedade. O conhecimento e a educação são os pilares da construção de uma comunidade política em que todos participam e sabem participar. Se todos tivermos algum conhecimento e partilharmos valores comuns, será mais fácil aceitar e trabalhar num processo democrático com alternância, sem ódios nem radicalismos. Se fizermos parte de uma mesma sociedade civil forte e conhecedora, o Estado e o poder deixarão de ter aquela importância opressora e tornar-se-ão parceiros de uma caminhada para o desenvolvimento.
Adicionalmente, o conhecimento e a educação aumentam a produtividade e a criatividade das pessoas e promovem os avanços tecnológicos. E ainda desempenham um papel crucial na garantia do progresso económico e social e na melhoria da distribuição de rendimento.
A SOLIDARIEDADE
Sem solidariedade, não há bem comum. A solidariedade deve ser o elo de ligação entre os cidadãos, mais do que a noção de serem compatriotas. Sem solidariedade, não há patriotismo.
Utilizando a matriz de Émile Durkheim, temos de entender que a solidariedade deve resultar da integração social dos membros de uma sociedade com valores e crenças comuns. Essa identificação dá luz à “consciência colectiva”, que actua internamente em cada uma das pessoas para a cooperação mútua. Vai no sentido da resolução comum dos problemas que afectam a sociedade e, sobretudo, os mais desfavorecidos.
É uma solidariedade da diferenciação unida. Devemos aceitar o facto de Angola ser um país de matrizes muito diferentes, com nações, culturas e histórias diversas, que possivelmente necessitam de regras também múltiplas. Contudo, este país de diferenças está unido por um traço comum de solidariedade, e todos devem contribuir para o seu funcionamento plural, mas coeso. Na realidade, é a solidariedade que de muitos faz um. “Etu kumoxi”, como se diz em kimbundu.
A FUNCIONALIDADE
“O angolano cria dificuldades para vender facilidades.” Essa máxima do “Estudo Multidisciplinar sobre o Fenómeno da Corrupção na Sociedade em Geral”, válida até à data, deve obrigar-nos a reflectir sobre o que é o serviço público e a perceber o que tem de ser feito para o melhorar.
Deve haver esforços concertados e proactivos entre o governo e a sociedade para o estabelecimento de práticas conducentes a uma nova máxima no funcionamento da administração do Estado. A organização da administração do Estado tem de ser holística, a todos os níveis e em simultâneo.
A título de exemplo, a educação não pode funcionar com eficiência sem o bom desempenho da saúde e vice-versa. Para que ambos funcionem bem, precisam de uma economia sólida que garanta o bom sustento das famílias. O contrário também se aplica.
As acções da administração pública, os actos dos governantes devem ser sempre no sentido da prestação eficiente e eficaz de serviços para o bem do cidadão comum.
O bem comum é o determinante prático da relação que se deve estabelecer entre os membros de uma comunidade política. O modelo de funcionamento da sociedade assente no bem comum pressupõe que os cidadãos mantenham uma relação “política” ou “cívica” uns com os outros. Essa relação exige a criação e manutenção de certas estruturas que devem servir o interesse comum. Trata-se, designadamente, das escolas públicas, do sistema público de saúde, da rede de estradas, da protecção policial e da segurança pública, dos tribunais e do sistema judicial, dos transportes públicos, da administração pública, das liberdades fundamentais, do sistema de propriedade, da água potável, da energia e da defesa nacional.
As estruturas e os interesses relevantes, em conjunto, constituem o bem comum. Quando os cidadãos se deparam com questões políticas, resolvem-nas apelando a uma concepção das estruturas e dos interesses comuns relevantes. Ou seja, discutem com base no bem comum.
A LIBERDADE
Há todo um historial político e sociocultural que ainda impede o angolano de agir com liberdade para o bem da comunidade. A diferença de opiniões, a exposição da criatividade e do talento para a persecução do interesse público ainda constituem um risco para quem se encontra nos órgãos da administração do Estado.
A liberdade do cidadão, como argumenta Maduabuchi Dukor, está intrinsecamente ligada à sua responsabilidade para com o Estado. Logo, é um imperativo elevar-se a consciência dos cidadãos sobre a centralidade do Estado nas suas vidas e a responsabilidade individual de cada na construção de um pensamento colectivo sobre a sua função, organização e administração.
Dukor considera que a liberdade em África deve ser a “harmonização da acção individual (política e social) com as normas e valores da sociedade”. Em Angola, essa tese pressupõe, à partida, e repetindo, a definição clara de normas e valores que devem conduzir a acção dos cidadãos e, por sua vez, do Estado.
Para se melhorar a acção do Estado, os cidadãos têm de desenvolver livremente o seu pensamento, a sua criatividade e o seu talento. É da interacção entre várias ideias que surge o progresso. A liberdade é o feixe de luz que cada um de nós detém para procurar o melhor.
Um cidadão só é verdadeiramente livre quando os outros à sua volta gozam da mesma liberdade. A liberdade individual é assegurada pela liberdade colectiva.
CONCLUSÃO
Em resumo, as políticas actuais do governo podem continuar a agravar a situação socioeconómica dos cidadãos, devido à repetição crónica dos erros do passado. Estes erros resultam sobretudo da incompetência incorrigível de muitos dos dirigentes de sempre.
Não se deve continuar a fazer reformas e mudanças paliativas sem uma intervenção profunda e simultânea na estrutura da administração do Estado e do MPLA. Essas reformas devem passar pela separação intransigente entre “o partido” e o Estado, despartidarizando a administração pública. As reformas têm de ser estruturantes e, sobretudo, de ter o condão de contribuir para a mudança de mentalidade e de comportamento quer entre os dirigentes, quer entre os funcionários em geral, quer entre os cidadãos na prestação de serviços aos soberanos, os angolanos – como estabelece a Constituição.
Mantém-se uma aposta clara na incompetência, nomeadamente no governo da província de Luanda e no domínio da economia. A incompetência é um dos principais factores que contribuem para a desmotivação e a desmoralização dos servidores públicos que podem fazer melhor. A incompetência gera mais corrupção, sobretudo dos valores éticos e morais, bem como profissionais. Sem valores e sem profissionalismo, o combate à corrupção acaba confinado ao discurso político.
Para a administração pública funcionar sem problemas e com eficiência, é necessário que haja motivação entre os funcionários. O salário é considerado como a força motriz para melhorar a actuação do funcionário. No entanto, há outros incentivos, como a formação adequada, oportunidades educacionais ou sistemas de cuidados de saúde.
Também é fundamental o reconhecimento positivo do trabalho dos funcionários ou um amplo sistema de benefícios indirectos baseados no mérito.
Mais uma vez, João Lourenço tem uma grande oportunidade, com a crise actual, de colocar Angola nos eixos. Enquanto o MPLA permanecer como detentor exclusivo do poder em Angola, a restruturação holística da organização e do funcionamento da administração do Estado passa simultaneamente por reformas no seio desse partido, que precisa de líderes e quadros visionários, mais competentes e comprometidos com o bem comum.
Só assim o presidente poderá conquistar a confiança dos cidadãos, restaurar a segurança nos seus planos de governo e afastar definitivamente do seu círculo de poder aqueles que só travam o progresso de Angola e impedem o bem-estar dos angolanos, devido à sua incompetência, ao seu egoísmo e à corrupção.
Não há outro caminho para Lourenço, caso queira deixar um legado melhor que o de José Eduardo dos Santos, o auto-exilado ex-presidente da República.
O conhecimento, a solidariedade, a funcionalidade e a liberdade devem constituir a os pilares perpétuos de valores para a organização da administração do Estado.
REFERÊNCIAS
Santos, José Eduardo dos (2004: 271) José Eduardo dos Santos e os Desafios do seu Tempo: Palavras de Um Estadista 1979-2004, Abrantes, José Mena (organização), Vol. II, Edições Maianga.
Dukor, Maduabuchi (2010: 10). African freedom: The Freedom of Philosophy. Verlag: Lambert Academic Publishing.
Durkheim, Émile, (1960: 111-132) The Division of Labor in Society. Illinois: The Free Press of Glencoe.
Fukuyama, Francis (2006: 42-43) A Construção de Estados: Governação e Ordem Mundial no Século XXI. Lisboa: Gradiva.
Giddens, A. & Sutton, P. (2013: 8,90-91) Sociology, 7th ed. Londres: Polity.
Ministério da Justiça (1990:3) “Estudo Multidisciplinar sobre o Fenómeno da Corrupção na Sociedade em Geral”. Despacho Presidencial n.° 22/90, de 15 de Setembro.
MPLA (1980:43-44). Angola: Special Congress Report of the Central Committee of the MPLA – Workers’ Party. Mozambique, Angola and Guiné Information Centre, Londres.
Paca, Cremildo Félix (2020:14). Administração Pública e Poder Executivo em Angola. AAFDL Editora.
Maka Angola
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1 Comentários
Olá querido,
ResponderExcluirPara este trabalho magnífico, no meu ponto de vista, e em nome do povo angolano, seria entregue este depoimento direitamente ao João Lourenço, seu executivo, Comité Central e o Bureau político. Até finalizar pela Assembleia Nacional.
Junto com os Médias convencionais e Redes Sociais, para que não haja negação ou embalo sub-gavetas.
Meu querido, gostei bastante pela matéria, Deus te protege obrigado.