O Karaté na Jamba - Gerson Prata



O Karaté era uma das modalidades desportivas que mais atraía os jovens em muitas das localidades do que se denominou por muito tempo “as Terras Livres de Angola” e sob controlo da UNITA até 1992.



O Delta, onde vivi, foi uma dessas localidades notáveis.


 


Todos os jovens eram ou queriam ser Karatecas. Até as crianças gostavam do Karaté. 


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Não sei se o interesse pelo Karaté tinha relação com os filmes do famoso actor Bruce Lee que assistíamos naquela época. Mesmo ao nível global, particularmente nos países ocidentais, os filmes de Bruce Lee estavam no auge da sua audiência.



Não me lembro bem do período do ano em que, no Delta1, apresentavam-se vídeos de filmes para a comunidade. Lembro-me, sim, que os vídeos dos Filmes passavam depois da hora do jantar, mais ou menos por volta das 19 horas. O pessoal, na sua maioria jovens e crianças, deslocava-se à Parada2 para assistir aos filmes. Nós, os mais novos na altura, sentávamo-nos no chão, próximos à mesa em que era colocado o Televisor. Naquela altura, em 1980, assistir a um filme, em plena mata e na nossa idade, era mesmo uma verdadeira maravilha. E se disser que, por curiosidade, chegavamos mesmo até a espreitar na parte de trás do televisor para procurar entender o se passava de facto e como saber como era possível tal acontecer... ninguém vai estranhar! – São coisas de crianças, tentar descobrir realmente a origem das coisas.



Dos poucos Filmes de que ainda me recordo alguns episódios destaca-se aquele em que Bruce é alvejado à tiro na altura em que fazia um salto mortal. Felizmente sobrevive ao atentado e é levado às pressas ao hospital. O filme era, em geral, muito aplaudido pelos assistentes, e sempre que Bruce Lee disferisse um golpe ao seu adversário, o pessoal gritava, geralmente, em coro: “tómas”... “tómas”. Na verdade, pensávamos que aquilo tudo que víamos em vídeo era real, tão real que, quando o Bruce Lee foi alvejado, ficamos tristes, tendo havido mesmo quem, de tristeza, largasse algumas lágrimas. Era muita emoção! Talvez seja pela alegria e emoção que os filmes de Bruce Lee nos proporcionavam, motivando-nos imenso para a prática do karaté.



Quanto à prática do karaté em si, lembro-me do nosso instrutor principal, o mui bem conhecido “mestre Cândido”. Ele era um verdadeiro Karateca e o demonstrava no ringue e ao transmitir os seus conhecimentos e malabarismos aos seus diversos instruendos nos treinos. Dizia-se que ele era detentor do cinturão preto, desde o tempo colonial (1975). Mas o que mais me admirava nele era a sua dedicação em ensinar o karaté aos mais novos. Nós tínhamos entre 7 e 8 anos de idade, e já nos sentíamos Karatecas. Ele enquadrou-nos num grupo, que ele próprio criou para os mais pequenos, o Grupo C. O Grupo C era uma espécie de “kassulinhas” do Karaté. Já os mais velhos pertenciam aos grupos A e B. O sonho de todos era chegar ao grupo A, o dos craques, aqueles que faziam apresentações em parada ou sessões culurais e recreativas e muitas vezes na presença da Direcção da UNITA ou de Delegações estrangeiras visitantes. Mas, para se ser Karateca, era necessário consentir alguns sacrifícios, principalmente o de acordar muito cedo para os treinos. Tínhamos de acordar por volta das 4 horas da manhã. O pior de tudo é que o Campo de Treinos ficava fora do Acampamento ou da Base, isto é, a sensivelmente 1 quilómetro da nossa casa. A distância justificava-se, talvez, para não incomodar os que dormiam àquela hora, uma vez que o acampamento era maioritariamente de gente da terceira idade.


Como os treinos eram duros e alguns dos candidatos desistiam, o mestre incentivava-nos bastante, tendo-nos feito contemplar o Karaté como um elemento útil para nós, não só para nos defendermos em eventuais ataques, mas também para fazermos acrobacias com os nossos próprios corpos. Ele era extremamente rigoroso e não permitia indisciplina. Todos tinham obrigação de cumprir à risca as regras dos Karatecas. – Ai de ti se fosses visto a lutar na rua! – Eras exemplarmente punido. Hoje, percebo que o mestre estava a olhar para o futuro, ao criar o grupo C, pensando na vitalidade da modalidade.



Passados cerca de 40 anos, o meu irmão mais velho falou-me da existência de um Grupo nas redes sociais formado por Karatecas daquele tempo, os Pupilos do mestre Cândido. Fiquei satisfeito pelo facto de o Karaté ter criado um espírito de camaradagem que resistiu aos tempos e as dificuldades. E, às vezes, vou imaginando alguns exercícios que fazíamos:“ya-men, yes-men, hossi; e depois: ítchi... ní...gô...rô...sân... kiyai? kiyai! ya-men? yes-men?: hossi!”. Também aprendemos os katás: Katá Heian Shodan; Katá Heian Nidan; Katá Heian Yondan; katá jion, etc.... Em função das técnicas adquiridas, os karatecas ascendiam de cinturão: amarelo, vermelho, etc.... – Não me recordo ter passado do cinturão branco.


Mais tarde, já na Jamba, desliguei-me do Karaté. Não tinha o mesmo ânimo que tive no Delta. Passei a praticar mais acrobacias: fazia pinos, emitando o mano Lito Kandambu, de feliz memória. O “kota” Lito Kandambu (Adérito Fernandes Kandambo) fazia pinos com o apoio de um pneu de Unimog (Mercedes) servindo de mola impulsionadora. Ele tomava balanço de 4 ou 5 metros de distância, corria e batia com os pés no pneu e era projectado para cima, e lá em cima, dava um pino. O “kota” Kandambu, também conhecido por “Açúcar”, era um verdadeiro especialista em pinos. E, em muitas ocasiões, já o vi fazer pinos em apresentações no Pavilhão VI Congresso, na Jamba, quando da realização de Cerimónias oficias de carácter cultural ou recreativo, na presença da Direcção da UNITA. Essas apresentações deram aos Karatecas popularidade e aceitação da parte da população; por isso, sempre que houvesse uma atividade política ou recreativa, eram convidados para fazerem apresentações. Aquilo era bonito: faziam demonstrações de katás, luta-livre, pinos, manipular matracas, etc. A luta que mais aplausos arrancava, era a Luta com vara. – O pessoal vibrava de emoção.


Foi essa emoção e os vários momentos do Karaté que vivemos na infância que ajudaram também a moldar um pouco o nosso comportamento.


Como o tempo passou, mas a vida continua... as lembranças da infância vão surgindo, por isso, gostaria de partilhar alguns termos em Karaté que, naquela altura, não percebia muito bem a sua pronúncia nem o seu significado:

Age uke – defesa de soco para cima;

Age zuki – soco para cima;

Ashi barai – rasteira;

Chudan – altura intermediária entre pescoço e abdomem;

Enpi uchi – cotovelada;

Gedan barai – defesa para baixo;

Hajime – “começar”, comando para iniciar kata ou kumite;

Hikite – puxada de mão;

Kamae – posição de luta;

Hiza geri – joelhada;

Ippon kumite – luta de um passo;

Kata – tipos de prática pré-determinados usados como veículo de aprendizado;

Karate – caminho de mãos vazias;

Kekomi – pontapé em forma de punhalada;

Kiba dachi – posição de cavaleiro;

Mae – frente;

Mae geri – chute para frente;

Mae geri kekomi – pontapé dianteiro profundo;

Mawashi geri – chute circular;

Sanbon kumite – luta de três passos;

Shuto uke – defesa com a faca da mão;

Soto uke – defesa com a parte de fora do braço;

Tobi geri – chute saltando;

Uchi uke – defesa com a parte interna do antebraço;

Ushiro geri – chute para trás;

Yame – parar;

Foram esses os termos e expressões mais usados durante os treinos de Karaté naquelas manhãs frias do Delta. 

Graças à internet, passei a conhecer e a perceber melhor as palavras que usávamos como karatecas.

São Lembranças!


Luanda, 30 de Março de 2021.


Gerson Prata



Delta1 – Pequeno Território situado na parte norte da República da Namíbia e a poucos quilómetros da fronteira com Angola, e, a mais ou menos, 200km a sul da Jamba. O Delta albergava maioritariamente cidadãos da terceira idade e crianças vítimas da guerra pós independência entre a UNITA e o MPLA, em 1976.


Parada2 – local de concentração nas bases de guerrilha e também em quarteis militares.




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