A corrupção transcende o acto da entrega ou a recepção de algo para obter vantagem ou ceder privilégios a alguém. Depois desta fase, o fenómeno captura as mentes das pessoas directamente envolvidas em práticas de corrupção, daqueles que beneficiam dos proven-tos dessa doença, e metastisa-se naqueles que assistem ou ouvem falar do fenómeno, tornando-se num cancro muito difícil de se erradicar. A corrupção em Angola é encorajadora porque não se punem as pessoas que corrompem, nem as corrompidas, encorajando aquelas ainda não praticantes de tal acto desumano. A corrupção pode ter uma origem exógena, ou endógena, como resultado da Gestão Negativa.
O presente artigo aponta alguns factos ocorridos no período pós-independência, com maior incidência após as primeiras eleições multipartidárias, que contribuíram para o aprofundamento da prática da corrupção, assim como a generalização da crença da impunidade em Angola. Palavras chave: Corrupção, Impunidade, Gestão Negativa
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1. CAP, a Primeira lição de saque.
Com a criação da Caixa Agro Pecuária CAP, através do Decreto n.º 8-B/91 de 16 de Março de 1991, o governo de Angola pretendia fazer nascer o sector produtivo para, através de concessão de créditos, revitalizar o que seria a classe empresarial privada angolana pós-independência. O banco passou a ceder créditos a empresários e individualidades, que manifestavam pretensões de realizar investimentos no sector produtivo, das micro às grandes empresas. A década de noventa assistiu à expectativa de uma sociedade pacífica e democrática sob economia de mercado, entretanto viveu o eclodir de uma guerra, logo após a realização das primeiras eleições multipartidárias.
A guerra que se despoletou após às eleições de 1992 foi muito violenta, mais violenta do que aquela que se verificara após à independência de Angola, em 1975. Não se podia deslocar por terra, para fora de Luanda e, entre as diversas províncias de Angola. Luanda, a sede do governo, ficou sitiada, com as cidades de Caxito e N’Dalatando ocupadas pela UNITA. Podia viajar-se apenas de avião, para certas cidades. Vivia-se com muitas dificuldades, pois faltava de tudo. Obviamente, naquele clima, não era possível praticar a agricultura industrializada como se pretendia, e outras iniciativas empresariais ficaram comprometidas. O Kwanza atingiu uma inflacção de cerca 4.000%, o salario de um professor do ensino geral chegou a equi-valer 10 dólares americanos. As pessoas desenrascavam-se como podiam para conseguir algo. Fora extinto o sistema centralizado de abastecimento de bens de primeira necessi-dade, que vigorava desde o período da independência, pois pretendia-se introduzir o modelo económico de mercado. Os empréstimos concedidos pela CAP não foram aplicados como se preconizara, e os que aplicaram viram aqueles investimentos tornar-se ineficazes devido o efeito da guerra. Os devedores da CAP ficaram sem poder pagar as prestações das dívidas contraídas, pelo menos naquele período.
Alguns devedores mais avisados, entretanto, ou fizeram os seus investimentos em ramos de actividades ou regiões distantes do impacto da guerra, ou chegaram mesmo a exportar os fundos.
Devido à inadimplência generalizada dos devedores da CAP, em 1998 esta foi extinta, exonerando parcial ou completamente os seus devedores das dívidas contraídas, e substituída por outro fundo, igualmente de capitais públicos. Quer dizer, muitos dos que haviam emprestado dinheiros daquele fundo, mesmo que os seus investimentos não tivessem vivido o choque da guerra, viram-se livres da dívida, tornando-se ricos de facto. É dado assente que, a maioria dos devedores da CAP não eram quaisquer pessoas, sendo na sua maioria figuras ligadas ao poder, e pode-se depreender que foram essas mesmas individualidades que, em certa medida, influenciaram para o encerramento do banco e a prescrição das suas dívidas. Pois, apesar da guerra, as dívidas poderiam ter sido negociadas e reescalonadas para períodos posteriores, ou na pior das hipóteses, fosse a CAP um banco autêntico, os bens gerados pelos devedores teriam sido confiscados. Mais pareceu que a CAP tinha sido criada como instrumento para retirar fundos do erário e alocá-los a priva-dos. Como se pode depreender, quem enriqueceu em tais circunstâncias, ou quem ouviu falar de tal ocorrência, deve ter ficado com a percepção de que os fundos públicos cedidos não eram para ser restituídos. E dali passou-se a assistir a apropriação de viaturas, residências, e outros bens públicos cedidos a titulares de cargos públicos.
2. O cabrito come onde está amarrado.
Em declarações feitas através dos mídia, divulgadas naquela altura, ouvimos um malogrado médico, que chegou a governador da província de Malange, pronunciar-se nos ter-mos da epígrafe: O cabrito come ali onde estiver amarrado. Em momentos de fome e penúria, semelhantes aqueles que se viviam nos finais dos anos noventa, esta afirmação deve ter sido acolhida como uma licença tácita para efectuar quaisquer tipos de práticas em nome da sobrevivência, ainda que em violação de precei-tos legais e deontológicos da Gestão Positiva. Os acessos aos empregos, serviços ou instituições de ensino deixaram de ser feitos gratui-tamente, deixaram de ser feitos por cunha, uma espécie de recomendação que vigora há séculos, e passou a ser feito pela prestação de uma coima, uma gasosa. Nas escolas, os acessos eram feitos perante o pagamento de uma gasosa a alguém conhecido naquela instituição, e os alunos menos dedicados atentavam-se cada vez mais a pagar gasosas aos professores para transitarem de classes. Para cumprir com os seus deveres profissionais, cada cidadão arrogava-se a exigir uma gasosa. Nos hospitais, pacientes deixaram de ser atendidos e muitos morreram por falta de gasosa. Os médicos que atendiam nos hospitais públicos criaram consultórios privados, e, recomendavam os pacientes dos hospitais públicos para que os consultassem neste ou naquela clínica privada, para o mesmo serviço. Muitos professores de escolas públicas abriram explicações em suas casas, alegando a má qualidade do ensino.
A violação de uma regra de trânsito ou a falta de algum documento podia ser suprido por uma gasosa ao agente da polícia.
3. A gasosa é o entendimento entre o agente e o cidadão.
Se estava investido do seu poder de autoridade ou se no uso da sua faculdade coloquial, ao pronunciar essas palavras, o então ministro do interior, e depois presidente da Assembleia Nacional, passou uma ideia muito negativa no que tange à observância de comportamentos baseados na moral e deontologia profissional. A gasosa passou a ser oficial, de facto.
Para tudo passou a exigir-se uma gasosa. Estava aqui lançado o fundamento da espectativa, o direito do cidadão exigir e receber algo para que cumprisse com os seus deveres decorrentes de funções e atribuições para os quais o Estado já pagava com salário. Mais, estava também declarada a licitude, a legitimação de actos de corrupção perpetrados por cidadãos ordinários, ou por aqueles que ostentassem cargos de alta responsabilidade em instituições do aparelho do Estado.
4. Quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte, é porque não entende da arte.
Com o alcance da paz em Abril de 2002, o governo de Angola arregaçou às mangas e gizou um programa de reconstrução nacional, que passava pela recuperação das estradas nacionais, pontes e infra estruturas de apoio, tais como sistemas de abastecimento e drenagem de água, e barragens. Para tão espinhosa missão foi nomeado um General, para desempenhar a função de ministro das obras públicas. E foi nas vestes de ministro que, o mesmo encabeçou às obras de reconstrução por todo o país. Na altura, eram obras que encheram de orgulhos todos os angolanos, e não só, eram pois os ganhos da paz se tornarem realidade. E foi também nessas vestes que, aquele alto governante, em pronuncia-mento público, referiu que, quem parte e reparte, e não fica com a melhor parte, é porque não entende da arte. Assim dita, esta hipótese, bastante filosófica, parece inofensiva. Na verdade parece motivacional. Entretanto, passados poucos anos, entendemos um pouco melhor o significado da Gestão Negativa daquela colocação.
Começaram a surgir bens de alto valor em nome dos altos mandatários públicos, exibidos como se fossem bens obtidos com toda a legitimidade, dignidade ou de esforço equiparado.
Ouvimos inclusive de alguns novos ricos dizeres de que tinham se tornado milionários vendendo ovos, o que certamente poderia ter sido o caso. Mas não foi. Por coincidência ou não, ouvimos também pronunciamentos do presidente da república, na altura, que apelava para a necessidade da acumulação primitiva do capital por parte dos angolanos. Foi também neste mesmo período em que foi aprovada a Lei 3/10, Lei da Probidade Pública.
Mais pareceu que aquela lei veio despertar os gestores do erário sobre quais eram as melhores práticas para a Gestão Negativa, as más práticas que deveriam implementar para rapidamente acumular grandes montantes de capital e enriquecerem, tendo como garantia um contexto em que, a justiça passou a ser maioritariamente para pessoas fora do ciclo do poder, e a impunidade passou a ser uma segura expectativa nas acções de improbidade dos gestores do erário.
5. O povo não vive apenas do salário.
Após a independência os angolanos não viveram em bonança, sobrevivendo de magros salários, miseravelmente, envolvidos pelo fenómeno da corrupção, que galgava sobre tudo e todos.
Foi nessas circunstâncias em que, o segundo presidente da República de Angola, durante um discurso público, proferiu as palavras desta epígrafe. Para o então presidente, os angolanos eram resilientes bastante, tanto que não viviam apenas dos baixos salários pagos pelo estado. Certamente, naquela altura, já os angolanos, de maneira geral, estavam conscientes do direito da prática da gasosa. Mas, aquelas palavras, vindas de quem vieram, mereceram um enquadramento contextual extensivo, para enraizar as perniciosas práticas da gasosa, uma Gestão Negativa generalizada, consubstanciada no fenómeno da corrupção. Dali passou-se ao pandemónio. Cada um, ali onde tivesse alguma responsabilidade de gestão, de controlo, de manutenção, de guarda, de ceder ou qualquer outra função de res- ponsabilidade que possibilitasse obtenção de alguma vantagem, cada um lançou-se ao saque. Aliás, como qualquer posição no funcionalismo traz sempre alguma vantagem convertível em valores monetários, passou-se a saquear tudo.
E o país ficou à saque, mutu na muto a bongisa, cada um safa-se como puder, segundo as sábias palavras do então presidente da então república do Zaíre.
6. Conclusão
O recrudescimento da corrupção em Angola teve paralelismo com o surgimento da democracia multipartidária, no início da década de noventa, e manifestou-se através de actos de órgãos públicos, seguidos de manifestações socioeconómicas como consequência, e caucionado por declarações públicas de altas figuras de órgãos do governo, o que constituiu um processo educativo para o povo angolano, quanto a sua adesão, conformismo, ou participação em processos de Gestão Negativa, incluindo corrupção de forma activa ou passiva. Observando à contundência com que o terceiro presidente de Angola procura combater à corrupção, questiona-se: pode-se acabar com a corrupção? A resposta, infelizmente, é deveras frustrante.
Acabar talvez não, pois trata-se de um fenómeno intrínseco à sociedade humana. Sim, é possível reduzí-la ao ponto residual, em que tal manifestação se torne insignificante, sempre sob constante fiscalização, estimu-lando à Gestão Positiva.
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