Manuel Vicente nasceu pobre, em 1956, como todos no bairro do Rangel, em Luanda, Angola. Éramos todos muitos pobres, miseráveis não, mas pobres com certeza, recorda um seu amigo de infância ao OBSERVADOR
Era por ali, entre casas de barro e nunca de tijolo, que um Manuel Vicente descalço punha em prática tudo o que era fitas e reviengas, na esperança de imitar e talvez até superar os jogadores do seu clube, o Benfica. “Como todos nós naquela altura, ele fazia muitas fintas para mostrar que era craque”, recorda aquele amigo.
Na altura em que Manuel Vicente se exibia nos campos de futebol improvisados no bairro do Rangel, já a guerra colonial, iniciada em 1961, marcava a vida socio-política em Angola. Ainda assim, nada se ouvia daquele jovem em relação ao conflito. “Aquilo em que ele se envolvia mais era no futebol, mesmo”, sublinha o amigo que o conheceu na altura.
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“Era o futebol e a escola, também”, acrescenta. Quando não estava entretido a dar pontapés numa bola, geralmente de plástico ou de borracha, era aos livros que se agarrava: “Além de bom aluno, era um aluno respeitável, que nunca fugia às aulas”. Era bom com números — tanto que, quando foi preciso ajudar a família, deu explicações de matemática para ganhar dinheiro. E também ajudava os amigos, mas de outra maneira. Um deles conta que, sempre que outros miúdos no bairro lhe batiam, Manuel Vicente era o primeiro a aparecer para defendê-lo. “Mandava-os ao chão e aquilo parava”, conta esse amigo.
Mais tarde, o karma viria a retribuir-lhe o gesto, recebendo um empurrão de alguém mais velho, e mais forte, que o acompanhou durante a maior parte da sua vida: José Eduardo dos Santos. Não são claros os contornos em que começou a relação dos dois homens. Entre os relatos na imprensa e aqueles feitos por fontes do Observador, parece não haver consenso a não ser em relação a uma coisa: Manuel Vicente e José Eduardo dos Santos têm uma relação familiar, o que levava a que se tratassem cordialmente por “primo”. E desde cedo que José Eduardo dos Santos, que sucedeu de forma inesperada ao Presidente Agostinho Neto em 1979, soube cuidar do seu primo 14 anos mais novo, puxando-o para o centro do poder em Angola.
Ao longo do caminho, Manuel Vicente fez os seus estudos. Além do curso de engenharia eletrotécnica cumprido na Universidade Agostinho Neto, fez formações pagas pela Sonangol (que desde cedo destinou 0,15 cêntimos de dólar para a formação dos seus quadros no estrangeiro) em sítios cuja geografia já denunciava o que viria a ser o seu percurso: em cidades como Boston e Londres, onde proliferam consultoras e empresas de gestão; e também em Dallas e Calgary, duas capitais do mundo da energia.
Em 1981, já o seu “primo” mais velho era Presidente há dois anos, Manuel Vicente chefiou a divisão de engenharia da Sonefe (Sociedade Nacional de Estudos e Financiamento). Ficou lá até 1987, ano em que transitou para o Ministério da Energia e Petróleos. Em 1991, depois de anos de aproximação, conseguiu enfim assentar pé no Olimpo do mundo dos negócios em Angola: a Sonangol, onde entrou como diretor-geral adjunto.
Trabalhou sob a tutela de Joaquim David, à altura diretor-geral. Nesta altura, conta um conhecedor da indústria energética em Angola, Manuel Vicente “era um mero ‘sim, senhor’” do seu superior. “Foi Joaquim David quem pôs a Sonangol como canal de financiamento do esforço de guerra, não foi Manuel Vicente”, assegura a mesma fonte. “Quando Manuel Vicente chegava aos projetos, eles já estavam todos em expansão.”
Fosse como fosse, José Eduardo dos Santos manteve o seu “primo” no topo da Sonangol. “Foi lá que o Manuel Vicente cresceu, naquela espécie de redoma”, diz ao Observador o politólogo Paulo Inglês, atual diretor do Centro de Investigação da Universidade Jean Piaget, em Benguela. “Já nessa altura se notava uma espécie de nepotismo”, acrescenta aquele académico.
Em 1999, José Eduardo dos Santos deu um novo empurrão a Manuel Vicente: nomeou-o para presidente do conselho de administração da Sonangol, tornando-o efetivamente o número um da galinha dos ovos de ouro de Angola. Aos 33 anos, o rapaz que brilhava nos campos pelados do bairro do Rangel passou a ser o Senhor Petróleo — e nunca mais foi o mesmo. Muito mais do que facilitador que abria as portas em Angola, rapidamente Manuel Vicente passou a ser ele próprio a porta.
Foi essa a lição aprendida por um diplomata destacado em Luanda e que, no início da sua passagem pela capital angolana, esbarrou contra várias paredes. Era com facilidade que chegava a quem queria, muitas vezes governantes com posições de destaque — mas não tirava nada dali. Porém, após uma conversa com Manuel Vicente, percebeu rapidamente que essas não eram as pessoas certas.
“Foi o Manuel Vicente que me disse quem é que mandava no quê em Angola, apontou-me todos os nomes que era preciso conhecer”, diz ao Observador este diplomata, que pede anonimato. Manuel Vicente explicou-lhe logo o que tinha a fazer: “Para resolver o que tem a resolver, faça uns jantares com a Isabel dos Santos e com os gajos que mandam nisto tudo, que não são os ministros, mas sim os que estão abaixo deles, porque são quem mete a mão na massa”.
Pouco tempo depois, o recém-chegado diplomata já se tinha sentado à mesa com Isabel dos Santos e com o marido, Sindika Dokolo, tal como com outros decisores. “Os problemas resolviam-se logo todos”, conta.
Esta era já a Angola do pós-guerra, onde a economia crescia de forma ímpar a reboque do petróleo — disparando o crescimento anual da economia para os dois dígitos e ultrapassando até a China em percentagem. Foi acima de tudo nesta Angola, em que meio mundo conseguia gerar fortunas desde que não fizesse demasiadas perguntas, que Manuel Vicente se movimentou melhor do que ninguém, atraindo como nunca as principais petrolíferas do mercado.
“Manuel Vicente era respeitado pelos CEOs das petrolíferas do mundo inteiro. Não tanto por questões técnicas, mas porque era um durão, um nacionalista”, diz ao Observador uma fonte do setor, que, em tom de confesso exagero, nega mérito ao “Senhor Petróleo”: “Ele não tem mérito nenhum, quem tem mérito é a formação geológica de Angola. O mérito de Manuel Vicente só é o de ter esmifrado as petrolíferas até ao osso através do bónus de assinatura”.
Sobre o bónus de assinatura — o valor pago à cabeça pelas petrolíferas para conseguirem a concessão de um bloco petrolífero —, o ex-CEO da BP John Browne conta na sua autobiografia uma história sintomática do à-vontade de Manuel Vicente nas mais altas esferas do setor energético. A história remonta a 2001, altura em que a BP acedeu às exigências de ONGs como a Global Witness e aceitou divulgar o valor que teria pago ao governo angolano em bónus de assinaturas: 111 milhões de dólares, o que hoje equivale a cerca de 160 milhões de euros.
“A minha análise era que, uma vez que éramos obrigados a relatar esses pagamentos avultados feitos pela nossa sucursal inglesa, se publicássemos esta informação financeira não estaríamos a romper o contrato”, escreveu John Browne no livro Beyond Business: An Inspirational Memoir From a Visionary Leader, publicado em 2010 e sem edição portuguesa. “Angola teve uma análise diferente.” “Angola”, neste caso, é como quem diz Manuel Vicente.
Pouco tempo depois, John Browne recebeu uma carta assinada pelo Senhor Petróleo que lhe era dirigida mas que também foi reencaminhada para as outras majors petrolíferas. “Foi com enorme surpresa, e alguma incredulidade, que soubemos através da imprensa que a vossa empresa divulgou informação relacionada com as suas atividades petrolíferas em Angola, algumas das quais têm um caráter estritamente confidencial”, escreveu Manuel Vicente. Naquela missiva, apontava o dedo a “grupos organizados” que aplicavam “campanhas orquestradas” em nome de uma “pseudo-transparência” — sugerindo com tudo aquilo que a BP tinha sucumbido àquela “pressão”.
A seguir à carta, o CEO da BP foi chamado a Luanda para falar com o próprio José Eduardo dos Santos. Alinhado com o que Manuel Vicente escrevera, o Presidente explicou ao dono de uma das maiores petrolíferas do mundo que, se voltasse a fazer algo daquele género, a BP seria expulsa de Angola. “Depois deste episódio, a BP guardou a viola no saco”, conta uma fonte do setor energético. “E ainda hoje estão em Angola, com as regras que Manuel Vicente lhes impôs.”
Em 2013, numa entrevista à SIC, Manuel Vicente respondeu que para combater a corrupção era preciso implantar “a chamada cultura da meritocracia” — expressão à qual o próprio reagiu com uma gargalhada tímida, talvez causada pelos nervos de quem não está habituado a dar entrevistas. “Mas também é um processo, não se pode acabar com a corrupção de hoje para amanhã”, disse, com nova risada. Quando questionado sobre qual era a “arma mais dura” que o Governo de Angola estaria a usar contra a corrupção, respondeu: “É a transparência, é a objetividade e é a clareza das regras e, fundamentalmente, a legislação”.
Tudo isto foi acompanhado por José Eduardo dos Santos, que mantinha com Manuel Vicente uma relação de proximidade pessoal, mas de relativa “independência” técnica, descreve um diplomata ao Observador. “Nisso, José Eduardo dos Santos era muito parecido a Agostinho Neto, que metia quem entendia do assunto na Sonangol e preferia sempre deixá-los trabalhar”, resume um conhecedor do setor.
Por “deixá-los trabalhar” entenda-se gerar dinheiro: muito e depressa. Primeiro, para financiar a guerra. Depois, para financiar o regime — e, por inerência, o MPLA. É isso que explica Benjamin Augé, investigador do Instituto Francês de Relações Internacionais (IFRI) e especialista no setor energético, que fala de Manuel Vicente como uma espécie de tesoureiro do regime, durante e sobretudo após a guerra.
“A Sonangol de Manuel Vicente fez tudo o que foi necessário para o MPLA sobreviver. Não criou riqueza nem conhecimento técnico, porque a Sonangol não é uma empresa que produza petróleo. Em vez disso, aluga a exploração dos blocos às principais petrolíferas e a partir daí serve como fundo soberano”, diz aquele investigador.
“Isto seria um falhanço total se o objetivo fosse garantir o futuro de um país normal. Mas não foi isso que José Eduardo dos Santos pediu a Manuel Vicente”, continua. O pedido, alvitra Benjamin Augé, foi bem mais terreno: “O Presidente queria que Manuel Vicente trouxesse a maior quantidade de dinheiro e o mais depressa possível para garantir que o regime sobrevivia”.
É aqui que entra o dinheiro chinês — e, mais uma vez, foi Manuel Vicente que serviu de porta.
Foi um caso de conveniência mútua, em que a fome de um país se juntou à vontade de comer do outro. Por um lado, Angola precisava de financiamento para lançar a sua economia do pós-guerra. Por outro, a China tinha uma necessidade urgente de petróleo para manter um crescimento voraz. “Depois da guerra civil, Angola teve muitas dificuldades em conseguir financiamento junto de instituições como o FMI. E a China, que em 2003 teve uma enorme crise energética, porque tinha um acesso a combustível abaixo das suas necessidades, viu em Angola uma oportunidade interessante para conseguir receber mais energia”, resume a investigadora sul-africana Lucy Corkin, atenta observadora do dinheiro chinês em África, em particular em Angola.
Lida num papel, esta seria uma relação de benefício mútuo, em que ambas as partes ganhariam com o acordo: a China teria mais petróleo; e Angola teria não só investimento direto chinês como o trabalho a baixo custo de empresas de construção que ajudariam a erguer um país devastado pela guerra. Fazia tanto sentido que, de acordo com os dados recolhidos pelo think-tank norte-americano American Enterprise Institute, a China investiu um total de 24,42 mil milhões dólares (22,32 mil milhões de euros) em Angola entre 2005 e 2019. Com estes números, Angola passou a ser de forma constante e destacada o país em que a China investiu mais per capita em todo o continente africano.
Mas, na prática, a realidade que ali se formava era diferente.
“Se o dinheiro chinês tivesse sido utilizado da maneira prevista, podia ter sido um grande negócio. O problema é que, por exemplo no setor da construção, é preciso que haja uma série de pesos e contrapesos e um ambiente de transparência para garantir que o empreiteiro cumpre a sua parte”, explica Lucy Corkin.
É aqui que entra, mais uma vez, Manuel Vicente — não só como representante de facto do Estado angolano junto da China, como também na qualidade de empresário e homem de negócios a título individual. “Manuel Vicente estava no pico máximo da sua influência política quando começa a fazer negócios, como cidadão privado, com a China”, contextualiza a académica sul-africana. E foi nessa altura da sua vida que ajudou a fundar um enigmático, e acima de tudo lucrativo, conglomerado de empresas com morada no número 88 da avenida Queensway em Hong Kong.
A morada acabou por batizar aquele que ficou conhecido como o “88 Queensway Group”. O esquema em torno do grupo foi exposto num relatório publicado em 2009 pela US-China Commission (USCC), do governo norte-americano. Ali, foi explicado que, para lá das linhas de crédito celebradas entre o Export-Import Bank of China e o Estado angolano, que decorreriam “de forma relativamente transparente”, foi montado um sistema paralelo bem mais opaco — e, ao mesmo tempo, lucrativo para os seus participantes e lesivo para os cofres públicos angolanos.
Dentro do 88 Queensway Group despontam duas entidades cujos nomes vale a pena reter: a China International Fund Limited (CIF) e a China Sonangol. Esta última, trata-se de uma joint-venture entre a própria Sonangol (que a detém 30%) e outra empresa do universo da 88 Queensway Group. Tanto a CIF como a China Sonangol estavam nas mãos do mesmo homem: Manuel Vicente.
Através do Queensway Group, Manuel Vicente pôde vestir simultaneamente a pele de vendedor e de comprador, fazendo vários negócios com o Estado angolano. E no resto do mundo, também. Tendo como sócios o enigmático Sam Pa ou o vendedor de armas Pierre Falcone, Manuel Vicente e a Queensway Group compraram vários prédios em Nova Iorque — incluindo 49% do edifício do The New York Times.
De acordo com o relatório da USCC, enquanto diretor da China Sonangol, Manuel Vicente tratava de vender serviços ao Gabinete de Reconstrução Nacional (GRN) e à própria Sonangol. Desta forma, Manuel Vicente vestia simultaneamente a pele de vendedor (na China Sonangol) e de comprador (na Sonangol), ao arrepio da lei angolana.
Apesar de ter concentrado a maior parte do seu volume de negócios em Angola, o 88 Queensway Group e as suas várias ramificações expandiram o seu ramo de atividades para outros países: Argentina, Congo, Venezuela e Coreia do Norte. Nos EUA, chamaram a atenção em outubro de 2008 quando compraram imobiliário de referência em Nova Iorque, como o prédio do banco de investimento JP Morgan Chase, 49% da Clock Tower e uma igual percentagem do antigo prédio do jornal The New York Times — e quem os vendeu foi Lev Leviev, magnata israelita dos diamantes e sócio de Isabel dos Santos.
Nada disto se tratava, porém, de um one-man show. Ao lado de Manuel Vicente surgiram nomes de membros da elite político-militar de Angola, como o general Hélder Vieira Dias, mais conhecido como Kopelipa, responsável pelo GRN; o banqueiro português Hélder Bataglia, fundador da antiga Escom, braço não-financeiro do Grupo Espírito Santo em Angola; o empresário franco-argelino Pierre Falcone, que protagonizou o escândalo Angolagate na década de 1990, por vender ilegalmente armas ao MPLA durante a guerra civil; e ainda um misterioso homem de negócios chinês chamado Xu Jinghua mas conhecido por Sam Pa, o verdadeiro cérebro por trás do 88 Queensway Group, que terá conhecido José Eduardo dos Santos quando ambos estudaram na década de 1970 em Baku, no Azerbaijão, então uma república soviética.
Manuel Vicente tornou-se particularmente próximo de Sam Pa, homem que além de chinês é também angolano, tendo documentação em nome de António Sampo Menezes. No livro A Pilhagem de África (Vogais, 2015), do jornalista Tom Burgis, do Financial Times, conta-se a história de como Sam Pa conseguiu fazer negócio na Guiné graças a Manuel Vicente. Recebido pelo então ministro das Minas e Energia, Mahmoud Thiam, Sam Pa referiu a proximidade que tinha ao presidente da Sonangol. “Se é assim tão próximo de Manuel Vicente, volte cá com ele”, desafiou-o o guineense. Três dias mais tarde, Sam Pa cumpriu: aterrou na Guiné, dessa vez com Manuel Vicente ao lado. Foi o suficiente para conseguir uma reunião de imediato com o então Presidente da Guiné, Moussa Dadis Camara.
Mas nem tudo correu bem a todos.
Mahmoud Thiam, o ministro guineense que desafiou Sam Pa a mostrar-lhe Manuel Vicente, foi condenado em 2017 a sete anos de prisão nos EUA (uma vez que também tem nacionalidade norte-americana) por ter aceitado 8,5 mil milhões de dólares em subornos da CIF e da China Sonangol. O próprio Sam Pa também viria a ser detido em outubro de 2015, na sequência do combate contra a corrupção dentro do Partido Comunista Chinês levado a cabo por Xi Jinping. Desde então, Sam Pa passou a ser renegado por Pequim e está em parte incerta.
Nada indicaria que Manuel Vicente pudesse, alguma vez, conhecer tal sorte em Luanda. Antes pelo contrário. “Tudo o que Manuel Vicente fez nesses anos de loucura, fê-lo porque tinha as costas aquecidas por José Eduardo dos Santos”, assegura ao Observador uma pessoa que acompanhou em particular os negócios de Manuel Vicente com a China. “Uma das maneiras que José Eduardo dos Santos encontrou para se manter tanto tempo no poder foi alimentar todas as bocas que tinha à volta, que não eram poucas. Manuel Vicente agia como o gatekeeper das pessoas que queriam alimentar-se de José Eduardo dos Santos.”
De tão próximo que era do “primo” José Eduardo dos Santos, Manuel Vicente chegou a ser inevitavelmente visto como seu sucessor. Essa crença ganhou ainda mais força quando o “Camarada Presidente” exonerou Manuel Vicente como presidente da Sonangol e o chamou para ser número dois nas listas do MPLA para as eleições gerais de 2012. Após uma vitória com 71,84% dos votos, o Presidente José Eduardo Santos continuaria a ter daí em diante Manuel Vicente ao seu lado, agora como vice-Presidente do país.
Ainda assim, para muitos, o nome de Manuel Vicente estava longe de ser conhecido. Apesar de afamado nos corredores das petrolíferas de todo o mundo, o seu perfil não passou da discrição que lhe era imposta debaixo da figura de José Eduardo dos Santos. Até que, de um dia para o outro, o seu nome passou a ser parte do léxico comum não só em Angola como sobretudo em Portugal — mau sinal para um homem habituado a trabalhar na sombra.
Tudo aconteceu quando foi notícia que o procurador português Orlando Figueira era suspeito de receber alegados subornos da parte de Manuel Vicente. Em troca, o angolano terá pedido ao português que arquivasse uma investigação que questionava os 3,8 milhões de euros usados por Manuel Vicente para comprar um apartamento de luxo no Estoril.
Os timings descritos pela justiça portuguesa apontam para um primeiro encontro entre aqueles dois homens em Luanda, no mês de Abril. Nessa altura, terão tido uma conversa informal onde o procurador português se terá queixado do seu salário. Ato contínuo, em outubro de 2011, Manuel Vicente e Orlando Figueira fecham um alegado acordo em que, segundo a condenação do procurador, resultou no pagamento de cerca de 760 mil euros ao português em troca do arquivamento da investigação. Foi isso mesmo que aconteceu no início de 2012 — motivando, porém, uma nova investigação em torno de Orlando Figueira e Manuel Vicente, agora por suspeitas de corrupção, naquela que viria a ser conhecida como Operação Fizz.
Orlando Figueira viria a ser condenado a seis anos e oito meses de prisão efetiva em dezembro de 2018, após a justiça portuguesa ter determinado em primeira instância que ele era culpado de vários crimes, entre os quais o de corrupção passiva. Na decisão, ficou mesmo determinado que o corruptor de Orlando Figueira tinha sido Manuel Vicente. Porém, o então ex-vice-Presidente não chegou sequer a ser notificado pela justiça portuguesa. Por trás desse pormenor prático estava um enorme desconforto entre os governos de Portugal e Angola.
O caso arrastou-se durante vários anos, desgastando a imagem de Manuel Vicente e também as relações entre Portugal e Angola, onde o incómodo disparou perante a pretensão da justiça em julgar um governante de uma ex-colónia portuguesa, mesmo este gozando de imunidade pelo cargo desempenhado. Tanto no Governo de Pedro Passos Coelho como no de António Costa, soaram os alarmes em torno das consequências diplomáticas do caso. No Governo socialista, todo este processo ficou conhecido como “o irritante” — expressão cunhada por Augusto Santos Silva e repetida por António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa — e só viria a ter um ponto final quando o processo de Manuel Vicente foi transferido para Angola, já com João Lourenço como Presidente.
Para lá deste “irritante” público e assumido, gerava-se outro em torno de Manuel Vicente nos corredores do poder em Luanda. De tanto verem como Manuel Vicente servia de porta para José Eduardo dos Santos, muitos entenderam que o melhor a fazer era arrombá-lo.
Cansado, e já afetado pela doença que o obrigaria a fazer tratamentos no estrangeiro, primeiro no Brasil e depois em Espanha, José Eduardo dos Santos passou a delegar cada vez mais funções — com especial atenção para Manuel Vicente, quando este passou a ser vice-Presidente. “Havia dias em que ele simplesmente não ia a despacho. Ao fim do dia, só perguntava se havia problemas. Quem tratava de tudo por ele era o Manuel Vicente”, diz uma fonte conhecedora do poder angolano há várias décadas.
Tanto que, garantem várias fontes ao Observador, é em Manuel Vicente que José Eduardo dos Santos pensa inicialmente como seu sucessor. O primeiro passo efetivo nesse sentido foi dado quando o chamou para número dois do MPLA nas eleições de 2012 e fez dele vice-Presidente. E o segundo foi quando, mais à frente, o impôs como seu sucessor dentro do partido.
“José Eduardo dos Santos tinha uma preocupação, que era garantir que os interesses da família não eram tocados quando ele saísse. E o Vicente era de certo modo um homem de família”, diz um conhecedor dos corredores do MPLA.
Mas foi precisamente nos corredores e nos salões do MPLA que José Eduardo dos Santos chocou numa realidade que, sobretudo anos mais tarde, viria a mudar por completo a sua vida: o partido já não era dele. E foi isso que lhe fizeram ver quando José Eduardo dos Santos, velho e cansado, propôs o nome de Manuel Vicente para seu sucessor. “Fizeram-lhe entender o óbvio, que é que o Manuel Vicente é uma figura mal-amada dentro do partido”, atira uma fonte do comité central do MPLA. Outra pessoa, igualmente do partido, explica como o facto de Manuel Vicente nunca ter sido um militar na guerra de libertação ou na guerra contra a UNITA, além de ter à altura um processo pendente em Portugal, foi levantado por vários membros do Bureau Político como um impedimento incontornável para ser número 1.
Por esta altura, um relatório confidencial e interno da Sonangol foi divulgado. Assinado por Francisco de Lemos, presidente da Sonangol e primo de José Eduardo dos Santos por via da então primeira-dama, Ana Paula dos Santos, o relatório admitia que a Sonangol era “insustentável” e por isso estava perto da falência técnica. Até porque, lia-se no relatório, o modelo operacional da Sonangol tinha “fracassado” — ou seja, a receita de Manuel Vicente falhara.
Naqueles anos, Manuel Vicente aprendeu que, quando se é chamado Sr. Petróleo, é impossível sê-lo apenas para as partes boas. As más também fazem parte. O seu prestígio e o estado de graça junto do MPLA estavam intrinsecamente ligados ao valor do petróleo: em tendência de crescimento na década de 2000 (com um pico em 2008, em que o barril chegou a valer 151 dólares), em aparente consolidação entre 2010 e a primeira metade de 2014 (quando o barril estabilizou confortavelmente acima dos 100 dólares) e numa queda livre a partir de 2014 que se arrastou nos anos seguintes. Em 2016, o barril de petróleo afundou para os 26 dólares. E Manuel Vicente caiu com ele.
Mas Manuel Vicente não caiu sozinho — para um gigante destes tombar, teria de haver quem o empurrasse. Entre as mais de vinte pessoas ouvidas pelo Observador para este artigo, não é consensual quem o fez, nem como ou porquê. Certo é que José Eduardo dos Santos, depois de tanto empurrar o seu “primo” para cima, deixou que ele fosse empurrado para baixo.
E há quem entenda que o empurrão partiu mesmo de José Eduardo dos Santos.
O jornalista Sedrick de Carvalho fala numa tentativa de José Eduardo dos Santos encaixar ainda mais danos reputacionais ao associar-se a Manuel Vicente. “Ele tem por hábito distanciar-se das figuras mais próximas para dar a entender que não tem nada a ver com o que se está a passar”, diz o jornalista, sublinhando que “a reputação [de Manuel Vicente] estava queimada internacionalmente”. Um veterano da oposição acredita que também foi José Eduardo dos Santos que empurrou Manuel Vicente, tudo por causa de dinheiro. “Depois de o ter promovido para vice-Presidente, na perspetiva de ser delfim, José Eduardo dos Santos apercebeu-se de que Manuel Vicente era mais rico do que ele”, diz esse opositor, que pede anonimato. “Nós, africanos, temos a mania de dizer que o Presidente tem de ser a pessoa mais rica do país.”
É também para aí que aponta Justino Pinto de Andrade, conhecido opositor e antigo militante do MPLA, do qual saiu ainda durante o processo de descolonização. “A ideia do José Eduardo é que o poder é dinheiro. E Manuel Vicente tinha muito dinheiro também para ter poder”, diz. “Penso que isso também assustou um bocado o José Eduardo dos Santos.”
Análise semelhante faz o jornalista Graça Campos, ex-diretor do Semanário Angolense: “Foi o dinheiro que separou José Eduardo dos Santos e Manuel Vicente”.
Porém, explica aquele jornalista, o empurrão de José Eduardo dos Santos a Manuel Vicente só aconteceu depois de ele próprio ter sido empurrado para fazê-lo. E, embora não negligencie a influência do Bureau Político do MPLA junto do “Camarada Presidente”, Graça Campos aponta antes para uma pessoa da qual ainda pouco falámos neste artigo: Isabel dos Santos, a filha mais velha e preferida de José Eduardo dos Santos.
Esse mesmo relato é corroborado por uma fonte bem colocada do MPLA, que garante: “Quem tramou a sucessão a Manuel Vicente foi Isabel dos Santos, que o destruiu totalmente”.
O momento em que o estado de quase falência da Sonangol foi denunciado no relatório interno assinado por Francisco de Lemos terá cavado um enorme fosso entre Manuel Vicente e José Eduardo dos Santos — e Isabel dos Santos, à altura já considerada pela Forbes a mulher mais rica de África ao receber concessões governamentais em áreas como as telecomunicações, viu nele uma oportunidade junto do pai.
“Quando se sabe da dívida da Sonangol, José Eduardo dos Santos já não confia em mais ninguém para além da própria filha”, explica uma fonte bem colocada. Foi nessa altura que José Eduardo dos Santos pôs em marcha dois processos. Por um lado, o da sua retirada, que anunciou em março de 2016, com a garantia de que deixaria a vida política ativa em 2018. Por outro, deu luz verde a uma revolução na Sonangol — primeiro, contratando uma consultora da própria filha para desenhar um novo modelo para a petrolífera; depois, entregando aquela que é a maior fonte de riqueza às mãos da sua primogénita.
“Ele e a filha são duas pessoas, mas no fundo são a mesma carne. Ele tem um fraco enorme pela filha”, sublinha uma fonte do setor petrolífero. Benjamin Augé explica que, ao fazer um favor à filha, José Eduardo dos Santos desferiu também um duro golpe em Manuel Vicente. “O facto de ele ter aceitado todas as mudanças que aconteceram na Sonangol, incluindo a mudança de várias pessoas, foi um ataque direto ao homem que foi o protegido dele durante mais de duas décadas”, sublinha.
Em junho de 2016, quando Isabel dos Santos se sentou na cadeira de presidente da Sonangol, já ninguém precisava de convencer José Eduardo dos Santos que Manuel Vicente não era uma boa escolha para seu sucessor.
Mas a questão mantinha-se: se não Manuel Vicente, quem? José Eduardo dos Santos tinha outros nomes na algibeira.
Fontes próximas do processo dizem ao Observador que o “Camarada Presidente” propôs o próprio filho, José Filomeno dos Santos, mais conhecido por “Zenú”, que já desde 2012 era diretor do Fundo Soberano de Angola. A recusa dentro do Bureau Político do MPLA foi ampla, mas cautelosa no tom: apesar de José Eduardo dos Santos ter feito do filho brigadeiro mesmo sem este ter experiência ou treino, fizeram-lhe ver que ele não era no fundo um militar.
Passo seguinte, José Eduardo dos Santos propôs Bornito de Sousa, ele próprio membro do Bureau Político. Rapidamente lhe dizem que também ele não é militar, de pouco valendo o facto de ter sido líder da Juventude do MPLA (JMPLA) — argumento que o então Presidente terá testado, sem resultado. José Eduardo dos Santos terá sugerido ainda nomes de militares, mas que lhe eram associados em toda a linha, como Higino Carneiro. A insistência de nomear quem tinha como próximo e indefetível, sem atender às diferentes sensibilidades do partido, provam que José Eduardo dos Santos esperava que aquele processo seria bem mais simples e rápido.
Foi só depois de todos estes nomes que o de João Lourenço foi posto em cima da mesa por quem tantas negativas deu a José Eduardo dos Santos. General de três estrelas na reserva e político de boas relações dentro do MPLA, onde cultivou amizades mesmo durante a sua travessia no deserto, João Lourenço era um nome bem visto dentro do partido, do qual foi eleito vice-presidente em agosto de 2016. Nas Forças Armadas, ganhou prestígio ao ser nomeado ministro da Defesa em 2014 — já nessa altura, uma concessão por parte de José Eduardo dos Santos ao partido, depois de este ter exonerado o ministro e seu primo Cândido Van-Dúnem, apanhado num alegado esquema de sobrefaturação de rações de combate ao exército. A tudo isto acresce que, durante a sua longa travessia no deserto, João Lourenço nunca levantou ondas dentro e fora do partido.
“João Lourenço foi o menor dos males, na perspetiva de José Eduardo dos Santos”, resume uma fonte do MPLA. José Eduardo dos Santos cedeu. Em troca, confirmam várias fontes ao Observador, exigiu que Bornito de Sousa fosse candidato a vice-Presidente — vontade essa que acabou por lhe ser feita.
Todas estas movimentações ocorreram à porta fechada, sob o manto de silêncio que marca a atuação daquele partido que, embora ideologicamente distanciado do marxismo, nunca perdeu até aos dias de hoje o funcionamento típico do centralismo democrático. Por isso mesmo, a campanha eleitoral foi feita de sorrisos e cumplicidades, com José Eduardo dos Santos e a sua família, incluindo Isabel dos Santos, a aparecerem nos comícios de João Lourenço vestidos à MPLA.
Ainda assim, atrás daquela porta fechada havia já um clima de algum desconforto entre as hostes de José Eduardo dos Santos e as de João Lourenço. Num comício de campanha onde o ainda Presidente não esteve presente, João Lourenço terá rejeitado o que era dado como adquirido pela entourage de José Eduardo dos Santos: que o candidato teria os seus discursos escritos pela equipa do “Camarada Presidente”. “Ele começou a surpreendê-los e a fazer os seus próprios discursos contra a cristalização da corrupção”, aponta Justino Pinto de Andrade. Outra fonte, que pede anonimato, corrobora este relato — e acrescenta que o discurso que João Lourenço rejeitou lhe foi entregue em mãos por Kopelipa.
A campanha pautou-se então pelo slogan “melhorar o que está bem e corrigir o que está mal” — uma frase que o próprio José Eduardo dos Santos já tinha tinha dito nas eleições de 2012 — e, no meio de tudo isso, promessas de combate à corrupção. Vendo de fora, muitos não acreditaram naquelas palavras, atribuindo-lhes a pouca importância que merecem os slogans gastos e vazios. Sem surpresas, o MPLA venceu as eleições com 61,1% dos votos e uma maioria na Assembleia Nacional.
Parecia estar tudo na mesma. Até que o bem-comportado “Mimoso” decidiu que muito melhor do que sair do quintal (como nunca ousava fazer como criança) seria mandar nele.
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