Encostado à uma palmeira na marginal de Luanda, um ex-militar na casa dos 40 anos, desempregado de olhar fixo num pescador que procura peixe na baía, diz sem emoção: “Roubaram tanto que nos deixaram na miséria quando podíamos ter uma vida digna’.
O sujeito da frase é amplo: “A família do Presidente José Eduardo, os generais, os amigos, o MPLA”.
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O Presidente não? A pergunta não tem resposta factual, percebeu o Observador depois de a repetir vezes sem fim em Luanda. Não tem empresas em nome dele, tem mansões em Angola e na África do Sul, uma grande fazenda no nordeste do Brasil, “mas isso não vale grande dinheiro”, afiança David Mendes, que durante anos investigou os bens de JES e zurziu contra a corrupção. “Pode ser que a filha o representasse mas, segundo os nossos estudos e as informações que temos, objetivamente, não é um multimilionário.
E mesmo o que sabemos das contas que tem não é grande dinheiro se compararmos com o de Manuel Vicente”, assegura o advogado. Há uns anos, circulou que a sua fortuna estava avaliada em 20 mil milhões de dólares (mais de 14,4 mil milhões de euros), informação que o JES desmentiu em abril de 2011 num discurso perante o Comité Central do MPLA.
Para Domingos Jaime Ngola, que antes da Covid-19 esperava que uma editora portuguesa o chamasse a Lisboa para editar um livro de poemas, é indiferente. “Se não roubou, promoveu e permitiu o roubo, logo é responsável”, diz o licenciado em Direito que está há muito tempo sem um emprego.
Já em 1999 a Global Witness assacava a responsabilidade última a JES: “A corrupção começa com o chefe de Estado, rodeado por uma clique de políticos e clientes de negócios”.
José Eduardo dos Santos controlava todos os negócios, adiantava o relatório desta ONG, baseando-se numa auditoria da Ernst&Young às contas da Sonangol em 1992 e 1993 que referia a atribuição de quase 5 milhões de dólares num alínea intitulada “Bónus para o Chefe de Governo”. Por outro lado, a organização ia mais longe ao dizer que em alguns casos, como o da CADA (Companhia Angolana de Distribuição Alimentar) sediada nas Ilhas Virgens Britânicas e que teve um contrato público de 730 milhões de euros para alimentar as Forças Armadas, os generais não eram senão a máscara do então Presidente.
Na verdade, JES não se pode eximir à leitura feita por Domingos Jaime Ngola. Praticou um poder centralizado em que pouco lhe escapava. A Constituição, desenhada ao seu gosto, permitiu-lhe (como continua a permitir a João Lourenço) ser dono do poder executivo, controlar o legislativo (chegando a anular a função chave do Parlamento: fiscalizar o Governo) e o judicial (com a nomeação dos juízes dos tribunais superiores e a tutela direta da Procuradoria-Geral da República) e ser chefe das Forças Armadas e policiais.
Por outro lado, dominou a maioria dos media e não se limitou a definir a política económica — intervinha em concreto e em pormenor. Um destacado jornalista angolano especifica que ia ao detalhe de dizer que A tinha 10% e B 5% de determinada empresa das águas. Isto é, dividiu a riqueza com a discricionariedade soberana de servir os seus próprios interesses.
Isto não o impediu de proclamar o sonho de “uma sociedade inclusiva em que todos se sentissem bem e beneficiassem da prosperidade”. Em 2004, com a subida do preço do petróleo, prometeu uma vida de classe média, toda a gente poderia ter carro e casa. Não aconteceu — o “pai grande” não deu de comer a todos, como muitos acreditaram.
A postura de José Eduardo dos Santos “foi péssima”, condena Adalberto da Costa Júnior, presidente da UNITA. O engenheiro não se conforma com a experiência de ver o país desperdiçar centenas de biliões de dólares: “Angola poderia, sem outro valor, viver dez anos de orçamentos gerais de Estado em reserva, para além daquilo que poderia produzir com uma garantia de estabilidade sem limites. Tudo desapareceu. Não é que tenha sido tudo roubado pelos dirigentes só, mas a falta de controlo levou a que existisse um assalto completo a Angola. Mas um assalto permitido.”
Funge e leitão assado em vez das iguarias do Ritz
No século XXI angolano, a fortuna de alguns era tão despudoradamente ostensiva que os escândalos foram-se repetindo. Um exemplo só, da família presidencial: espalhou-se a notícia de que o filho mais velho de José Eduardo dos Santos com Ana Paula, Eduane Danilo dos Santos, estudante de 25 anos, comprara um relógio por 500 mil euros (em adolescente, a sua mesada ascenderia aos 20 mil dólares) num leilão em Cannes para apoiar a luta contra a sida. Danilo veio depois esclarecer que pagara os 500 mil euros não por um relógio, mas por uma coleção de quadros (na realidade, de fotografias) de George Hurrell e em representação da sua associação “Espírito de Criança”.
Isto para não falar de Isabel dos Santos. Nos mesmos anos em que as epidemias matavam milhares de angolanos, a primogénita de JES mostrava-se cintilante nas redes sociais ao lado de celebridades como a actriz Lindsay Lohan ou a socialite Kim Kardashian (quando apresentou o diamante mais caro do mundo, avaliado em 56 milhões de euros, comprado pela sua joalharia, De Grisogono). O que irritava muitos angolanos. Não precisavam de ser confrontados com a sua vida luxuosa, de que conhecem muitos exemplos.
José Eduardo dos Santos não só não pôde dizer que não sabia, como também nunca disse que se opôs a qualquer despesa absurdamente exagerada e supérflua (como os gastos em árvores de Natal vindas de Nova Iorque ou os 500 mil dólares de champanhe chegado de Lisboa) dos seus próximos.
“Não se percebe por que roubavam tanto, ele até é um homem de gostos simples”, comenta Rafael Marques. No faustoso casamento da filha Tchizé (em que terá gasto mais de um milhão de dólares, segundo alguma imprensa da época), virou as costas às “iguarias preparadas pelo chef do Ritz e foi comer leitão assado com funge fora do banquete”.
Compreende-se que, como avança António Monteiro, “quando há guerra e há violência, haja também menos transparência e menos controlo do que se passa”. O difícil é justificar a corrupção depois de 2002 e nos anos em que Angola teve um notório crescimento económico à custa do boom petrolífero.
“Na altura do boom, das chamadas vacas gordas, sentimos que o país estava a nadar em dinheiro, sentia-se por todo o lado”, recorda Reginaldo Silva, um dos mais reputados jornalistas angolanos e sobrevivente do 27 de Maio de 1977, hoje membro da Entidade Reguladora da Comunicação Social Angolana. “Aquele dinheiro estava a ser usado na reconstrução do país, na resolução dos problemas sociais, tentando construir-se uma economia mais sustentável, mas, a bem da verdade, poucas pessoas estavam a enriquecer muito, ao lado das outras tantas que deveriam beneficiar. E, sobretudo, não estava a combater a pobreza com profundidade, que é o nosso grande problema do pós-guerra”.
José Eduardo dos Santos não só passou a controlar as principais empresas e indústrias do país, como, quando o parlamento tornou isso ilegal, transferiu as rédeas para Isabel dos Santos, culminando, em 2016, com a Sonangol, a petrolífera pilar do regime que está na dependência directa do Presidente. Essa foi só a mais chocante passagem de uma empresa, neste caso pública, para a esfera da filha. A primeira, significativa, dera-se em 1999, num controverso negócio que prejudicou os interesses do Estado português: JES entregara por ajuste directo a exploração da região diamantífera do Camatué, na Lunda Norte, a uma empresa de Isabel dos Santos.
Em 2013, a revista Forbes acusou a “Princesa”, como é conhecida depreciativamente em Angola (a par de “Leoa”), de ter feito riqueza à custa da corrupção e da ajuda do pai. Ela reagiu: poucos meses depois, comprou os direitos da revista para uma edição em língua portuguesa. Seguindo o exemplo do pai, sabia calar os adversários sem precisar de violar abertamente a liberdade de imprensa. Como dizia então um general do MPLA a um empresário português, “os que sabem ler são todos nossos, deixamos estes jornais sair só para parecer uma democracia”. “Estes jornais” eram os que denunciavam a corrupção e o nepotismo de José Eduardo dos Santos; na segunda década do século XXI, alguns chamavam ladra a Isabel dos Santos mas em geral não eram encerrados. A repressão e a asfixia da opinião fazia-se de outra forma: processando, prendendo e ameaçando jornalistas e controlando todos os meios de comunicação social com alcance nacional (não havia pluralidade na TV angolana), incluindo a rádio, o meio mais influente fora de Luanda.
A filha mais velha chegou a ser considerada a mulher mais rica de África (com mais de 3,4 mil milhões de euros, calculou a Forbes), a primeira bilionária do continente, embora numa entrevista ao Observador não o tenha admitido.
Sempre disse (e desde que é arguida em processos judiciais tem-no repetido à exaustão) que o pai não teve qualquer influência nos seus negócios. Todos sabem que não foi assim. “Apesar da sua natureza ostensivamente privada, os investimentos de Isabel contam com o maior apoio político. ‘Quando negociamos com ela, sabemos que estamos a negociar com o Palácio’, afirmou um importante investidor português”, escreve Ricardo Soares de Oliveira em “Magnífica e Miserável, Angola desde a Guerra Civil”.
A mesma premissa foi confirmada ao Observador no terraço do hotel Baía por um reputado advogado de negócios e por Reginaldo Silva: “Sempre vi [na] Isabel dos Santos a cara do pai em termos de influência do seu próprio poder e da forma como foi subindo na hierarquia económica e social”. Um “alter ego de José Eduardo dos Santos”, adiciona um analista político angolano.
A filha mais velha pode ser a preferida do pai, mas este não descurou os interesses de outros filhos. Em 2012, criou um Fundo Soberano de 5 mil milhões de euros não fiscalizado pelo Parlamento, que acabou, seis meses depois, em 2013, por entregar ao filho Zenu para gerir.
Três anos depois começam as polémicas com o Fundo: primeiro aparece nos Panama Papers como eventual veículo para lavar dinheiro; em 2017 aparece nos Paradise Papers como estando ligado a possíveis ilegalidades. O pesadelo chegou com João Lourenço: exonerado em 2018, ficou em prisão preventiva durante seis meses e acabou mesmo condenado a cinco anos de prisão pelo crime de “burla por defraudação” e “tráfico de influências”.
Também os filhos Tchizé e Coreón Du foram contemplados com benesses: possuem a Semba Comunicação, que geria o segundo canal da TPA até isso lhes ser retirado por João Lourenço. O Maka Angola de Rafael Marques calcula que, só em 2016, em contratos com o Estado, a empresa recebeu 87 milhões de euros. Tchizé, que foi deputada do MPLA até ser suspensa em 2019, chegou também à banca em 2015, ao fundar o Banco Prestígio. A sua diamantífera Di Oro (em que Coreón Du tem 10%) recebeu uma licença, dada por decreto presidencial, de prospeção, inserida num consórcio em que está a brasileira Odebrecht, segundo o Maka Angola.
Um outro filho, José Avelino Gourgel dos Santos, Joess, nascido da relação com Maria Bernarda Gourgel, é conhecido como o empresário dos plásticos, porque a sua empresa, a Neosol, tem 80% de uma grande companhia angolana, a Angoplaste, que tinha uma série de benefícios outorgados por decreto presidencial.
Já três dos quatro filhos que José Eduardo dos Santos teve com Ana Paula — Danilo, Joseana, Eduardo —, entraram igualmente no mundo dos negócios: não se sabe com que dinheiro, constituíram com a mãe o Deana Day Spa e, em Setembro de 2016, Danilo tornou-se no principal rosto dos accionistas do Banco Postal de Angola (em que Joseana, Eduardo e o quarto filho do casal dos Santos, Houston, tinham uma participação minoritária). A licença foi revogada em 2019 pelo Banco Nacional de Angola.
Contrariamente aos outros ditadores, como Kadhafi, por exemplo, “não tinha ninguém disposto a morrer por ele”, diz José Eduardo Agualusa. “Ninguém o seguia pelo seu carisma ou pensamento. Apenas por interesse. Não tinha amigos.”
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