Apartir de 11 de Novembro de 1975, dia da independência de Angola, José Eduardo dos Santos (JES) ficou mais próximo de Agostinho Neto. Primeiro Ministro das Relações Exteriores da então República Popular da Angola, obteve o reconhecimento internacional do governo e a entrada do país na Nação Unidas em 1976.
Nomeado vice-primeiro-ministro de 1977 a 1978, ocupou a seguir um cargo importantíssimo, o de ministro do Plano. No partido, ascendia a secretário do Comité Central para a Educação, Cultura e Desportos, para a Reconstrução Nacional e para o Desenvolvimento Económico e Planificação (de 1977 a 1979).
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Nunca se lhe conheceram grandes bibliotecas nem preferências literárias, mas nessa fase, antes ainda de o MPLA falar no assunto, José Eduardo dos Santos lia Poder Popular (editado pelo Movimento de Esquerda Socialista). Tinha-o pedido emprestado a Margarida Paredes, a quem Nuno Teotónio Pereira enviara um exemplar de Lisboa.
Mesmo sendo ministro, José Eduardo dos Santos ainda não conseguira levar os pais para a “cidade do asfalto”. Margarida Paredes ia com Tatiana levar-lhes “mantimentos, roupas e dinheiro”: “Viviam num dos casebres de pau-a-pique mais pobres do musseque Rangel, sem mobiliário, dormiam na esteira e cozinhavam num fogareiro”.
A russa “usava esquemas de mercado informal, via as oportunidades de fazer dinheiro e aproveitava-se da situação — não tenho a menor dúvida que a Isabel foi educada pela mãe nesse sentido”. Tatiana foi a primeira pessoa a quem ouviu falar em dólares: “Ela adquiriu as cadeiras do episcopado e queria que eu vendesse aquilo em dólares!”, conta uma amiga
Iam no carro de Margarida, José Eduardo só comprou um automóvel algum tempo depois e graças a um esquema engendrado por Tatiana. “Com a guerra às portas de Luanda, e depois de os brancos portugueses terem saído, não havia comida”. A portuguesa recebia todas as semanas um caixote que a mãe lhe enviava de Lisboa, pela TAP: “Mandava-me tudo, queijo, bacalhau, sempre duas garrafas de vinho. Eu distribuía o que tinha pelos amigos. A Tatiana sabia sempre quando o meu caixote chegava e pedia-me o vinho. Ela só estava interessada nas garrafas para servirem como moeda de troca. Nessa altura, quem arranjasse uma grade de cervejas era rico e o vinho, então, tinha um grande valor. E eles trocaram as garrafas de vinho por um carro que tinha as mudanças no volante [Renault 4L].” Foi Margarida, que nem tinha carta de condução, mas apenas uma autorização do Ministério da Defesa, quem ensinou Tatiana a conduzir.
A russa, “talvez porque vinha habituada à cultura da URSS, usava esquemas de mercado informal, via as oportunidades de fazer dinheiro e aproveitava-se da situação”. “Não tenho a menor dúvida de que a Isabel foi educada pela mãe nesse sentido”, pensa a ex-guerrilheira do MPLA. Uma outra amiga ri-se ao pensar que Tatiana foi a primeira pessoa a quem ouviu falar em dólares: “Ela adquiriu as cadeiras do episcopado e queria que eu vendesse aquilo em dólares!”
A história dos ovos que vendia aos 6 anos de idade, invocada por Isabel dos Santos para atestar o seu jeito para o negócio desde nova, “é mesmo verdade”, assegura o vizinho de Alvalade. A mãe confirma: “Quando JES era ministro do Planeamento, Tatiana já vendia os ovos, conseguidos através dos cartões das lojas”.
Era o tempo da candonga, como se dizia, onde Rafael Marques vê a génese dos mecanismos de corrupção em Angola. “Nesse período, tínhamos outro sistema de segregação. Havia lojas para os dirigentes, outras para os cooperantes, para os estrangeiros — sobretudo europeus —, a loja para diplomatas, a dos quadros (a loja complementar que levou muita gente à universidade para ter cartão) e havia as lojas do povo. Tínhamos acesso a dois ou três quilos de açúcar por mês, para cada agregado familiar, um litro de óleo e pouco mais do que isso”.
Era “o modelo soviético, que gerava todo o tipo de esquemas de corrupção”. “Traficavam-se os ovos, bens alimentares e essenciais que era o que as pessoas mais procuravam, calçado e roupas”. Depois “houve um crescendo”, o sistema passou “a ser feito de biliões” num “modelo com o nome de socialista mas que era extremamente corrupto”.
Durante alguns anos, José Eduardo guiou esse automóvel, ainda longe dos dias em que se deixava conduzir dentro de um aparatoso esquema de segurança. Quando o Presidente saía, as outras viaturas que se cruzassem com a comitiva tinham que encostar na berma e colocar as mãos no volante na posição “10 e 10” — se alguém não o fizesse, arriscava-se a ser baleado. Um português que não cumpriu estas regras terá sido morto assim, alvejado pelos seguranças, escreveu o diplomata português Seixas da Costa no seu blogue.
O motorista José Teixeira lembra-se bem de como era: “Um dia antes, as ruas por onde ele ia passar já estavam todas fechadas. O ex-Presidente não se movia dentro de Luanda sem uns trezentos tropas, isto tudo ficava cheio de militares”, comenta, apontando para as principais vias de Luanda, pouco depois de deixar a Corimba, onde JES construiu um grande condomínio no Morro da Luz, para onde acabou por levar a mãe depois de a tirar do bairro Rangel.
Foi Milucha quem conquistou José Eduardo e não o contrário. “Sei que foi ela que o seduziu porque eu e mais três amigos fizemos uma aposta na qual ela se comprometia a conquistá-lo num mês. Ela ganhou a aposta”. Teve com ele dois filhos mas não um casamento. JES chegara surpreendentemente a Presidente da República e ela não podia ser primeira-dama.
Entretanto, a vida pessoal de José Eduardo dos Santos tornava-se mais atribulada. “Depois da entrada em Luanda da primeira delegação do MPLA, em novembro de 1974, os camaradas ficaram deslumbrados com as jovens urbanas, sofisticadas e cultas e a maior parte abandonou as companheiras da mata (ou do maquis) e casaram-se com jovens mestiças e negras das cidades. José Eduardo não escapou a esta lógica e em 1977, quando era ministro das Relações Exteriores, engravidou a secretária [“Necas”, Filomena de Sousa], a mãe de Zenú [José Filomeno dos Santos]”, revela Margarida Paredes.
A relação com Tatiana, que começara a ter dificuldades em Brazzaville, ia piorando. “Ela tinha muito medo que ele a mandasse de volta para a Rússia”, confidencia uma amiga. Isso ele não fez, mas, “quase na mesma altura de Necas, apaixonou-se loucamente pela Milucha [Maria Luísa Perdigão Abrantes], uma mestiça extrovertida”. “Ela apareceu com ele num jantar e, enquanto dançavam, nós, as amigas, ríamo-nos: bonito mas muito magrinho, bem-educado mas não simpático, muito chochombo [sem graça, introvertido], apagado, o oposto dela, divertida, animada, exuberante”.
Margarida defende que foi Milucha quem conquistou José Eduardo e não o contrário. “Sei que foi ela que o seduziu porque eu e mais três amigos fizemos uma aposta na qual ela se comprometia a conquistá-lo num mês. Ela ganhou a aposta”. Teve com ele dois filhos — Welwitschia José (Tchizé) e José Eduardo Paulino dos Santos (Coréan Dú) – mas não um casamento. José Eduardo dos Santos chegara surpreendentemente a Presidente da República e ela não podia ser primeira-dama.
Tatiana: Sete anos à espera para casar e uma ferramenta muito útil para o poder
Em 1963, José Eduardo dos Santos conseguiu uma bolsa para estudar na antiga União Soviética. Um destino que iria ser determinante na sua história de poder — os russos foram (quase) sempre um aliado de peso no seu percurso. Com outros jovens angolanos, apanhou um avião da Air France até ao Gana, com escala em Bamako e Lagos. Aí, mudou para um avião soviético que o levou a Moscovo, passando por Casablanca e Belgrado. Na capital da URSS, os angolanos foram distribuídos por várias cidades e José Eduardo seguiu para Baku, a grande cidade costeira do mar Cáspio e centro de treino ideológico.
Licenciou-se em 1969 em Engenharia de Minas (segundo os documentos da PIDE e o historiador Batsîkama) ou em Engenharia de Petróleos (segundo a biografia oficial) no Instituto de Petróleo e Gás de Baku, liderando ao mesmo tempo a Secção dos Estudantes Angolanos na URSS. Na capital do Azerbaijão, talvez com o crachá da JMPLA ao peito – um emblema de liga leve, dourado, com o fundo azul e um facho vermelho –, conheceu Tatiana Kukanova. Ela, campeã de xadrez, estudava Geologia e ele queria muito casar com aquela russa loira. Teve de esperar seis a sete anos.
E aqui, como em muitos outros momentos da vida do ex-Presidente angolano, as versões variam. Uns, como uma amiga de Tatiana que falou ao Observador sob reserva de identidade (pedido repetido por muitas pessoas contactadas para este artigo) sustentam que a dificuldade veio do racismo do meio em que vivia, da sua família e dos seus pais: “Ninguém via com bons olhos que uma branca se casasse com um preto”.
Outros, como a antropóloga Margarida Paredes, amiga do casal nos anos 70, apesar de acreditarem que “a família de Tatiana se tenha oposto porque a sociedade soviética era profundamente racista” vêem o motivo decisivo no partido. “Esperaram seis anos pela autorização do casamento porque o MPLA tinha como política não permitir o casamento dos camaradas com mulheres estrangeiras”, diz ao Observador a portuguesa que se fez guerrilheira no MPLA. Já Isabel dos Santos atribuiu, numa entrevista de 2012 ao Financial Times, a responsabilidade da demora a um dos mais poderosos serviços secretos do mundo, o russo KGB.
José Eduardo dos Santos nunca esclareceu este pormenor da sua vida. Nem este, nem quase nenhum. “Não gosto de falar de mim”, disse a José Eduardo Moniz, numa entrevista à RTP, em 1990. Aliás, a quase inexistente informação sobre o ex-Presidente, até mesmo sobre o cancro que teve durante muitos anos e que o terá levado para Barcelona, por exemplo, fez com que gestos sem história como a partilha no Instagram de uma selfie pela filha mais nova, Joseana, em 2014, animasse as redes sociais. Ali está José Eduardo dos Santos, sem sapatos (abandonados debaixo da cadeira), aparentemente a ver televisão e sem o Big Bang Angola (relógio de luxo da marca suíça Hublot com as insígnias do país e um diamante, que custa entre 12 e 20 mil euros) que lhe ofereceram em 2012.
Talvez por isso não cause estranheza uma das palavras escolhidas por José Eduardo Agualusa, escritor luso-angolano e crítico do ex-Presidente, para o definir: “opaco”. Uma opacidade, reforça a investigadora Margarida Paredes, que cobria o seu autoritarismo: “Ninguém sabia o que ele verdadeiramente pensava”. O britânico Edward George, especialista em assuntos angolanos, teoriza e alarga a mesma ideia. Chama ao regime criado por José Eduardo dos Santos uma “criptocracia” — sistema com alavancas do poder ocultas.
Discrição é mesmo a sua imagem de marca. Todas as pessoas com quem o Observador falou e que trabalharam ou contactaram com JES, assinalam o mesmo: reservado, fechado, formal. Alguns veem aí uma das armas que o ajudaram a perpetuar-se no poder (mas já lá vamos): foi o segundo chefe de Estado africano mais tempo em exercício e sem nunca ter sido nominalmente eleito. À sua frente estava apenas Teodoro Obiang, o déspota da Guiné Equatorial, e com uma vantagem curtíssima, um mês e alguns dias. A revista Forbes posicionou-o num outro ranking: o terceiro não monarca com mais anos no poder no planeta.
Os inimigos não conheciam o que lhe ocupava a cabeça, os amigos aparentemente também não (“as mulheres muito menos”), o que o tornava imprevisível e “perigoso, além de calculista”.
Discreto sim, mas “vaidoso e arrogante (nas reuniões mandava calar os ministros)”, soma o sociólogo angolano Paulo Inglês. “Não era como outros ditadores africanos, não fazia a ostentação de riqueza como o vizinho [e amigo] Mobutu [Sese Seko]. A sua extravagância era outra: a de mandar em Angola, uma quase obsessão”.
Os inimigos não conheciam o que lhe ocupava a cabeça, os amigos aparentemente também não e “as mulheres muito menos”, afiança uma amiga de uma delas, Maria Luísa Abrantes, “Milucha”. Tudo isto tornava-o imprevisível e “perigoso, além de calculista”, aponta Marcolino Moco, primeiro-ministro de 1992 a 1996 (que também trabalhou com Zédu a partir de 1986 no MPLA, de que foi secretário-geral).
Dava raríssimas entrevistas, todas muito estudadas, algumas com cábulas visíveis, sem perguntas surpresa, sem qualquer espontaneidade. As conferências de imprensa não faziam parte dos seus hábitos e mesmo os seus discursos públicos, escritos por outros, sempre lidos, sem improvisos e muito repetitivos, foram poucos.
“Quando aparecia em público, contra o seu hábito, a sua presença era muito valorizada”, sublinha o embaixador António Monteiro. O diplomata português lidou com José Eduardo dos Santos entre 1990 e junho de 1993, ao integrar a delegação que mediou as negociações e a execução dos acordos de paz em Angola e ao chefiar a missão temporária de Portugal junto das Estruturas Político-Militares em Luanda.
Um certo mistério sobre si ajudou a cimentar o culto da personalidade: “A cara dele estava por todo o lado, no nosso dinheiro, no nosso bilhete de identidade…”, queixa-se ao Observador Luaty Beirão, um dos 17 jovens activistas (os 15+2, os chamados revus, de “revolucionários”, movimento de 2015 que marca o início do desgaste político de JES) que fez 36 dias de greve de fome depois de ser preso.
A ninguém passava despercebido o 28 de agosto, dia de aniversário, que era quase feriado. José Teixeira, motorista da Kubinga (uma espécide de Uber angolana) diz que era “um dia de alegria para todo o mundo, para todos os angolanos”, com “passeatas, maratonas, muitas festas, bebidas baratas e música, grandes jantares [como este em que se vê Zédu, Ana Paula e vários filhos a dançarem ou este em que a filha Joseane conta como ele tem ‘espírito leve’]”.
Havia atividades culturais, concertos e muito desporto, como a conhecida “Taça do Presidente”. “Até torneios internacionais se realizavam numa lógica de endeusamento do líder“, concorda Sérgio Calundungo, coordenador do Observatório Político e Social de Angola (OPSA).
Por outro lado, como falava pouco, abria a porta a que outros se aproveitassem disso para aplicar as suas próprias decisões, invocando “ordens superiores”, frase muito repetida em Angola, frisa um jornalista angolano que não quis ser identificado.
Além de tímido e fechado, “resolvendo as coisas através de terceiras pessoas”, era também muito “dissimulado”, fazia as coisas pela calada, adiciona Marcolino Moco.
O ex-primeiro-ministro angolano, que foi o primeiro secretário da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) e hoje é professor universitário e administrador não executivo da Sonangol, dá como exemplo “o embuste feito a todo o país” com a aprovação da Constituição em 2010, em que o Presidente viu reforçados os seus poderes “quase sobrenaturais” ( Vital Moreira chamou-lhe uma constituição “hiperpresidencialista”, Rafael Marques um “sistema imperial”).
No ano anterior, quando o MPLA avançava no seu programa para as eleições presidenciais e fazia a agenda nacional de consenso com base na anterior Constituição, Zédu viajou para o estrangeiro e, no regresso, passou por Portugal, onde anunciou inesperadamente o novo modelo de eleição do Presidente: deixava de ser escolhido diretamente, seria o primeiro nome do partido mais votado nas eleições legislativas.
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