Combate à corrupção não passará de um teatro montando, enquanto poder político dominar o judicial

João Lourenço é um presidente da República todo-poderoso. A Constituição de Angola assim o definiu, e a verdade é que dificilmente os restantes órgãos governativos poderão fazer valer opiniões contrárias à do chefe de Estado, a menos que este o permita. Para instaurar no país um verdadeiro regime democrático, é necessário acautelar esta situação e não permitir a existência de figuras plenipotenciárias. Irá João Lourenço ter coragem para esta mudança?
por RUI VERDE

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Um recente cartoon de Sérgio Piçarra retrata com toda a impressividade o sentimento de muitos face às políticas de João Lourenço. Nessa caricatura, o presidente da República encontra-se prostrado, exausto, encostado às cordas num ringue de boxe. Na sua camisola amarrotada, pode ler-se um esbatido “Luta contra a corrupção”. Do outro lado do ringue, um diabo com formas humanas levanta os braços, vitorioso. Na sua camisola, lê-se “trapalhadas governativas” e “trapalhadas da PGR”.

Foi no novo presidente da República que se depositaram todas as esperanças relativas a um futuro próspero e livre de corrupção em Angola, e será também nele que se verterão todas as desilusões.

O presidente da República tem um papel fundamental na organização política angolana. Não é um mero símbolo ou o líder de um dos poderes do Estado: é a figura central do Estado. Na verdade, voltando à caricatura do Sérgio Piçarra, onde se lê “trapalhadas governativas e “trapalhadas da PGR”, podia-se ler “trapalhadas do Presidente da República”.

O presidente da República é a figura nuclear da Constituição angolana de 2010 (CRA), a quem foram atribuídos múltiplos poderes. É Chefe de Estado (artigo 119.º), titular do poder executivo (artigo 120.º), responsável pelas relações internacionais (artigo 121.º), comandante-em-chefe das Forças Armadas Angolanas (artigo 122.º) e responsável pela segurança nacional (artigo 123.º). Devido as estas funções acumuladas, os poderes do presidente são vastíssimos e vão desde a nomeação de juízes, ministros e embaixadores ao exercício de poderes legislativos próprios. Em relação ao Conselho de Ministros, a CRA é ridiculamente redutora, definindo-o como órgão auxiliar do presidente (134.º) e especificando que os ministros só actuam no âmbito de poderes delegados pelo presidente (artigo 137.º).

Esta exaustiva densificação dos poderes e das funções presidenciais é muitas vezes comparada à cometida pela Constituição dos Estados Unidos ao seu presidente. Aí, no artigo 2.º, secção 1, determina-se que “o Poder Executivo será investido num Presidente dos Estados Unidos da América”, e na secção 2 são definidos os seus poderes, estabelecendo-se que “o Presidente será o chefe supremo do Exército e da Marinha dos Estados Unidos, (…) terá o poder de indulto e de graça por delitos contra os Estados Unidos, excepto nos casos de impeachment”. Além disso, o presidente poderá, “mediante o parecer e a aprovação do Senado, concluir tratados, desde que dois terços dos senadores presentes assim o decidam. Nomeará, mediante o parecer e a aprovação do Senado, os embaixadores e outros ministros e cônsules, juízes do Supremo Tribunal, e todos os funcionários dos Estados Unidos cujos cargos, criados por lei, não tenham nomeação prevista na Constituição”.

Posto isto, qualquer leitor atento conclui que a imensidão dos poderes atribuídos ao presidente em Angola não é comparável aos poderes que a Constituição americana conferiu ao seu presidente. E, além desta diferença, há uma maior: o presidente dos Estados Unidos precisa de aprovação do Senado para a maior parte das suas nomeações. Assim, os poderes presidenciais estão submetidos a controlo por parte dos outros poderes. Tal não acontece em Angola. Os poderes presidenciais não estão submetidos a qualquer controlo efectivo.

Deste modo, não se percebe a loucura que assolou dois juristas consagrados, o português Diogo Freitas do Amaral e o angolano Carlos Feijó, quando, na sua obra Direito Administrativo Angolano (2016, p. 298) escreveram que “[o]sistema, concebido pela CRA, limita de algum modo o poder presidencial, ao contrário do que acontece na Constituição dos EUA onde a aprovação do Presidente não carece nunca da aprovação dos ministros (‘Secretários’)”. Referem-se os ilustres autores a uma norma constitucional angolana que obriga o presidente a ouvir o Conselho de Ministros. Mas qual é a relevância de ouvir auxiliares com poderes delegados? Mesmo que eles tenham opinião contrária, o presidente decide como quiser, e pode demiti-los ou retirar-lhes poderes. Nos Estados Unidos, o presidente está sujeito a uma verdadeira sindicância dos outros poderes, o que não se verifica em Angola. Na verdade, com estas falácias, estes juristas ilustres prestam um mau serviço à democracia angolana, por não esclarecerem o exagero de poderes que a Constituição conferiu ao presidente da República.

Há, de facto, um presidencialismo hiperbólico ou imperial em Angola.

Dois argumentos costumam secundar esta opção constitucional. O primeiro é o da situação angolana, sobretudo a guerra e subsequente reconstrução. Dada a especificidade dos problemas que Angola enfrentou e enfrenta, é necessário um líder todo-poderoso que conduza os destinos da nação.

A este argumento, responde-se com duas objecções. A primeira é que a história constitucional angolana não demonstra a validade desta ideia. Por exemplo, a primeira Lei Constitucional da República Popular de Angola, de 11 de Novembro de 1975, embora consagrasse a existência de um presidente da República (artigo 31.º e ss.), entregava o fundamental do poder a um Conselho da Revolução composto por membros do MPLA, das Forças Armadas, do Governo, comissários provinciais e chefes dos Estados-Maiores e comissários políticos das Frentes Militares (artigo 36.º).  Significa isto que os fundadores de Angola preferiram um comando colectivo numa altura de forte pressão e crise. Depois, e dando um salto histórico, a Lei Constitucional n.º 12/91, de 6 de Maio, consagrava a existência do Governo como órgão separado do presidente, embora chefiado por este, com poderes próprios e não meramente delegados, e com um primeiro-ministro (artigos 64.º, 66.º e 69.º). E todos sabemos que Marcolino Moco foi primeiro-ministro de Angola nos difíceis anos de 1992 a 1996, havendo outros primeiros-ministros a referir, como Van-Dúnem, Nandó ou Paulo Kassoma.

Quer isto dizer que não existia nada na tradição constitucional angolana que apontasse para a criação de um presidente imperial, como veio a suceder em 2010.

A segunda objecção a esta solução é de ordem prática. A acumulação de poder por parte de José Eduardo dos Santos correspondeu à deriva final corruptora do Estado angolano que levou à situação actual. Todo o poder conferido a José Eduardo foi sinónimo de todo o poder conferido aos corruptos, que passaram a agir sem qualquer freio ou controlo.

O segundo argumento que costuma sustentar este presidencialismo hiperbólico é aquele que Mobutu, o ditador do Zaire, sempre usou quando questionavam os seus poderes excessivos: “O Chefe é a tradição africana.” Esta tese encontra muito acolhimento, actualmente, em posições paternalistas que procuram justificar os excessos ocorridos em África devido a questões culturais.

Não entrando agora em discussões antropológicas, a verdade é que isso não é assim. Não existe qualquer tradição africana antiga mais ditatorial do que as que existiam na Europa. Se repararmos, a democracia andou arredada da Europa durante muitas centúrias, só tendo renascido de forma consistente depois do Iluminismo. Por sua vez, é reconhecido que as organizações políticas em África foram muito variadas, como obviamente o tamanho do continente e a variedade das suas gentes fariam intuir. Muitos sistemas políticos africanos pré-coloniais eram inclusivos, participativos e representativos. A título de exemplo, o Império Mossi pré-colonial, na zona do presente Burkina Faso, era uma monarquia constitucional, como explica Narcisse Tiky. Não existe nenhuma razão “africana” para justificar a entrega de poderes excessivos e sem controlo a presidentes da República.

Aliás, a verdade é que a suposta hierarquia rígida na governação das tribos resulta mais de uma imposição das forças coloniais para melhor controlarem os vastos territórios que ocuparam, que depois foi adoptada pelos estados pós-coloniais enquanto forma de manutenção do domínio político, como Mbembe e Mandami demonstram, e não de qualquer tradição africana.

Consequentemente, não existe nenhum bom motivo para o presidencialismo imperial consagrado pela Constituição angolana.

Voltando ao presente, poder-se-ia entender que a luta anticorrupção encetada por João Lourenço seria mais eficazmente conduzida por um presidente todo-poderoso. E os primeiros tempos em que foi necessário agir depressa, demitir e nomear sem obstáculos assim pareceram confirmar.

No fundo, estaríamos perante um déspota esclarecido a quem entregaríamos os poderes para resolver a confusão em que José Eduardo dos Santos deixou o país.

Todavia, e terminamos como começámos, a caricatura de Sérgio Piçarra comprova que o excesso de poderes acaba por ser pernicioso. Neste momento, João Lourenço começa a ser vítima das suas incongruências e da dificuldade de coordenar tanto poder e tantas competências.

Por consequência, o melhor legado que João Lourenço poderia deixar era um país com órgãos institucionais funcionais e sólidos. Um país a funcionar independentemente das pessoas que ocupassem os cargos. Para isso, é fundamental redesenhar a orgânica constitucional.

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