Não temos caras novas no meu governo, porque o país tem poucos quadros, diz João Lourenço

“Não remodelei o Governo porque não tenho quadros”, consta que terá dito, em jeito de desabafo, o Presidente João Lourenço aos mais próximos. Contaram-nos, como se não fosse importante, mas na nossa cabeça tilintaram dezenas de campainhas. Como é possível?
Por Ana de Sousa
Em Angola, não existem quadros? No MPLA, não existem quadros? Ou será esta uma desculpa para integrar, no Comité Central, os seus, e daí para o Governo; ou para a remodelação governamental que não fez e, agora, por isso mesmo, só será possível depois de 15 de junho?
Quando João Lourenço assumiu a liderança do partido, em Setembro de 2018, nós, e uma multidão de angolanos, ficamos na expectativa da remodelação governamental. Cada telejornal da TPA ou da Zimbo era tido como possível episódio da remodelação esperada, e a remodelação governamental transformou-se mesmo num thriller, tal era o suspense. Nada aconteceu. O ano começou, e não começou bem, e o assunto aparentemente caiu.
Ao longo dos anos, muitos foram os jovens envolvidos na formação de quadros, entusiasmados e aspiracionais, mas rapidamente perceberam que a marcha era lenta, muito lenta, determinada pelo ritmo dos mais velhos e, com natural impaciência, foram à sua vida. E foram para onde? Para a Administração Pública, para esse cemitério de jovens quadros? Uns sim e outros ‘bazaram’ para o privado ou para fora do País (e o Presidente que não se iluda, a classe média urbana está a emigrar). Ao mesmo tempo, convém dizer que a reforma da Administração Pública passa por uma mistura insidiosa de boas práticas e de eficiência, mas, mais fundo, por criar uma máquina administrativa estatal suficientemente atractiva sem a prática quotidiana na pequena corrupção. E nesse aspecto o Presidente está a prestar um mau serviço ao País (irony alert!).
E continua à procura de quadros – já agora, é possível encontrar algumas das causas desta (in)conveniente consequência. Em Portugal, a propósito de uma certa endogamia no Governo de António Costa (’PS family gate’), Vasco Pulido Valente, no Público, explicou que o problema está quando um partido se confunde com uma seita que “não tolera nenhuma espécie de contradição” e para “se viver com ela tem de se partilhar os pressupostos, os preconceitos e as referências de uma certa visão do mundo. Quem fica de fora não passa de um estranho, de uma presença incómoda e hostil, que deve ser combatida. Não admira que, quando a seita chega (é) poder, suspeite do mundo inteiro e prefiro os seus fiéis ao resto da Humanidade. O que se perde nisto não resulta do famoso ‘afunilamento da classe política’; o que se perde nisto resulta de um ‘afunilamento’ intelectual e político”.
Por muito que lhes custe, há uma difícil ruptura que tem de ser feita pelo MPLA e pelo Presidente na sua dupla condição. A meritocracia tem de deixar de fazer parte do discurso e passar a integrar a prática, e dessa forma – e porque não? – abrir o Governo aos independentes. O caminho para o Executivo não tem, necessariamente, de passar pelo CC. Ao mesmo tempo, os mais velhos têm de encontrar outro lugar para si e dar lugar aos novos. E, devagar, eles vão acedendo ao topo. Em Luanda, na Lunda Sul, Bengo, Bié ou Cunene, temos jovens governadores; no Minfin, duas secretárias de Estado relativamente jovens, Vera Daves e Aya da Silva; no MAT, a mesma coisa, Laurinda Cardoso e Márcio Daniel; na Secretaria de Estado para as Tecnologias de Informação, Manuel Homem. Os mais jovens têm lugar, também, entre os secretários do Presidente. Ser jovem político, e assumir responsabilidades governativas, não provoca urticária, antes pelo contrário: em particular, em países africanos, com populações maioritariamente jovens.
E Adão de Almeida não é o único ministro do Governo de João Lourenço mas com o que tem feito sublinha a descontinuidade da acção de outros ministros. Deixemos de fora Manuel Augusto, titular do Ministério das Relações Exteriores, que corresponde à dinâmica que João Lourenço tem imprimido à diplomacia; ou Ricardo Viegas de Abreu que tem uma tarefa e tanto, num sector que não anda mas se arrasta por infraestruturas onde há anos se gastam milhões, que resultam em pouco e por vezes bera, como é o caso do novo aeroporto de Luanda ou da rede de caminhos de ferro, já para não falar da complexa privatização da TAAG; ou ainda Archer Mangueira, o resiliente ministro das Finanças – curiosamente, é para a pasta das Finanças que, muitas das vezes, os Chefes de Estado ou de Governo vão buscar independentes: Costa foi buscar Centeno, Macron fez algo parecido com Bruno Le Maire, e Bolsonaro foi buscar Paulo Guedes para superministro da Fazenda, sendo que Guedes, bem ou mal, dá mais a Bolsonaro do que Bolsonaro a Guedes – e mais dois ou três ministros. E ao resto aplica-se “a lista de desejos”, celebrizada pela jovem congressista brasileira, Tabata Amaral, isto é, a mais completa ausência de um projeto estratégico para cada área de governação (entretanto o ministro que a jovem congressista pôs em causa, foi demitido, falamos do ministro da Educação, Ricardo Vélez).
O Presidente João Lourenço falou aos jovens estudantes na Rússia e aí considerou bastante elevada a “importação de quadros”, assumindo que não há ainda no País quadros suficientes. Na Rússia, perante os estudantes, a quem exortou a dizerem a verdade, o Presidente também foi franco e falou das inúmeras fragilidades no sector produtivo, incapaz de dar resposta ao elevado número de desempregados, passando para os privados a tarefa. Na Rússia, continuou à procura de quadros.
Como “quadro importado” que se importa com o que se passa em Angola, oriunda de um país que exporta quadros para o mundo – recorde-se que Portugal viu o seu número de licenciados, mesmo tendo em conta o Processo de Bolonha, passar de 42 mil em 1996-1997 para 74 mil em 2016-2017, numa envelhecida população de 10 milhões –, não deixamos de nos questionar se há mesmo esta falta de quadros no País? E se assim for que tilintem milhares de campainhas e se perceba que as políticas públicas para a educação têm de ser imediatamente corrigidas desde a base até ao topo. E lá está! – o Governo precisa mesmo de ser remodelado. VANGUARDA 

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