A Procuradoria-Geral da República, na pessoa de Eduarda Rodrigues, tentou justificar o que não é justificável: Jean-Claude Bastos de Morais, acusado de inúmeros crimes de colarinho branco, foi libertado. Os contornos do caso não são conhecidos, porque estão em segredo de justiça. Mas sabe-se que esta não foi uma decisão jurídica – foi, isso sim, uma decisão política, tomada pelo presidente João Lourenço.
por RUI VERDE
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Não gostava de estar na pele da directora nacional de Recuperação de Ativos da Procuradoria-Geral da República (PGR), Eduarda Rodrigues, que veio explicar o inexplicável: a libertação sem fundamento de Jean-Claude Bastos de Morais.
Se há alturas em que é melhor estar calado, esta foi uma delas, não por culpa da gentil procuradora, mas pelo facto de ter vindo apresentar uma tese abstrusa, que redunda em confirmar que a decisão de libertar Jean-Claude não é jurídica, mas sim política.
Depois da intensa polémica generalizada instalada devido à libertação inopinada de Jean-Claude Bastos de Morais, preso na sequência de graves acusações de burla, tráfico de influências, associação criminosa, recebimento indevido de vantagem e corrupção – crimes que não admitiam a extinção do procedimento criminal devido a qualquer ressarcimento dos prejuízos ou dos montantes desviados –, a PGR sentiu-se na obrigação de vir a público justificar-se.
Nessa justificação, há um ponto em que a PGR tem razão. O processo-crime está em segredo de justiça, por isso, nem todos os factos são conhecidos. Todavia, tal não impede que seja formada uma opinião fundamentada com base no que tem sido publicitado sobre o tema, que é bastante.
A senhora procuradora aduziu dois temas essenciais nas suas explicações. Primeiramente, referiu que a investigação a Jean-Claude tinha perdido força, devido à existência dos contratos entre o Fundo Soberano (assinados por José Filomeno dos Santos) e o grupo Quantum (assinados por Jean-Claude). Esses contratos, afirmou, eram extremamente lesivos para o Estado angolano e benéficos para Jean-Claude, mas tornavam a sua actuação lícita. E, à existência destes contratos, adicionou a decisão do Tribunal de Londres, em Julho passado, que os validava.
Em resumo, segundo a senhora procuradora, a existência de uns contratos muitíssimo prejudiciais a Angola, mas julgados válidos por um tribunal londrino, ilibava Jean-Claude das fortes suspeitas de que era alvo, justificando a sua libertação.
Vamos ver, por partes, por que razões esta argumentação é disparatada.
Do ponto de vista técnico, não se percebe o que aconteceu a Jean-Claude. O processo foi arquivado em relação a ele? Continua arguido, mas com medida de coacção reduzida, podendo usufruir dos confortos da sua casa com piscina na ilha espanhola de Ibiza? Não se sabe. Mas isso, na economia geral deste caso, acaba por ser irrelevante.
Relevante é o seguinte: quer o direito angolano quer o direito inglês contêm normas que limitam a liberdade contratual e, em última análise, permitem anular contratos injustos ou desequilibrados, isto é, contratos em que não existe equilíbrio das prestações, que favorecem excessiva ou abusivamente uma das partes em prejuízo da outra, ou que dão todas as vantagens a uma parte e nenhuma ou pouquíssimas à outra.
Em Angola, esses contratos podem acarretar diversos efeitos legais negativos nos termos do Código Civil. Refira-se, por exemplo, o artigo 227.º do mesmo código, que obriga a negociar segundo as regras de boa-fé, ou o artigo 994.º, que proíbe pactos leoninos no âmbito das sociedades. Em Inglaterra, também temos variada legislação que limita a liberdade contratual, desde logo o Unfair Contract Terms Act, de 1977. Não entraremos aqui em longas digressões sobre o direito contratual, apenas queremos referir que a completa liberdade contratual já não é um elemento absoluto em termos jurídicos, sendo que limitações de boa-fé, abuso de direito e desequilíbrio podem ser impostas na interpretação contratual, levando em última instância à sua anulação. Quer isto dizer que, tanto no direito inglês como no direito angolano, um contrato demasiado lesivo para uma das partes não é inatacável, pelo contrário.
A isto acresce, e mais importante que tudo, que a investigação da PGR não tinha de se debruçar sobre os termos do contrato. Uma investigação criminal tem de analisar a formação do contrato. Como é que foi feito? Por quem? Com que intenção? A intenção aqui é fundamental. Neste caso, há dois amigos, dois sócios, cada um representando uma parte (José Filomeno dos Santos pelo Fundo Soberano e Jean-Claude pelo Quantum), que fazem contratos que beneficiam um deles exageradamente. A investigação criminal tinha de procurar explicações para o aparecimento de um contrato deste género, um contrato atípico, não usual. Os contratos podem ser legais na aparência, mas a sua formação ser totalmente ilícita. Basta imaginar que José Filomeno dos Santos estabeleceu uma conspiração para defraudar o Estado através da elaboração de contratos válidos. Portanto, a validade dos contratos, por si, não representa nada de definitivo. O que tem de ser sujeito a escrutínio situa-se antes e depois da elaboração contratual.
Sobre a decisão do tribunal inglês, há que repetir um argumento. Ela já era conhecida dois meses antes de o Ministério Público angolano decretar a prisão de Jean-Claude, e está limitada pelo seu objecto, sendo que a sua fundamentação não tem jurisdição universal. O Reino Unido é um Estado soberano, as suas decisões judiciais têm efeito no seu território. Angola também é um Estado soberano, e compete aos seus tribunais tomar decisões sobre os assuntos que dizem respeito ao seu território. A decisão inglesa era muito específica, limitada ao objecto de determinado processo, e daí não se podem tirar as inferências globais enfatizadas por Eduarda Rodrigues.
O segundo argumento anunciado pela senhora procuradora era que a PGR não tinha legitimidade para fazer qualquer acordo com Jean-Claude, e nessa medida apenas promoveu esse acordo juntando as partes: nova administração do Fundo Soberano e Jean-Claude.
Aqui está o que se chama um argumento de “gato escondido com rabo de fora”.
Torna-se nítido que foi o poder político que decidiu libertar Jean-Claude em troca de receber o dinheiro. Não foi o Ministério Público, não foram os tribunais. Foi uma decisão do presidente João Lourenço.
No fundo, foi isto mesmo que Eduarda Rodrigues confessou à população quando disse: “O que sucedeu foi que a Procuradoria-Geral da República, enquanto representante do Estado angolano, promoveu a negociação entre o Fundo Soberano de Angola (FSDEA) e Jean-Claude Bastos de Morais e o Quantum, com vista à recuperação dos activos, que estava sob a guarda e gestão destas empresas e de Jean-Claude.”
Em termos simples, isto significa que a PGR se limitou a aguardar que as negociações entre o poder e Jean-Claude terminassem. Fica claro o que se passou, e nessa medida acabamos por ter de agradecer a Eduarda Rodrigues a sua clareza. Não foi a PGR que negociou, foi o Executivo, foi João Lourenço.
1 Comentários
???...
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